sábado, 7 de novembro de 2015
domingo, 13 de setembro de 2015
VOLTA, MUTARELLI, VOLTA! OU NÃO...
Mais uma prova de que
quadrinhos não são literatura é a matéria do site uol sobre Lourenço Mutarelli.
Este, um autor que conheci em meados da década de 90 com a “trilogia em quatro
partes” de Diomedes, um detetive muito escroto. Aquilo brilhou pra mim. Até
hoje considero uma das melhoras obras que já li e a melhor hq nacional
que conheço. Uma obra volumosa, densa, cheia de propostas estéticas. Propostas
que poderiam incomodar os incautos, mas que agradaria aos curiosos.
Naqueles anos eu fazia
uma feira de quadrinhos aqui no Piauí e resolvi que Mutarelli deveria ser um
dos nossos convidados. Eu o procurei, achei um e-mail, entrei em contato, mas
sua esposa respondeu e disse que ele não poderia ir. “Coisa de artista”,
pensei. Hoje, parece-me que ele já não costumava ir a esses eventos, como não
foi ao último Troféu HQ Mix, receber a homenagem que lhe fizeram. Um quadrinista
que não faz mais quadrinhos e que dedica-se a outras áreas da arte. “A Lucimar Mutarelli irá me representar.
Obrigado", escreveu ele à organização do HQ Mix, segundo a matéria do site
Uol com o artista. Posso imaginar como se sentiram o pessoal do
prêmio.
Enfim, Mutarelli
desistiu dos quadrinhos. Ele disse que "o meio dos quadrinhos sempre me incomodou bastante. Os próprios
quadrinistas mesmo. É um meio muito bitolado”. O autor fez teatro, namorou
com o cinema, em filmes como a adaptação de O Cheiro do Ralo, mas antes disso havia
se rendido à literatura. Ele disse que “essa mudança veio não só pela literatura,
mas também pelo meio literário, que me aceitou muito bem. Isso é uma coisa que
me ganha. Aceitação verdadeira, não bajulação. No meio literário eu fui muito
bem acolhido, isso foi uma coisa que foi muito importante para mim”. Fica
evidente que o autor não foi bem aceito pelo meio dos quadrinhos. O que é uma
pena. Perdemos uma referência que estava, talvez, no auge de sua criatividade.
Foi rumar por outras linguagens porque fazer quadrinhos no Brasil é um tormento,
o próprio autor disse que “no quadrinho, você precisa trabalhar no mínimo dez
horas por dia desenhando. Escrevendo [romances], eu trabalho menos horas por
dia, trabalho com muito mais prazer. E vivo também. Antes, eu não vivia, só
trabalhava”. Essa é uma condição de crise para o mercado de quadrinhos no
Brasil. Existe um grande esforço desse tipo de autor, o desenhista, que
passa horas, às vezes dias, produzindo uma única página.
Mutarelli é um artista
reconhecido e reclama-se abertamente da falta de recursos, “eu preciso é de
dinheiro. Sou um cara totalmente falido”. Já li alguns textos sobre o mercado
de quadrinhos no Brasil e é lugar comum encontrar referências de quadrinistas que
tiveram de percorrer caminhos no design ou publicidade para puderem sobreviver.
Dessa história, fico
com algumas reflexões: por que os quadrinhos no Brasil são um meio tão indigesto
com seus artistas? Por que nossa arte sequencial teve de perder esse talento tão
significativo para outros meios artísticos? Serão os quadrinhos um meio
realmente tão “bitolado” a ponto de renegar a sobrevivência de um autor referência
em seu próprio seio?
Mutarelli, cara, fica de boas!
Não quero aqui fazer um
tratado sobre o mercado de quadrinhos no Brasil, apenas me indigno em saber que nos EUA, autores da literatura e de outras áreas, como
Stephen King, George RR Martin e Orson Scott Card, migram e fazem sucesso com
os quadrinhos,mas aqui no Brasil ainda
vivemos em um meio onde si diminui os quadrinhos a um gênero qualquer de “subliteratura”,
onde autores, para serem levados a sério, precisam escrever romances porque gibis não levam ninguém a lugar nenhum.
terça-feira, 8 de setembro de 2015
O descaso da Lei A Tito Filho
Há muito tempo hesitei em
escrever sobre isso. Não escrevi. Quis dar tempo ao tempo. Enquanto uma porrada
de conhecidos diziam: “Esquece isso! É dinheiro perdido”, eu continuava acreditando
que uma hora daria certo, que o bom senso venceria e que a migalha prometida
para projetos culturais seria entregue aos proponentes selecionados.
Mas vamos do princípio: tenho
dois projetos aprovados na Lei A Tito Filho, um de 2009, intitulado “Quadrinhos
Pós-68”, de R$17.107,00 e outro de 2012, chamado “Reanimando Arnaldo
Albuquerque”, de R$ 22.573,00. São quase R$40mil.
Parece muito? Não é! No edital de 2012 foram prometidos R$1milhão de reais,
divididos para 35 projetos.
A informação
que eu tenho é de que nenhum desses 35 projetos foram pagos, que, sequer, foram
feitos os contratos entre os proponentes e a Fundação Monsenhor Chaves (FMC).
Não estou afirmando isso de forma alheia. Lembro que fui, no começo de 2013, até
à FMC perguntar sobre o porquê de eu ainda não ter sido chamado para assinar um
contrato com eles sobre um dos projetos aprovados em 2012. A resposta que tive
de alguém do setor jurídico foi: “porque ainda estamos devendo editais
anteriores e não vamos fazer isso”. Ou seja, a FMC já estava devendo vários
pagamentos de editais anteriores e não pretendia comprometer-se em mais R$1milhão
com novos projetos. A questão é que o edital foi lançado em 2012 e 35 novos
proponentes foram contemplados. É muita hipocrisia lançar um edital e depois
dizer que “não podemos assinar com vocês o que prometemos”. Estavam lhes
resguardando esse direito de não se auto incriminarem legalmente, afinal, sem
um contrato assinado, pouco podemos fazer.
Mas a lista
dos projetos aprovados em 2012 continua disponível no site oficinal da FMC.
Aqui está o link.
Entretanto, ter um contrato
assinado com a FMC não parece significar muita coisa, já que aquele órgão
encarrega-se de perdê-los ou ignorá-los. Sim! A FMC perdeu meu contrato de
2009, perdeu o processo duas vezes, inclusive a prestação de contas que tinha
feito da primeira parcela, recebida com quase 3 anos de atraso. Menos mal! Recebi
uma parcela, prestei contas, mas não tenho mais expectativas em receber a 2ª e
3ª parcela, indispensável para a concretização do projeto (vale ressaltar que
dividir os projetos em 3 parcelas já é ridículo por si só! Com o dinheiro
previsto para minha 2ª parcela eu não poderia fazer nada, a não ser esperar o
dinheiro da 3ª parcela para puder pagar o custo de impressão do meu livro,
objeto do projeto).
Há algumas semanas fui ao
escritório do presidente da FMC, o sr. Lázaro do Piauí, falar sobre isso. O
projeto “Reanimando Arnaldo Albuquerque” está acontecendo por conta do esforço
de pessoas como Neila Rocha e Maiça Chaves, ambas do Projeto de Ilustração e
Animação – PIA – UFPI. Elas estão
arcando com todos os custos porque possuem todo o interesse pela arte do Piauí,
cuidado esse que a FMC e a própria Prefeitura de Teresina não demonstram. Fui
até lá explicar ao Lázaro que o produto do projeto Reanimando Arnaldo iria
sair, inevitavelmente, mas que seria muito bom se a FMC fizesse valer o edital
de 2012 e disponibilizasse os recursos previstos para que houvesse uma parceria
entre todos nós que financiasse esse projeto e pudesse pagar toda a mão de obra
envolvida. Acontece que o sr. Lázaro não é o responsável por desses editais,
mas representa a instituição que os acometeu. Então, ainda espero que algo
possa acontecer. Perdoem minha inocência.
Estive receoso de falar sobre
isso desde o começo do ano porque em janeiro passado faleceu o Arnaldo
Albuquerque, primeiro quadrinista a publicar no Piauí, e meus dois projetos
aprovados na Lei A Tito Filho envolviam a arte dele. Não quis parecer um oportunista utilizando a
morte de Arnaldo como bandeira, mas quando penso que se os editais da FMC
fossem levados a sério pelos gestores públicos, eu poderia ter homenageado este
homem com dois produtos culturais sobre sua arte ainda em vida, e a indignação
me sobressalta.
Por toda a arte que deixou de ser
exposta ou produzida através da Lei A Tito Filho, por esses míseros R$1milhão
de reais que parecem tão impossíveis para a cultura do município de Teresina,
que desde 2012 parece ficar cada vez mais longe, espero que todos sintam vergonha.
Todos! Inclusive eu.
Se você é um autor de projeto que
esteja em situação parecida com a minha, proponho criarmos uma carta aberta e
procurarmos algum tipo de processo coletivo, seja através do Ministério Público,
seja por algum caminho que alguém conheça melhor que eu. Coloque nos
comentários abaixo, seu nome, o nome e o ano do projeto que a Lei A Tito Filho
está em débito com você.
quinta-feira, 16 de abril de 2015
BABA HABIBI E BHABHA
Bernardo Aurélio de A.
Oliveira (UFPI)[1]
RESUMO:
O hibridismo
cultural trabalhado por Homi K. Bhabha no livro O Local da Cultura pode ser
percebido a partir do estudo da história em quadrinhos escrita e desenhada por
Craig Thompson, intitulada Habibi. Ambos autores levantam questões relevantes
sobre a formação de culturas, a construção de identidades de povos e de
narrativas nacionais. A partir dos estudos de Bhabha e fazendo uma leitura de
Thompson sobre os discursos de textos encontrados no Alcorão e na Bíblia,
presente em Habibi, podemos perceber até onde aproximam-se, distam-se e
misturam-se entre si as culturas maometanas e cristãs, sempre traçando um
paralelo entre as informações dos livros dos autores citados. Este artigo trata
sobre a influencia da cultura islâmica sobre a vida ocidental cristã e
vice-versa, utilizando o conceito de hibridização de povos e culturas
característico das noções de “entre-lugar” definidos por Bhabha, bem como sobre
os povos que vivem em situações de fronteira e sobre as raízes e ramificações
de suas grandes narrativas nacionais religiosas originárias.
Palavras-chave: Hibridismo cultural, entre-lugar,
nação.
Abstract: The cultural hybridity
studied by Homi K. Bhabha in The Location of Culture can be seen in the
work of Craig Thompson, Habibi. Relevant questions about culture
formation in frontier situations and constructions of national narratives can
be traced in parallel reading the books of authors cited.
Keywords:
cultural hybridity, in-between, nation.
Não poderia deixar de começar explicando
que este artigo é fruto de uma apresentação de seminário sobre Homi K. Bhabha,
portanto, preciso antes de tudo, dizer que não poderia tê-lo escrito senão
baseado nas anotações de Dalva Fonteneles e Jaislan
Monteiro, colegas mestrandos e parceiros na apresentação do “O Local da Cultura como
território de negociação: reflexões sobre a questão pós-colonial” durante
última aula de Teoria da História, ministrada pelo professor Drº Edwar Castelo
Branco. Dito isto, de alma limpa e com as anotações dos colegas em mãos
transcrevo esse relatório em forma de artigo.
Bhabha é daquele tipo raro de autor que torna-se
unanimidade. Dono de um estilo forte e difícil de leitura, que não procura ser
didático, pedagógico muito menos dono de uma verdade teórica que tenta impor-se
a outras, é muito mais um autor que procura por em prática as teorias que o
tornaram conhecido: como o hibridismo cultural. Portanto, preocupa-se em
misturar o eu ao outro dos autores (como Fanon, Said, Foucault,
Green) tornando seu pensamento uma terceira coisa fruto da fusão das duas
partes anteriores. Tornou-se, de fato, “um dos principais arautos dos chamados
teóricos pós-coloniais e do multiculturalismo, um atento pesquisador das minorias
sociais e culturais” (EICHENBERG, 2012).
Meu
objetivo aqui é traçar um paralelo entre alguns desses conceitos e a história
em quadrinhos Habibi, de Craig Thompson, obra que, por sinal, não fica à
sombra de Bhabha, mesmo porque são de universos editoriais diferentes, mas o
que quero realmente dizer é que “Habibi é um monumento do quadrinho
moderno e uma resposta atual a questões que nos perseguem desde sempre”. Claro
que essa citação foi retirada da orelha do livro, entretanto não sou o único a
concordar com ela visto a quantidade de prêmios e elogios que o livro já
recebeu[2].
Na minha opinião, Habibi é tão importante para os quadrinhos quanto O
Local da Cultura é para a História, mas minha opinião aqui é quase tão
imparcial quanto às citações das orelhas dos livros, portanto, Franz Lima,
escritor e blogueiro dirá o que eu gostaria de dizer, assim fica mais
impessoal:
São 672 páginas de arte em estado puro. Ilustrações belas,
detalhadas e, ao mesmo tempo, simples na mensagem que passam. Não há excessos,
apesar do refinamento da produção. O que vemos desde a primeira página é um
fenômeno. A combinação de roteiro, letras, desenhos e, principalmente, um
recado para um mundo cada vez mais crítico quanto aos islâmicos torna
"Habibi" uma pérola de valor inestimável (2012).
Elogios
à parte, vamos ao que, de fato, interessa: Bhabha escreveu sobre o mundo pós-colonial
em que vivemos e sobre as consequências dessa condição, “é um salutar lembrete
das relações “neo-coloniais” remanescentes no interior da “nova” ordem mundial
(...) Tal perspectiva permite a autenticação de histórias de exploração e o
desenvolvimento de estratégias de resistência” (BHABHA, 2013, p. 27). Segundo o autor, após a segunda
grande guerra, as populações do mundo intensificaram as correntes de migrantes
e refugiados, e sua pesquisa preocupa-se em entender esse mundo que desloca a
questão da cultura para uma época em que populações diversas estariam nesse
constante movimento, redefinindo limites fronteiriços em níveis mais
psicológicos, sociais e culturais do que meramente geográficos. Então, esses
homens fronteiriços levam consigo sua bagagem material e imaterial e
traduzem-se na relação da diferença com o outro, o nativo. É preciso
entender essa fronteira na perspectiva de Bhabha antes de voltarmos para
o Craig Thompson e seu Habibi.
“Uma
fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos
reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo
começa a se fazer presente” (HEIDEGGER
apud BHABHA, 2013, p. 19). É com essa citação que Bhabha inicia a introdução de
seu livro. Ele nos explica que as
fronteiras são lugares de articulação de diferenças que dão início a novos
signos de identidade. É na relação fronteiriça entre o eu e o outro
que nossas diferenças se revelam e nessa articulação existe uma troca que
recria outro de nós mesmos. Essa articulação acontece no entre-lugar.
Vide figura[3]
abaixo.
Fig. 01. Relação entre eu e o outro
que cria outros de nós mesmos devido ao entre-lugar (espaço intervalar).
Esse encontro de partes é um espaço
intervalar, de fronteira entre diferentes culturas. A simples existência desse
tipo de espaço faz de nós seres múltiplos, diferentes das construções
herméticas e homogêneas construídas pelas identidades nacionais, por exemplo.
As grandes narrativas estatais constituem o povo “em
objetos históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma
autoridade que se baseia no preestabelecido ou na origem histórica constituída no
passado” (BHABHA, 2013, p. 237). Para essas narrativas pedagógicas,
o conceito de muitos como um baseia-se na teoria que “trata gênero,
classe ou raça como totalidades sociais que
expressam experiencias coletivas unitárias” (BHABHA, 2013, p. 232). O que
precisamos imediatamente perceber aqui é a sutileza dessas fronteiras que nos
definem como seres plurais, diversamente dessa estratificação fixa e
hierárquica que nos mutila em blocos de comportamentos culturais isolados, para
isso, Bhabha cita René Green e seu exemplo do
sótão, do poço e da escada “para fazer associações entre
certas divisões binárias como superior e inferior, céu e inferno. O poço
da escada tornou-se um espaço liminar, uma passagem entre as
áreas superior e inferior” (2013, p. 23). Bhabha
explica:
O poço da escada como espaço liminar, situado no meio das designações de identidade, transforma-se no processo de interação simbólica, o tecido de ligação que
constrói a diferença entre superior e inferior,
negro e branco. O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que
ele propicia, evita que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais. Essa passagem intersticial entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta (2013, p. 23).
Tornamo-nos então seres híbridos e
nessa condição implodimos qualquer conceito de identidade nacional
cristalizada. Somos heterogêneos, precisamos perceber o outro de nós mesmos que
nos tornamos ainda intra-uterinamente, quando nos dão nome e a cor do enxoval.
Precisamos perceber nosso hibridismo cultural quando rezamos pra Jesus e para
Todos os Santos ou quando comemos a comida típica de um país estrangeiro no
restaurante da esquina. E tudo isso é reforçado no mundo pós-colonial, pois foi
esta condição que mais propiciou as características de fluidez e
transitoriedade moderna.
Permitam-se a leitura de uma citação
de minha autoria: dois quadrinhos de um fanzine que fiz chamado Babar o
Bhabha e que serviu como recurso didático durante o Seminário que fizemos
sobre O Local da Cultura. Fica mais fácil de engoli-lo se entenderem a
imagem como um simples parágrafo, escrito por mim de maneira
não-completamente-verbal.
Fig. 02. Quadrinhos de minha autoria publicado no fanzine Babar o Bhabha.
O que tentei trabalhar nesses
quadrinhos é um pouco do que Bhabha disse:
Estar no "além",
portanto, é habitar um espaço intermédio, como qualquer dicionario lhe dirá.
Mas residir "no além" é ainda,
como demonstrei, ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para
redescrever nossa contemporaneidade
cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar a futuro
em seu lado de cá. Nesse sentido, então, o espaço intermédio
"além" torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora (…) o
trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com "o novo" que
não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do
novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o
passado como causa social ou precedente estático; ela renova o passado,
refigurando-o como um "entre-lugar" contingente, que inova e
interrompe a atuação do presente. O "passado-presente" torna-se parte
da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 2013, p. 28 – 29).
A relação entre passado e presente
não é simples como uma linha narrativa cronológica prevê. Viver no mundo pós,
é residir no além onde o passado é constantemente revisitado. Tanto é,
que o passado torna-se presente. É quando uma tradição cultural pedagógica que
estabelece uma identidade de nação-povo que foi sedimentada desde um
passado remoto, torna-se uma prática renovada no cotidiano atual: é o passado
vivo, renovado e performatizado pelas culturas híbridas modernas. É
quando, por exemplo, o vaqueiro deixa o gibão de couro em casa, veste a calça jeans,
monta na sua moto e leva a boiada através de uma estrada de asfalto.
Diante do que já foi colocado,
podemos voltar para Craig Thompson. Habibi conta a história de Dodola e
Zam, dois escravos de uma cidade fictícia chamada Vanatólia, provavelmente uma
referência a Anatólia, região do extremo oeste da Ásia, também conhecida como
Ásia Menor, onde fica a Turquia. A península anatoliana é situada
geograficamente como uma ponte entre a Ásia e a Europa, o que é muito
curioso e oportuno para a análise neste trabalho, já que pontes podem
possuir a mesma carga simbólica das escadas citadas por Green e Bhabha
agora a pouco. É o ir e vir dos agentes entre os extremos da ponte que estimula
o hibridismo cultural transformando o eu e o outro. Podemos
imaginar que essa região fictícia da Vanatólia, se realmente foi inspirada na
Ásia Menor, como parece, é um país de grandes fronteiras culturais,
principalmente porque a história em quadrinhos pode ser entendida como um conto
de fadas dos dias atuais “sobre a cultura e o
comportamento das pessoas em um país tipicamente islâmico. Mas não se deixem
enganar: Habibi é um conto de fadas como os antigos foram. Há força,
impacto e verdade nos desenhos e palavras da Graphic Novel” (LIMA,
2012).
Para
não me alongar muito, Dodola foi vendida ainda criança para seu noivo, um
escriba que costuma trabalhar em transcrições do Corão. Ela aprende a ler e
escrever, vivendo bem com seu marido, apesar da diferença de idades: ela
casou-se com 9 anos e ele, provavelmente, com 40. Um dia a casa é assaltada,
seu marido morto e ela é levada por traficantes de escravos. Entre eles,
conhece uma criança menor que ela, Zam, de quem decide cuidar. Eles conseguem
fugir e vão morar no deserto. E a história deles dois alonga-se,
maravilhosamente, por mais 600 páginas, pelas quais não posso nem devo me
prender aqui. O que interessa agora são as histórias que Dodola narrava para
Zam. Histórias dos princípios, de Deus, anjos, demônios e crentes. Histórias da
Bíblia, histórias do Corão, narrativas primordiais de livros que identificam e
unem povos-nações.
Thompson
deu uma entrevista especial para Ramon Vitral, publicado no jornal O Estado
em janeiro de 2012, que traz informações importantes antes de entrarmos
diretamente na análise de Habibi. Ramon faz questão de lembrar primeiro
a experiencia católica do autor retratado em seu primeiro grande trabalho, o
livro Retalhos, depois perguntou “como foi escrever sobre o mundo islâmico em Habibi tendo a formação cristã
conservadora que teve?”
Esse foi o elemento que tornou mais acessível a escrita sobre o Islã. Interagindo com amigos muçulmanos, vi que a vida deles não era tão diferente do ambiente em que cresci. São os mesmos estilos de vida, as mesmas morais e, principalmente, as mesmas histórias como fundamentos de ambas as crenças. Foi o meu ponto de acesso. O Alcorão contém algumas das mesmas histórias da Bíblia, mas de forma menos linear e mais poética (THOMPSON apud VITRAL, 2012).
Senhores,
Craig Thompson não poderia ter nos proporcionado uma resposta melhor. Fica
evidente a questão do entre-lugar, do hibridismo cultural, a percepção
das diferenças fronteiriças e das semelhanças dos mitos originais que
fundamentam nações inteiras ao redor do mundo. Não contentando-se com uma
resposta tão oportuna como essa, parece-me que Thompson sabia que alguém
escreveria sobre ele um dia sob a ótica de Bhabha, afinal de contas, leiam o
que ele disse, dia 28 de julho de 2012, ao repórter André Miranda, do jornal O
Globo quando perguntado se acha que a origem do
fundamentalismo religioso é a mesma no Ocidente e no Oriente:
Eu acredito que sim. Os
fundamentalistas são os mesmos, assim como são os mesmos os seguidores
eventuais de ambas as fés. Cristãos eventuais não são necessariamente
conservadores ou dogmáticos, e o mesmo se aplica ao muçulmano comum que você
pode encontrar na rua. Eu acho que a reação anti-Islã que surgiu nos Estados
Unidos depois do 11 de Setembro nasceu em grande parte de um auto delírio, uma
forma de atacar a mesma intolerância religiosa que existe em nós mesmos. O
grande tema de Habibi é que esses rótulos — cristão e muçulmano, homem e
mulher, Oriente e Ocidente — são simplesmente fronteiras imaginárias que
precisam ser descartadas (THOMPSON apud MIRANDA, 2012)
Os
binarismos cristão x mulçumano, homem x mulher, oriente x ocidente “são
simplesmente fronteiras imaginárias que precisam ser descartadas”. Lembram da
figura 01? Percebem que o resultado do encontro eu x outro é uma
imagem esmaecida, enevoada? Não é meramente ilustrativo: o resultado dessa
colisão dicotômica é um abrandamento das percepções das diferenças via de regra
a percepção e o “achamento” do entre-lugar. É perceber que essas
fronteiras são, de fato, imaginárias, como disse Thompson. Tudo isso é muito
importante porque perpassa as opiniões de Bhabha, que desde o início de seu
livro preocupa-se em colocar sua teoria como forma de minorar os problemas
entre-nações. É dele a seguinte citação:
Os próprios conceitos
de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contínua de
tradições históricas, ou comunidades étnicas "orgânicas" - enquanto
base do comparativismo cultural-, estão em profundo processo de
redefinição. O extremismo odioso do nacionalismo sérvio prova que a própria
ideia de uma identidade nacional pura, "etnicamente purificada", só
pode ser atingida por meio da morte, literal e figurativa, dos complexos
entrelaçamentos da historia e por meio das fronteiras culturalmente
contingentes da nacionalidade [nationhood] moderna (BHABHA, 2013, p.
25).
Bhabha percebe que a cristalização
de uma cultura e a pedagogia de uma política nacional pura e autoritária
termina por sérios problemas como o extremismo na Sérvia ou o drama do “teatro
contemporânea do Sri Lanka” (2013, p. 25).
Por várias vezes, Thompson foi perguntado se a escolha temática de Habibi,
de lidar com o povo islâmico num mundo pós-11 de setembro. Eis o que ele disse
ainda na entrevista a André Miranda:
Depois
do 11 de Setembro houve uma grande islamofobia na mídia americana, e, em
parte por isso, eu quis olhar dentro do Islã para melhor compreendê-lo e poder
reconhecer suas belezas. Também percebi que eu não tinha amigos muçulmanos, e
trabalhar em “Habibi” me permitiu conhecer novas pessoas e ganhar novas
amizades. Muitos dos diálogos do livro vieram de conversas que tive com novos
amigos que fiz (THOMPSON apud MIRANDA,
2012).
Em outra entrevista ao jornal O Globo, dessa vez
cedida a Telia Navega ainda 2009, perguntado se suas motivação
para Habibi seria o desejo de humanizar a cultura islâmica depois do 11
de setembro, ele disse:
Esse pode ter sido meu impulso
inicial, por minha frustração com relação ao comportamento da América pós 9/11,
mas “Habibi” acabou saindo mais como um conto de fadas. Ela usa detalhes da
cultura islâmica e toma emprestado seu ritmo de contar histórias, como em “As
mil e uma noites”. É uma história de amor entre duas crianças escravas,
sexualmente abaladas, com desertos, haréns e favelas como cenário. É seco,
espiritual e sexual. (THOMPSON apud NAVEGA, 2009).
Então, Habibi não é uma resposta direta ao
11 de setembro, é um conto de fadas moderno “como os antigos foram”, nas
palavras de Franz Lima já citadas aqui. É uma grande história que aborda
questões sobre capitalismo e acúmulo de riquezas (como a água nos haréns do
sultão), o amor, o espírito e o sexo, além de questões ambientais. Mas nos
concentraremos em uma narrativa envolvendo os povos do
livro, presente
nessa obra.
Para os
cristãos acostumados com o Gênesis é sabido que Isaque, filho
de Abraão com Sara foi levado pelo pai a um local de sacrifício a mando de
Deus. Entretanto, para a narrativa islâmica, Abraão teria tido um filho com
Agar, escrava entregue a ele pela própria esposa, e ao filho deram o nome de
Ismael. Atentem-se às próximas ilustrações:
Fig. 03: THOMPSON. 2012. p.47
Como podem ver, Thompson cita o mesmo fato sob dois
pontos de vista, mostrando não apenas a diferença entre as religiões, mas as
semelhanças embrionárias de onde ramificaram as narrativas que deram origem a
seus povos. Fica ainda mais claro:
Fig. 04: THOMPSON. 2012. p.618
De
Ismael até Maomé ou de Isaque até Cristo. “Qual foi o filho?”, pergunta
Thompson (2012, p. 48). Quem Abraão levou para o “abate”? Qual a verdadeira história?
Qual o verdadeiro Messias e, consequentemente, qual o povo escolhido por Deus?
Não cabe a mim, como historiador, tentar provar qual a verdade, porque isso
envolve, mais do que evidências históricas e provas materiais, questões de fé e
de vivência espiritual que estão muito além das narrativas que eu, ou
pesquisadores mais eficientes, possamos traçar. E digo isso baseado na teoria
de Bhabha:
O que é
teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além
das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles
momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças
culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração
de estrategias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novas
signos de identidade e postos inovadores de colaboração contestação, no ato de
definir a própria ideia de sociedade (BHABHA, 2013, p. 20).
Com
essa citação quero dizer que não é a procura da verdade subjetiva originária o
que deve interessar ao historiador hoje, mas sim problematizar a articulação da
diferença. Alguém pode dizer que Ismael foi inventado quase 700 anos depois de Cristo.
Se uma coisa é verdade e outra é mentira, mesmo a busca pela verdade histórica
devendo ser sempre a utopia do historiador, o que mais interessa hoje é
perceber como essas narrativas se elaboram e quais estratégias montam para
redefinir a sociedade que constroem, é entender como o discurso dessas
histórias constroem as narrativas dos povos-nações. Tudo isso torna-se mais
interessante quando percebemos que o resultado e a moral dessas histórias,
tanto na Bíblia quanto do Corão, são semelhantes, reencontrando novamente um
fato em comum. No caso de Ismael ou Isaque, Maomé ou Cristo, Thompson responde
a pergunta com o que há de comum nessas
narrativas: qual das crianças foi executada? Nenhuma. “O anjo Gabriel trouxe um
carneiro para ser oferecido no lugar deles” (2012, p. 646).
Um
outro ponto que me chamou a atenção que fiz na leitura de Habibi com olhos de Bhabha, foi a
discreta passagem onde Dodola caminha pelo centro de Vanatólia, uma cidade
“tipicamente” árabe, mas hibridizada com elementos ocidentais: as vitrines com
biquines ou moda íntima, as motocicletas, os letreiros luminosos, as gravatas,
os ternos. No meio de toda a movimentação ela percebe mulheres vestindo shorts e saias, deixando os cabelos
soltos em um grande contraste ao que imaginamos ser os hábitos das mulheres
árabes. Sentindo-se confortável com isso, Dodola baixa o véu, mostrando os cabelos,
e continua a andar pelo comércio (fig. 05), mas logo em seguida é abordada de
forma grosseira por homens no meio da rua (fig. 06), provavelmente julgando-a
uma mulher “promíscua”, como
devem parecer as mulheres ocidentais aos olhos daqueles mais fundamentalistas
islâmicos.
Fig. 05: THOMPSON. 2012. p.615
Fig. 06: THOMPSON. 2012. p.616
A
passagem lembrou-me novamente Bhabha, que disse o seguinte durante uma
entrevista ao jornal O Globo:
Nenhum indiano estava no tempo ou no
lugar, na condição de cidadania, para poder considerar o que estava acontecendo
a eles. Eles negociaram a situação. Eles tinham um modo de absorver certas
ideias progressistas do Ocidente, porque se davam conta de que certas ideias de
modernidade melhoravam o seu mundo. Eles aceitavam a modernização, mas não
necessariamente a bagagem ideológica, ética ou dos costumes da ocidentalização.
É dessa experiência, acho eu, que advêm tanto o meu conceito de hibridização
como o de cosmopolitismo vernacular (2012).
Ora!
Dodola viu que andar de cabelos soltos era “bom”, e decidiu absorver essa ideia
“progressista” do ocidente. Não cogitou, entretanto, que as pessoas ao redor
não aceitariam a bagagem ideológica que isso acarretaria. Essa discreta
passagem no meio de tantas páginas da obra Habibi nos apresenta
novamente todo o conflito de que nos fala Bhabha sobre a vivência dos povos
fronteiriços, que é comum ao hibridismo cultural.
Ainda tomando como exemplo essa passagem de Habibi,
voltamos novamente à entrevista de Bhabha ao jornal O Globo, quando ele conta
uma historinha sobre uma moça que encontrara dentro de um trem:
Era uma jovem coberta por um véu,
apenas os olhos aparecendo. As faces de todas as demais pessoas estavam à
vista, e aquilo me chocou. E minutos depois o trem pára e ela se levanta para
sair. Quando passou por mim, olhei e descobri que as suas costas estavam
completamente à vista. E ela usava uma calça jeans que chegava até as suas
ancas, e tinha uma pequena tatuagem. Mas seu rosto estava mascarado. Duas
coisas eram claras para mim. Primeiro, que na nossa cultura sempre parecemos
querer colocar todos os tipos de comportamento na panela maior da identidade. A
maneira de se vestir, de falar, tudo tem de formar uma noção composta de
identidade, aí nos sentimos seguros. Acho que isso é o problema real nesse
caso. Segundo, não devemos ler essas coisas como marcas de identidade, mas como
mensagens misturadas, diferentes. De um modo engraçado, esse era o direito da
jovem de brincar com os diferentes tipos de linguagens, expectativas, normas e
códigos de uma esfera pública metropolitana pós-migração ou da diáspora (2012).
A grande diferença entre essa história de Bhabha e a
passagem de Habibi é que uma se passa em Vanatólia, uma ponte cultural
entre ocidente e oriente[4], e a outra se passa em
Berlim, um grande centro cosmopolita ocidental. Bhabha impressionou-se com o
véu cobrindo o rosto da moça no vagão do trem porque era diferente do contexto
cultural alemão onde estava e, talvez por isso, a moça não se deixou intimidar
como Dodola e vestiu o véu, mas deixou as costas à mostra, vestindo também uma
calça jeans que mostrava suas “ancas”. Evidentemente, Bhabha não reagiu
de forma grosseira como os homens do mercado em Habibi em relação à
estonteante moça de costas nuas senão vestida apenas com uma discreta tatuagem,
mas muito provavelmente soube apreciar o hibridismo misterioso da moça de rosto
coberto e de outras partes à mostra... Se era, ou não, uma forma engraçada da
moça lidar com os códigos metropolitanos de uma lógica migratória
pós-colonialista, só podemos afirmar que Bhabha está certo quanto ao hibridismo
cultural e que a moça, apesar de poder “chocar” as pessoas do vagão, não sofreu
nenhum tipo mais grave de represália por seus modos, pois a mistura dos povos
evidencia as diferenças, mas abranda os conflitos.
Ainda existem muitos elementos importantes que poderiam
ser identificados e cruzados entre Bhabha e Habibi, mas deixo minha
contribuição por aqui e espero ter despertado o interesse para que outros
colegas possam traçá-las.
Referências
EICHENBERG, Fernando.
Homi Bhabha e o valor das diferenças. Disponível
em: < http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/01/14/homi-bhabha-o-valor-das-diferencas-426300.asp> Publicado em 14 de janeiro de 2012. Acesso em 03 de agosto de
2013.
LIMA, Franz. Resenha da Graphic
Novel "Habibi" de Craig Thompson. Disponível em: <http://apogeudoabismo.blogspot.com.br/2012/09/resenha-da-graphic-novel-habibi-de.html> Publicado em setembro de 2012. Acesso em 03 de agosto de
2013.
VITRAL, Ramon. Craig Thompson fala sobre os oito anos de criação
de 'Habibi'. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,craig-thompson-fala-sobre-os-oito-anos-de-criacao-de-habibi,817622,0.html > Publicado em 02 de janeiro de 2012. Acesso em 03 de agosto
de 2013.
MIRANDA, André. Política, religião e amor em
quadrinhos: entrevista com Craig Thompson. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/07/28/politica-religiao-amor-em-quadrinhos-entrevista-com-craig-thompson-457500.asp > Publicado em 28 de julho de 2013.
[1]Mestrando
em História Cultural pela UFPI, com o Projeto “Salão de Humor do Piauí: Uma
história de risos e cabelos brancos”, bernardohq@hotmail.com.
[2]Nos
Estados Unidos, o prêmio Eisner é o mais importante dado às histórias em
quadrinhos. Habibi foi indicado à categoria de Melhor Álbum de 2012, mas
não levou. Craig Thompson, o autor, entretanto, ganhou o prêmio na categoria
Melhor Escritor/Ilustrador por este trabalho. No Brasil, Thompson ganhou o
HQMix de 2013 como Melhor Desenhista Estrangeiro por Habibi.
[3]Agradecimento
especial ao colega Jaislan Monteiro, por ceder, mesmo sem seu conhecimento, o
uso da imagem criada por ele para sua explicação sobre Bhabha durante
seminário.
terça-feira, 14 de abril de 2015
QUADRINHOS COMO LINGUAGEM, RECURSO DIDÁTICO E OBJETO DE PESQUISA
Bernardo Aurélio de
Andrade Oliveira
Resumo: As
histórias em quadrinhos são imagens que podem ser lidas como qualquer texto.
Assim como o texto verbal possui um vocabulário e uma gramática, as histórias
em quadrinhos, da mesma forma que os demais textos não-verbais, possuem um
conjunto de elementos que podem ser transcodificados e compreendidos. Quando
apreendida, essa gramática visual pode ser aplicada.
Palavras-chave: texto verbal, texto não-verbal,
gramática, história em quadrinhos, escola.
INTRODUÇÃO
Recentemente
recebi uma proposta de fazer um minicurso sobre histórias em quadrinhos (HQs)
dentro da programação de uma semana de história de uma Faculdade em Teresina.
Meio receoso, porque nunca havia ministrado algo com 20 horas/aula de duração,
aceitei a proposta. O primeiro passo foi folhear alguns dos livros que tenho e
que já li sobre o tema abordado: Quadrinhos como linguagem, recurso didático e
objeto de pesquisa. Procurei também alguns textos que já havia produzido ou
auxiliado na produção, procurando elaborar meu próprio material a ser trabalho
em sala de aula. Eis-lo aqui! Divirtam-se!
O título
deste texto, e do referido minicurso, sugere a linha que deveremos percorrer em
nossa discussão, partindo do pressuposto dos quadrinhos como linguagem,
entretanto, precisamo ter como ponto inicial uma simples definição: o que são
história em quadrinhos? Segundo Scott McCloud, em “Desvendando os Quadrinhos”,
tratam-se de “imagens pictóricas e outras justapostas em sequencia deliberada
destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”
(2005. pg 09). Na verdade, Scott tentou esmiuçar o termo “arte sequencial” ,
criado por Will Eisner em seu livro “Quadrinhos e Arte Sequencial”, que é um
estudo básico para qualquer discussão sobre quadrinhos hoje em dia. Scott e Eisner construíram a base teórica
ocidental dos quadrinhos.
Partindo
desta definição, as HQs são bem mais que apenas as revistinhas que encontramos
nas bancas de jornais. Scott cita, entre vários outros exemplos de quadrinhos,
as pinturas rupestres das cavernas, manuscritos pré-colombianos incas e maias,
a Coluna de Trajano, as pinturas e os hieróglifos egípcios, as ilustrações que
acompanhavam os trovadores medievais e, por fim, às publicações que surgiram
com a evolução da imprensa no século XIX.
Todas essas
imagens, da pré-história à idade moderna, eram arte sequencial, ou seja “um
conjunto e uma sequencia. O que faz do bloco de imagens uma série é o fato de
que cada quadro ganha sentido depois de visto o anterior; a ação contínua
estabelece a ligação entre as diferentes figuras. Existem cortes de tempo e
espaço, mas estão ligados a uma rede de ações lógicas e coerentes” (MOYA. 1977.
pg 110).
As HQs, como
as conhecemos hoje, são frutos da revolução industrial, da imprensa, e da
comunicação de massa. Elas tornaram-se um produto publicado dentro dos jornais,
depois ganharam espaço próprio (revistas e livros) e, por fim, foram aceitas
como arte, tendo sido reconhecidas seus elementos próprios de linguagem e
comunicação.
Uma
curiosidade importante é a denominação que damos para os quadrinhos ao redor do
mundo. Nos Estados Unidos os primeiros quadrinhos eram tiras de humor que
tinham no cômico sua principal ferramenta. Por isso, os quadrinhos foram
chamados de Comic por lá, e assim são denominados até hoje. Na Itália são
chamados de fumetti, que significa fumaça, que na verdade são os balões
que saem da boca dos personagens onde estão suas falas. No Brasil e na Espanha
eles são chamados por um nome que eram títulos de uma publicação do gênero que
ficaram famosas na primeira metade do século XX, respectivamente Gibi e TBO. Em
Portugal e vários outros países da Europa, são chamadas de Banda Desenhada, porque
“banda” é como são chamadas as pranchetas ou páginas utilizadas para o desenho.
Mangá, o termo para quadrinhos em japonês significa algo parecido com o comic
norte-americano. Trata-se de dois kanjis que se traduzem como “desenho
humorístico”.
É importante
que saibamos que quadrinhos são uma arte em si, da mesma forma que cinema é
cinema e teatro é teatro, exatamente por causa de seus elementos linguísticos.
Digo isso por causa de um mal entendido muito comum, os que pensam que
quadrinhos são literatura. Não! Quadrinhos possuem uma linguagem verbal e
não-verbal. Vejam o que diz Paulo Ramos:
Chamar quadrinhos de
literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de procurar rótulos
socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (caso da literatura,
inclusive a infantil) como argumento para justificar os quadrinhos,
historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meio universitário.
Quadrinhos são quadrinhos. E,
como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar
os elementos narrativos. Há muitos pontos comuns com a literatura,
evidentemente. Assim como há também com o cinema, o teatro e tantas outras
linguagens.(RAMOS. 2009. pg 17).
Essa questão
levantada por Ramos é recorrente porque quadrinhos ainda estão firmando sua
condição de arte. É bastante comum em editais de apoio à cultura, ou mesmo nos
PCN, os quadrinhos serem avaliados como literatura. Essa confusão se dá,
basicamente porque quadrinhos são considerados um gênero literário, como o
conto e a poesia. Outro fator que incentiva essa confusão são as adaptações de
obras literárias para os quadrinhos. Da mesma forma que o cinema adapta um
“Bras Cubas” de Machado de Assis e continua sendo cinema, uma história em
quadrinhos que adapta a mesma obra continua sendo quadrinhos, e não literatura.
A LINGUAGEM DOS
QUADRINHOS
Certo,
quadrinho é arte sequencial. É narrativa gráfica. Isso quer dizer que são
imagens ligadas entre si através de cortes que dão a impressão de continuidade
entre elas. Essa continuidade é o que dá narrativa e noção de tempo e espaço
aos quadrinhos.
É
fundamental entendermos um dos pontos que considero dos mais importantes nos
quadrinhos, que é o que há entre essas imagens sequenciadas, chamado de
“entre-quadros” ou “calha”. Esse espaço entre as imagens, às vezes (na maioria
delas), é bem definido por uma diagramação, ou lay-out, clássicos, onde os
quadros estão bem divididos sobre um fundo branco. Às vezes o requadro, o
“quadrinho” em si, nem existe, pois as imagens são articuladas de maneira a
apenas sugerir este entre quadros invisível, como em uma cena de caça numa
pintura rupestre que se estende por toda uma parede dentro de uma caverna: imagens
seqüenciadas que narram uma história em momentos diferentes, mas que não possuem
o quadrinhos em si, porque o entre quadros, o que divide um momento do outro,
esse instante invisível que construímos em nossas cabeças, é mais importante do
que a linha que forma o requadro, o quadrinho, o recorte. Enfim, é neste
espaço, nesta calha, que acontece um processo fundamental na cabeça do leitor:
o movimento, a transação, a percepção do tempo e do espaço. O leitor cria isso.
Ele precisa compreender o que acontece aí. Mentalmente, o quadrinho se
transforma em algo parecido com um filme, principalmente quando podemos
imaginar o som das coisas também.
O som nos quadrinhos possuem um elemento
muito forte, que são as onomatopéias: BUM! CABRUM! CRASH! SMAC! Essas coisas...
Já pararam para pensar em como funciona a leitura desse som em nossas cabeças? Como
esse som que é produzido e impresso numa folha de papel e executado por nós? O
som ambiente de uma rua? O burburinho das pessoas num local cheio de gente? A
voz fanha ou grave de um personagem? A música que toca e cria atmosfera? Essas
coisas existem nos quadrinhos e nós, como leitores, precisamos perceber isso
para consumirmos plenamente sua narrativa.
As onomatopeias são
representações de sons que, normalmente não conseguimos pronunciar. Dessa
forma, um “BUM!”, que significa uma explosão dentro deste vocabulário sonoro
que conhecemos, representa bem mais que um simples “BUM”. E experiência
estética só é completa se reconhecermos as potencialidades que esse som pode
representar, se tivermos e pudermos acionar nossa memória sonora. Em nossa
cabeça, esse “BUM” terá a força de uma pequena explosão de espoleta ou de uma bomba
atômica principalmente devido à forma como a onomatopéia assume como imagem. É
a forma do desenho da onomatopéia que nos fornecerá elementos para interpretarmos
o som que elas representam. Da mesma forma se dá com o texto falado. Vejam essa
ilustração de Will Eisner:
Percebem
como a fonte utilizada no texto é fundamental para transmitir um sentimento que
o personagem expressa? Claro que a contextualização do desenho do personagem é
importante para entendermos a mensagem, mas eu posso interpretar o que vejo da
seguinte forma: O velho tem ódio e terror nos olhos. Está amaldiçoando alguém.
Você percebe que o velho está sangrando, da mesma forma que suas palavras.
Palavras que, dispostas da maneira que estão, ocupando o espaço do mesmo
tamanho do personagem, todas caixa alta, fazem parecer que ele está gritando,
com uma voz tremula e medonha, mesmo com a ausência do balão.
Como eu
dizia, quadrinhos são essencialmente imagens, claro que, na maioria da vezes,
as imagens são seguidas de textos verbais. Essas imagens podem ser desenho,
pintura, gravura, fotografia, uma série de coisas. A forma como elas são
ordenadas, objetivando narrar algo, é o que torna essas imagens uma história em
quadrinhos. Essas imagens criam textos não verbais. Muitas HQs não possuem
letras, por isso é necessário entender o texto, a mensagem que é transmitida,
através, unicamente, da imagem. É importante educar o leitor, familiarizando-o
com a interpretação das imagens.
O
relacionamento dessas imagens exige do leitor experiências que o permitam
compreender as imagens. É sabido que as pessoas só reconhecem imagens se lhes
for fornecido uma bagagem cultural que o permita interpretá-las. É preciso
ensinar ao leitor sobre o que ele está vendo. Ele entende o que vê numa página
de quadrinho? Que interpretação ele é capaz de fazer? Interpretar quadrinho é
interpretar textos.
O processo
de leitura de um texto pode acontecer naturalmente quando o leitor observa ou
atenta com cuidado um determinado objeto. Pressupondo que este objeto seja
entendido como um texto, nossa mente, com esforço e ferramentas certas, é capaz
de decodificar elementos que o compõe e então nós poderemos entender sua
mensagem. Esse processo é bem simples de compreender quando o objeto em si
trata-se de um texto verbal, pois normalmente estamos familiarizados com a
gramática e seus ícones fonéticos que compreendemos desde o início de nossa
alfabetização. Mas isso também acontece quando tentamos entender uma imagem que
não seja notoriamente uma letra de um vocabulário conhecido, podendo ela ser um
desenho, uma pintura ou uma fotografia, ou mesmo um gesto, um movimento. Essa
imagem trata-se de um texto não-verbal.
Compreender
uma imagem requer conhecer também os ícones de sua gramática específica, mas
qual a gramática de um texto não-verbal? Ela existe? Pode existir? Entendemos
que sim, entretanto, não buscamos definir uma gramática completa do texto
não-verbal. Precisamos entender a construção e o desenrolar da linguagem das
histórias em quadrinhos (HQs), compreender sua narrativa, seu tempo, e a
espacialidade que essas obras nos apresentam. Entender o processo de leitura de
textos que praticamos ao folheá-las.
Para que
compreendamos esses mecanismos é preciso que formalizemos uma gramática da
imagem. Necessariamente uma gramática mais flexível que qualquer outra, afinal,
o texto não-verbal, a imagem pictórica, por mais concreta que seja, ainda
permite uma gama variável de interpretações, pois seus ícones não são tão
fáceis de si identificar como uma letra “a”.
As letras de
um texto são imagens, mais precisamente “signos lingüísticos”. A imagem que
forma a letra “a” pode não dizer muita coisa de forma isolada, sem
contextualização ou conceito maior que o da própria fonética, mas quando estes
signos unem-se a outros, formam um significado mais amplo. A leitura destes
textos produz, na maioria dos casos, um resultado imagético, o leitor consegue
visualizar mentalmente o que o texto descreve. O texto é um código que precisa
ser interpretado. Quando escrevemos, codificamos. Quando desenhamos, também.
Existe uma
proximidade muito grande entre escrever e desenhar, entretanto, é
impressionante o número de pessoas que possuem uma caligrafia belíssima, mas
não sabem desenhar um “olho”. Você já tentou desenhar um “a” bem grande numa
folha? Não é tão simples como possa parecer. Para muitos desenhistas é muito
mais fácil fazer um “olho”. Escrever é como desenhar. A letra é um desenho,
formados de linhas ou pinceladas.
Fig. 01
Como você pode simplesmente identificar o
conjunto de linhas acima como o fonema “a”? Como você imagina um som partindo
de algo tão simples? Da mesma forma, ao observarmos as imagens abaixo,
identificamos elementos, transcodificamos a mensagem e entendemos o “olho”.
Fig. 02
Qual dessas
imagens possui mais informações? Qual a mais difícil de ser compreendida? A
primeira, uma imagem/texto verbal, exige o conhecimento da gramática para ser
decodificada. As duas seguintes, imagens/textos não-verbais, necessitam de
outro conhecimento para também serem traduzidas, entretanto, em todos os casos
é preciso linguagem para que sejam produzidas. A linguagem influencia muito a
informação. No exemplo em questão, a palavra, o desenho e a fotografia abordam
o mesmo tema, entretanto, por se tratarem de linguagens diferentes, é
impossível determinar qual é mais difícil de compreender ou qual possui mais
informações, porque isso depende do leitor.
Alberto
Manguel, autor do livro “Lendo Imagens”, nos adverte de que todo texto é
preconcebido em imagens do autor, que todo processo de pensamento requer
imagens (2006. Pg. 21), o que reforça nossa compreensão de que os textos
verbais podem ser sempre visualizados em outros códigos que não a própria
“letra”. Manguel afirma ainda que “a existência se passa em um rolo de imagens
que se desdobra continuamente” (2006, p. 21).
Will Eisner,
em seu livro “Quadrinhos e Arte Seqüencial”, nos revela a relação direta entre
as representações fonéticas em suas imagens:
As palavras são feitas de
letras. Letras são símbolos elaborados a partir de imagens que têm origem em
formas comuns, objetos, posturas e outros fenômenos reconhecíveis. Portanto, à
medida que o seu emprego se torna mais refinado, elas se tornam mais
simplificadas e abstratas (EISNER., 2001, p.14).
Para
exemplificar melhor, ilustra a citação:
Fig.03. Eisner. 2001. p. 15
Se pudermos
entender a proximidade dessa relação entre o texto escrito e a “realidade” em
si que a originou, se entendermos que todas as imagens criadas são apenas
representações de uma realidade codificada, poderemos então fazer também o
processo inverso e entender como esses textos não-verbais podem ser
interpretados e poderemos ensinar às pessoas a aprenderem a ler as informações
contidas nas imagens não-verbais.
Nos casos
acima, podemos entender como a imagem de um homem de joelhos pode ser
interpretado como um “símbolo básico de devoção”. Entretanto, Eisner também nos
lembra (2001, p.15) que um homem de joelhos também pode significar um pedido de
clemência ou de casamento. O que nos leva à considerar sempre o contexto da
imagem (texto não-verbal), da mesma forma que acontece com o texto verbal.
Como bem
sabemos, a gramática é um manual de normas e regras que estuda a relação entre
as palavras e seus significados e ela é fundamental para qualquer texto,
entretanto, no processo de comunicação, há controvérsias quanto a sua
importância. Muitas pessoas, a grande maioria delas na verdade, se comunicam
sem entender realmente como essa gramática funciona, mas ela existe e se adapta
com o passar dos tempos, das relações e das formas de expressões. Traduzir
estes textos verbais, ou melhor, transcodificar a mensagem das letras para um
outro meio, para um meio imagético, é um processo que precisamos fazer cotidianamente
se quisermos nos comunicar: transformar o verbal em não-verbal. É mais preciso
que visualizemos a mensagem do que entendermos como sua gramática funciona.
É comum
alguém dizer que determinado texto é tão plenamente descritivo que chega a ser
fotográfico. Ler é como estar vendo. Essa pessoa consegue visualizar o texto
porque possui as ferramentas adquiridas durante sua vida que o permite
interpretar os códigos. “Só podemos ver as coisas para as quais já possuímos
imagens identificáveis, assim como só podemos ler em uma língua cuja sintaxe
gramática e vocabulário já conhecemos” (MANGUEL, 2006, p. 27). Se se lê “minha
terra tem palmeiras onde canta o sabiá” e caso o leitor não conheça um sabiá,
ele não poderá fazer uma leitura correta do texto, pois talvez ele sequer saiba
que se trata de um pássaro. Pode até deduzir. Mas que pássaro é este? Da mesma
forma, alguém pode ver uma foto de um pássaro e dizer apenas ser um pássaro
dentre tantos que existem, ele não reconhece que aquele é um sabiá. A informação,
em ambos os casos, estará incompleta.
A gramática
nos ensina a interpretar de alguma maneira o texto e, como já sabemos, a letra
é uma imagem, mas o texto também está presente em outras imagens, seja ela uma
pintura, uma fotografia ou um desenho. Baseando-nos nessa proximidade do texto
escrito e visual, esta gramática da língua pode nos ajudar a ler essas outras
imagens? Será necessário ou possível criar uma gramática visual, diferente da
verbal?
Will Eisner
aborda curiosamente esta questão num exemplo claro desta gramática visual:
A descrição da ação nesse
quadro pode ser esquematizada como uma sentença. Os predicados do disparo e da
briga pertencem a orações diferentes. O sujeito do “disparo” é o vilão, e
Gerhard Shnobble é o objeto direto. Os vários modificadores incluem o advérbio
“Bang, bang” e os adjetivos da linguagem visual, tais como a postura, o gesto e
a careta.
O segundo quadro conclui o
subenredo, e novamente usa a linguagem do corpo e a organização do padrão
gráfico para delinear os predicados. (2001, p. 10)
Fig.04. Eisner. 2001. p. 09
Trata-se de
uma análise sintática da imagem, colocando cada termo ou elemento do texto em
sua exata posição. Eisner provou que isso é possível em uma história em
quadrinhos que, afinal, possui narrativa textual, tempo, ações, orações por
assim dizer. Entretanto, esta aplicação ainda é superficial na interpretação de
uma imagem, mas nos possibilita reconhecer os elementos necessários para uma
boa comunicação.
Um dos
elementos básicos dos quadrinhos são os balões. Paulo Ramos diz o seguinte:
O balão (...) possui dois
elementos: o continente (corpo e rabicho/apêndice) e o conteúdo (linguagem
escrita ou imagem. O continente pode adquirir diversos formatos, cada um com
uma carga semântica e expressiva diferente. A chave para entender os diversos
sentidos está na linha que contorna o quadrinho (...) O efeito é obtido por
meio de variações no contorno, que formam um código de sentido próprio na
linguagem dos quadrinhos. As linhas tracejadas sugerem voz baixa ou sussurro. A
forma de nuvem revela o pensamento ou imaginação da figura representada. O
sentido dos traços em ziguezague varia conforme o contexto situacional. Podem
indicar, por exemplo, voz alta, gritos, sons eletrônicos (2009. Pg 36).
Dessa forma, o balão torna-se um recurso
comunicativo muito rico e que pode se apresentar de diversas maneiras,
inclusive dando ao quadrinista a possibilidade de criar variações de balões para
as mais diversas necessidades. Observem essa imagem do personagem Spawn:
Percebam que o Spawn é medonho,
assustador. O rosto lembra uma caveira. O uniforme é agressivo e a postura
parece colocar o personagem em cena. É teatral. Isso é importante para
imaginarmos que tipo de voz ele pode ter. O balão nos ajuda bastante, pois
possui um contorno grosso e escuro, isso nos passa uma impressão de voz densa e
grave. Ele está dizendo: “Someone’s going to die for this!!” (Alguém irá morrer
por isto!!). Percebam que “DIE” e “THIS” estão bem destacados. Então, quando lemos
isso, juntando todas essas informações, imaginamos uma voz gutural, cavernosa.
E ele está furioso e vai matar alguém por causa disso, sendo inclusive bem
enfático no “die”. O texto nos dá uma indicação de intensidade nesse momento
exato da fala. É importante perceber que muitos balões trazem certas palavras
grifadas ou em negrito. Trata-se de uma pista para como devemos ler certas
falas.
QUADRINHOS EM SALA
DE AULA
Como usar
quadrinhos em sala de aula? Melhor: porque usar quadrinhos em sala de aula? Um
fato é inegável: os quadrinhos estão nos livros das escolas, principalmente nos
de gramática, redação e história. Não que não possa ser usado em outras
disciplinas... Depende de como o professor se relaciona com os quadrinhos, mas
vamos devagar...
Waldomiro
Vergueiro, no livro Quadrinhos na Educação, diz o seguinte:
A última virada do século (representou o coroamento de uma
nova fase para as histórias em quadrinhos no Brasil (...) Por um lado,
gradativamente elas passaram a ser entendidas pela sociedade não mais como
leitura exclusiva das crianças, mas, sim, como uma forma de entretenimento e
transmissão de saber que podia atingir diversos públicos e faixas etárias. Por
outro, paulatinamente deixaram de ser vistas de forma pejorativa ou
preconceituosa, inclusive nas áreas pedagógicas e acadêmicas (...) Tais
publicações eram interpretadas como leitura de lazer e, por isso, superficiais
e com conteúdo aquém do esperado para a realidade do aluno. Dois dos argumentos
muito utilizados é que geravam “preguiça mental” nos estudantes e afastavam os
alunos da chamada “boa leitura”. (2009. pg.9)
Muitas
dessas críticas contra os quadrinhos se devem porque no início da década de
1950 o Dr. Fredric Wertham publica o livro “Sedução do Inocente”, baseado em
sua tese associativa de que os quadrinhos estavam ligados a um grande número de
crimes ou criminosos. Inicia-se “a caça às bruxas” pragmática durante todo o
macarthismo, que lutava contra itens considerados subversivos na comunidade
norte-americana. Essa política de fogueiras contra a leitura das crianças marca
de sobremaneira todo o tratamento dado durante quase toda a segunda metade
daquele século: a escola, a família, a igreja, o governo, todos condenam essas
publicações com medo de que seus filhos tornem-se delinqüentes a partir da
leitura. As conseqüências disso para a educação foram enormes e ainda são
sentidas até hoje, quando muitos ainda não se desapegaram da imagem negativa
que foi divulgada naquele período. (RAMA E VERGUEIRO, 2005, p.13).
Somente
nas últimas décadas do século XX foi que, com o desenvolvimento das ciências da
comunicação e dos estudos culturais, os veículos de comunicação de massa
passaram a ser entendidos com suas próprias linguagens. Na Europa, passa-se a
utilizá-las como parte do processo de aprendizado em História, por exemplo, e
na China, Mao Tse-Tung utiliza-a de forma ideológica na educação de uma nova
nação, com quadrinhos militares baseados em modelos de vida exemplares. (RAMA E
VERGUEIRO, 2005, p.20).
Mas também há outra tese sobre o porquê
dos quadrinhos já terem sido o principal culpado pela delinqüência
infanto-juvenil: as HQs já foram o principal produto de consumo de massa para
entretenimento desse público. Hoje, os pais, as Ligas das Senhoras Religiosas e
as Associações dos Bons Modos ao redor do mundo culpam a TV e a Internet. Menos
mal pra gente que curte quadrinhos. Em compensação, os quadrinhos resumiram-se
a um público exponencialmente inferior ao que era nas décadas de 40 a 60 do
século passado. O mercado encolheu, mas a arte dos quadrinhos concretizou-se em
outros gêneros e, talvez, por isso mesmo, por esse redirecionamento do mercado,
os quadrinhos puderam experienciar por outras
áreas sem grandes preocupações.
O
fato é que, da década de 1990 pra cá, de acordo com Rama e Vergueiro (2005,
p.21), no Brasil, experiências sutis mostraram a boa aceitação dos quadrinhos
em paradidáticos nos primeiros níveis de ensino. Aos poucos, várias disciplinas
foram submetendo-se à tentativa e todas se revelaram positivas. Nos primeiros
anos da década de 1990, as HQs tornam-se oficialmente reconhecidas pela LDB
(Lei de Diretrizes e Bases) e pelos PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais),
que explicavam como os quadrinhos auxiliavam a educação, afinal, os estudantes
querem ler os gibis; palavras e imagens ensinam de forma mais eficiente,
incentivam o hábito da leitura, enriquecem o vocabulário, obrigam o leitor a
pensar e imaginar.
Vamos pensar
um pouco sobre por que é fácil para um professor utilizar música ou filme em
sala de aula? Porque os professores são familiarizados com o meio. Vocês,
professores são educados para assistirem filmes e conseguem imaginar qual é o
melhor para tratar de determinado assunto, mas vocês, de modo geral, não
conhecem quadrinhos além da Mafalda, da Mônica, do Homem-Aranha e meia dúzia de
outros super-heróis. Às vezes é difícil imaginar como utilizá-los. Eu sou
professor de história e tenho algumas facilidades com isso, pois consigo fazer
uma discussão histórica lendo “A Morte do Super-Homem”, por exemplo, um
quadrinho banal, feito para engordar o cofre da editora, mas que pode ser lido
como uma crítica ao estilo de vida norte-americano, porque isso é uma das coisas que podemos
interpretar do símbolo que é o Super-Homem.
A questão é: os professores que
querem usar quadrinhos em sala de aula tem o hábito da sua leitura? Só
poderemos utilizar quadrinhos na sala de aula se os professores lerem
quadrinhos da mesma forma que lêem aos filmes e às músicas, porque tudo isso
também são textos. Eu não tenho muitas dicas a dar para um professor de
matemática, por exemplo. O professor de matemática tem de ler quadrinhos,
conhecer a sua linguagem para daí extrair exercícios úteis dos quadrinhos em
sala de aula. Mas vamos para algumas dicas no ensino de história. Vergueiro
(2005, p.105) sugere:
O
ensino de História em sala de aula pode ser facilitado com os recursos dos
quadrinhos. Primeiramente, o alunado deve ser apresentado a noções de tempo
utilizadas nas estórias, se acontecem no presente, passado ou em um futuro
remoto. Deve ser trabalhada a relação temporal apresentada em cada quadro
(ações representadas no desenho) e entre cada quadro.
Buscando
analisar o conteúdo de cada estória, o professor pode encontrar temas locais e
universais para abordar, pois os gibis apresentam temas variados, contam
histórias de guerras, de acontecimentos importantes, de personagens marcantes,
assim como apresentam estórias do cotidiano, das minorias, entre outras.
A
análise historiográfica de um gibi conta muito sobre a História, a partir de
dois focos principais: retrato do período temporal em que a estória se passa e
o momento em que a HQ é feita. Em verdade, a maioria das HQs revela bem mais
sobre o momento em que foram produzidos, toda a conjuntura e o contexto que
levaram aquela história a ser contada daquela forma. Um ótimo exemplo disso é a
coleção de revistas “Asterix”, que retrata bem o momento do expansionismo
romano, mas que também sempre traz à tona a leitura de mundo contemporânea dos
franceses (criadores do título) sobre todos os personagens de outros países que
aparecem nas histórias, assim, os ingleses serão sempre frios e metódicos, por
exemplo.
Posso
citar aqui que existem uma grande variedade de quadrinhos baseados em momentos
históricos: Gen – Pés Descalços (sobre Hiroshima e Nagasaki), Palestina – Na
Faixa de Gaza, Pindorama – A outra história do Brasil, Maus (sobre judeus na 2ª
Guerra), 300 de Esparta, Persepolis, várias publicações da editora Escala.
Enfim, há uma grande variedade, inclusive de adaptações literárias que também
são uma ótima fonte de análise histórica. A exemplo do Piauí, recentemente
lançamos Foices e Facões – A Batalha do Jenipapo, de minha autoria, junto com
meu irmão Caio Oliveira.
Também
existem HQs biográficas, ou semi biográficas, fonte inquestionável de
conhecimento histórico. Analogias como as encontradas em “X-Men”, onde mutantes
com poderes geneticamente evoluídos são vítimas de fortes preconceitos,
nasceram da real discriminação que várias minorias norte-americanas sentiam na
década de 1960.
O
professor de história, numa ação interdisciplinar, unindo esforços com
professores de redação e arte-educação, ainda pode solicitar de seus alunos que
eles produzam sua própria história em quadrinhos sobre um fato do conteúdo
trabalhado na sala de aula. O processo de criação desse gibi será muito
produtivo e os alunos aprenderão bastante sobre o assunto abordado.
Não
quero aqui fazer uma longa exposição de exercícios em sala de aula. Imagino
que vocês entendam o quão importante os quadrinhos são e aprendam a conhecê-los
e a utilizá-los em sala de aula. Agora se vocês não sabem o quanto eles são
importantes informem-se compreendendo o seguinte: são obras de arte. Não vá
questionar os valores das artes e tentar descobrir se uma é menor que a outra.
No mundo “pós-moderno” isso é impossível. Entenda que quadrinhos são arte e que
muita gente gosta de lê-los por que são mais acessíveis e mais rápidos de
compreender, na maioria das vezes. Mas se você não conhece bem quadrinhos e
hoje imagina que se tratam apenas de super-heróis e turma da Mônica, nós temos
um problema. Vá ler!
QUADRINHOS COMO
OBJETO DE PESQUISA
A
Escola dos Annales, ou Nova História, surgiu no final da década de 1920,
na França, e durante várias gerações de estudiosos, como Marc Bloch, Lucien
Febvre e George Duby, trouxe à academia a possibilidade de um estudo científico
em um terreno virgem, pouco ou desconsiderado anteriormente pela história
positivista ou marxista: tratava-se do campo sócio-cultural. A construção
histórica, que antes era feita baseada em uma concepção política e econômica,
tinha agora um vasto leque de caminhos para percorrer sobre assuntos e
abordagens novas ou não. Foi partindo desta concepção que autores como Carlo
Ginzburg, no livro O Queijo e os Vermes, puderam expor sua visão
renovadora sobre a História.
No
livro de Ginzburg encontra-se não apenas a valorização das minorias como
sujeitos históricos, mas a representação do mundo e do seu tempo através do
pensamento e da experiência de um único homem. Paralelo a isto se tem a
participação da história das mentalidades. O Queijo e os Vermes trata da
vida de um moleiro que se chocou contra a Igreja Católica medieval devido a
suas teses sobre a vida, o mundo e Deus. Dessa forma, Ginzburg mostrava que a
classe nobre ou clerical não era a única detentora do conhecimento e da
verdade, colocando em cheque o tradicional ensino da história.
Minha trabalho de conclusão de curso, Os
Quadrinhos pós-68, parte de uma concepção
semelhante, que apenas a Nova História poderia ter aberto o caminho. É bem
verdade que devido às concepções da escola novista, as histórias em
quadrinhos ganharam um pouco de notoriedade naqueles mais abrangentes e
completos livros da historiografia ou imprensa moderna, devido à crescente
utilização da história material e cultural, mas a participação desta arte,
historicamente falando, ainda está longe de ser a merecida. As histórias em
quadrinhos são tão ignoradas que até mesmo em volumosos livros sobre História
da Arte nada mais que alguns parágrafos são dedicados ao movimento Pop-Art, que
teria sido influenciado pelos comics norte-americanos, apenas isso.
Poderia
colocar que o elemento que norteou meu TCC foi apenas a tentativa de reformular
o conhecimento existente, apregoando a importância histórica dos quadrinhos,
mas busquei algo além disso. Construí-o a partir da necessidade de mostrar as HQs
como parte de uma história iconográfica amplamente desconhecida do ponto de
vista artístico e histórico. Utilizei desta produção cultural como fonte de
pesquisa, para a compreensão de uma sociedade ou de indivíduos que nela
viveram. Entendi o quadrinho como importante fonte na construção de um quadro
histórico, mais especificamente o quadro político-cultural da geração pós-68.
Na
verdade, o eixo do meu trabalho foi compreender o universo político e cultural
que vivenciaram os quadrinistas da geração pós-68. Foi estudar, analisar e, a
partir daí, construir o quadro social do momento.
A
escolha do ano de 1968 explica-se devido representar, não apenas no Brasil, mas
também em vários outros locais do mundo, como França e Alemanha, um período de
intensa busca de novas referências político-ideológicas. Representa um fenômeno
histórico que se construía há décadas e de vastas proporções, que buscava
mudanças sociais bastante significativas. É com base no espírito deste momento
tão fortemente característico, do qual culminou tamanhas manifestações, que me debrucei
sobre para saber como ele influenciou sua nova geração, ou seja, saber qual a
herança de “68”, passando desde as tumultuadas manifestações políticas até
sobre seus desdobramentos, nos planos dos costumes e da cultura.
Tinha
como pretensão estudar o universo cultural dessa geração, ou seja, o estudo dos
movimentos que nortearam a vida de tantos no período, como a contracultura, o
Tropicalismo, a jovem guarda, entre outros, e suas reverberações em diversos
tipos de arte, sejam literárias, plásticas ou cinematográficas, por que é
extremamente importante esta compreensão do contexto artístico.
Mas
eu precisava de um recorte específico. Meu objeto de pesquisa não poderia ser
todo e qualquer tipo de quadrinhos produzidos nesse período. Escolhi três
pessoas quadrinistas: Amauri Pamplona, Arnaldo Albuquerque e Antonio Amaral.
São artistas que produziram muito, principalmente Amauri, autor 87 revistas
intituladas O Grelo, 12 livros de cartuns e de Hai Kais. Em seu
material, por a enorme maioria ser inédita até hoje, encontra-se muita
informação sem medo de censura ou represálias sobre o período de ditadura
militar brasileira. Arnaldo publicou no ano de 1977, ainda em um regime
ditatorial, a revista Humor Sangrento, que é a primeira
publicação do gênero no Piauí. E Amaral, artista plástico, reconhecido
internacionalmente por sua revista Hipocampo.
Amauri
Gonçalves Pamplona Machado nasceu em 1942, é carioca, filho de mãe piauiense,
residente em Teresina desde 1984. Viveu a década de 1960 com maturidade
suficiente para entender o que aconteceu em 1964 e 1968. Reflexos dessas datas
são percebidos em sua produção já em 1967, em suas poesias, ou em 1969, com a
história em quadrinho (hq) Batalhas de Machões, além dos mais de oitenta
títulos do O Grelo, na década seguinte.
Arnaldo
Albuquerque, nascido em 1952, era muito jovem durante 1964/1968, mas amadureceu
na década de 1970 revelando um talento nato para retratar o Brasil, mais
particularmente o Piauí, em um período tão marcante. Engajou-se culturalmente e
produziu quadrinhos (Humor Sangrento), shows (Piau e Udigrudi, que contou com a
primeira participação de Maria da Inglaterra e Lena Rios), filmes (Adão e Eva
do Paraíso ao Consumo, Terror na Vermelha - junto com Torquato Neto), animação (Carcará Pega Mata e
Come), jornais (mimeografado Gramma, A Hora Fa-Tal), telas,
ilustrações...
Antonio
de Pádua Amaral, nasceu em 1962, ainda era criança na década de 1960, cresceu
nos anos 1970 e na década de 1980 começou a produzir material de qualidade,
como ilustrações para o mimeografado O Osso, que fazia críticas políticas e
sociais no final da ditadura militar. Mais tarde, em 1994, lançaria a
Hipocampo, importante título na história das histórias em quadrinhos do Brasil
ou mesmo no mundo.
Uma
curiosidade que acabou se revelando fundamental para a realização do meu TCC
foi a diferença de uma década de vida
entre o Amauri e Arnaldo e entre Arnaldo e Amaral, o que deu a todos
perspectivas e manifestações diferentes durante o período de chumbo brasileiro.
Enquanto Amauri vê e vive o golpe militar e o ano de 1968 com bastante
intensidade, Arnaldo concretiza-se como artista no auge da ditadura e Amaral
representa melhor o momento de abertura política, sentindo mais as conseqüências
da ditadura.
Como
pode ser percebido, meu trabalho não se limitou apenas a analisar as obras
destes artistas, como também estudar seus próprios autores, suas vidas,
utilizando-os como objeto de estudo, como fonte de pesquisa para entender a
sociedade da época. O estudo do autor e obra, melhor dizendo, do quadrinista,
permitiu um maior aprofundamento do período e o trabalho ganhou um aspecto um
tanto biográfico, buscando o entendimento e compreensão de um recorte temporal
a partir da vida de determinadas pessoas.
A
historiografia já provou que isso é possível, partindo do entendimento de que
uma pessoa é fruto de seu tempo e que isto também é reciprocamente verdade.
Entretanto, enfatiza-se o fato de não se tratar de uma biografia comum. O que
se fez foi um retrato interligado entre as pessoas e a sociedade onde viveram;
um recorte temporal que uniu indivíduo ao grupo; deixar claro qual a ligação
entre iniciativa pessoal com necessidade local3,
ou seja, quais as condições político-culturais em voga que levaram os artistas
a produzirem sua arte.
Para
compreender a conjuntura político-cultural [de determinado momento], seria
preciso articulá-la com as trajetórias pessoais. Micro e macroestrutura
condicionando um processo de elaboração ética coletiva e individual, combinada
a uma prática política. Um programa revolucionário que emerge como manifestação
de uma identidade construída para além da dimensão política.
Daniel
Aarão Reis adverte sobre a construção de uma história político-cultural, sobre
a necessidade da abordagem pessoal para a elaboração do conhecimento. Em Os
Quadrinhos pós-68 pode-se encontrar como os quadrinhistas de qualquer canto
do país, em qualquer momento histórico, podem contribuir para o Brasil tanto
para a arte popular quanto para a sua História.
Georges
Duby afirma que é necessária uma história mais carnal, do homem comum na
sociedade, uma história mais “útil que a concepção superficialmente centrada
nos indivíduos excepcionais”. Ele acredita que mais do que causa e efeito
criando a história, há correlação e interferência direta do homem, que gera a
história. Cada homem é um fator indissociável e coeso numa concepção mais ampla
para que se compreenda o funcionamento do sistema, da História5. O
estudo histórico sobre o prisma dos quadrinhos busca esta visão. Duby também é
um ferrenho defensor do entrosamento e paixão do pesquisador com suas fontes e
objetos de pesquisas, principalmente por temas ricos e virgens, e acima de
tudo, sempre cercado de cautela, busca a “alquimia” que traga à tona uma
história além da ilusão de uma objetividade total no ofício do historiador.
Os
Quadrinhos Pós-68 é um trabalho
onde “paixão” e “alquimia” foram fundamentais para sua conclusão. A cada nova
informação, a cada nova história em quadrinhos encontrada, a cada peça que se
encaixava, a informação surgia, e trata-se de uma informação tão nova, tão
inexplorada, que muitas vezes foi uma tarefa árdua impedir que se expandisse
além do necessário para sua conclusão.
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Aurélio. Rebeldes e Contestados: 1968. Brasil, Alemanha e França. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
BURKE. Peter. A
Escola dos Annales, 1929-1989: A
Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: UNESP. 1999.
COLETÂNEA. Versões
e Ficções: O Seqüestro da História. 2ª ed. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 1999. p. 44
DUBY. Georges.
Trad. MARQUES. Clovis. A História
Continua. Ed. UFRJ: Rio de Janeiro. 1993. pg. 13.
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