segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Quadrinhos e cinema: Semelhanças e divergências entre a calha e o corte, espaço e tempo.

Bernardo Aurélio de Andrade Oliveira

Resumo: As histórias em quadrinhos (HQs) e o cinema possuem um longo histórico de comparações. Alguns teóricos preocupam-se em tratar de quando e como uma arte começou a influenciar a outra, mas o que realmente importa é perceber o que as linguagens dessas duas artes têm em comum e de diferentes. A vasta bagagem teórica do cinema possibilita este estudo comparativo. A edição cinematográfica nos coloca diante de recortes espaço temporais semelhantes aos dos quadrinhos. Esses saltos entre imagens justapostas e a capacidade de ligar uma à outra é utilizada continuamente tanto no cinema quanto nos quadrinhos, mas ambos possuem suas particularidades. Este texto pretende apresentar e analisar essas semelhanças e diferenças entre quadrinhos e cinema no que diz respeito à edição e narrativa dessas artes, focando a continuidade ou descontinuidade nas cenas.

Palavras-chave: Quadrinhos, cinema, edição, espaço e tempo.
           
01.
            Este estudo surgiu da necessidade de apresentar um texto sobre história em quadrinhos (HQs) que pudesse dialogar com alguns teóricos do cinema. É muito comum livros sobre quadrinhos apresentarem comparações entre as duas artes, mas sempre me pareceu uma análise superficial, uma comparação de enquadramentos e storyboards quando as possibilidades entre as duas artes são bem maiores. Neste estudo em especial, o corte do cinema serve de mola propulsora para perceber a narrativa nas páginas de uma HQ e para percebermos como espaço e tempo são tratados em ambas as artes com suas singularidades e semelhanças.
            Não podemos ter certeza de quando começou o diálogo entre as HQs e o cinema. Poderemos dizer que as influências entre elas retomem o momento de suas criações ou desenvolvimento, isso se considerarmos que as HQs estruturaram sua linguagem no século XIX, com o desenvolvimento das técnicas de impressão e da imprensa, e não nos longínquos anos da pré-história, quando os homens começaram a pintar as paredes das cavernas.  No entanto, a influência entre uma arte e outra, num plano modo geral, remontam a outros tempos, temas e mídias. Se considerarmos a influência que HQs e cinema têm entre si, não podemos nos esquecer que antes delas já havia um outro diálogo entre a fotografia e a pintura, de forma que essas relações possuem muitos antecedentes. Ou mesmo, podemos perceber um paralelo entre o cinema e o teatro, ou entre a fotografia do cinema com a pintura anterior a ela, ou ainda a representação dos personagens tanto no teatro quanto na pintura, onde podemos observar um grande diálogo entre a encenação de atores em um palco e as figuras dos personagens em uma pintura: a pintura como cena teatral. O que quero dizer é que as imagens, ao longo do tempo, possuem teias de conexões. Ismail Xavier desenvolveu textos traçando paralelos entre cinema e teatro, um deles inicia assim:

Ao analisar as relações entre o cinema e o teatro, meu objetivo é destacar continuidades, não rupturas. Muito já se falou sobre as diferenças entre as duas formas de espetáculo, visando marcar especificidades. Estas existem mas devo aqui explorar os pontos de intersecção, pois o cinema narrativo quase sempre traz  o teatro dentro de si, atualiza gêneros dramáticos, envolve mise-en-scène (...) A história nos tem oferecido inúmeros exemplos de um intercâmbio que não deixou de ser motivo de incômodo para uma parcela da crítica cinematográfica. (XAVIER. 1996. p. 247).

            As pinturas das cavernas podem ser consideras HQs porque narram graficamente através de uma arte sequencial de imagens, assim como os desenhos que são feitos hoje ainda usam elementos básicos que aqueles homens primitivos usaram: a linha, a textura, a cor, o espaço. Já a pintura usa esses elementos do desenho, mas não ficou presa a eles, adquirindo sua própria linguagem.
            Numa linha histórica, a fotografia aparece utilizando vários elementos comuns ao desenho e à pintura: seja na composição, no jogo de luz ou outro elemento qualquer. O cinema e as histórias em quadrinhos surgem pouco depois com a tarefa de contar histórias através de imagens, tarefa essa que o desenho, a pintura e o teatro também exercem. A própria mise-en-scène, que Xavier citou acima, termo originário da teoria do teatro francês, que se refere à movimentação e posicionamento dos personagens no espaço cênico, está presente também no cinema, bem como nessas artes visuais “estáticas”, como a pintura ou a fotografia.

A mise-en-scène cinematográfica se assemelharia à de um quadro, a liberdade de ponto de vista comum aos dois os afastaria do teatro, mas o teatro continua a ser o principal modelo do “levar para a cena”, da cena, do espaço cênico, do espaço representado (AUMONT. 2004. p.159).
           
            De modo que existe um processo histórico e cultural que influencia o ato da construção imagética, ou mesmo cultural, entrelaçando várias formas de expressão diferentes. As HQs e o cinema possuem convergências e divergências na sua linguagem, como todas as outras artes também possuem entre si. Will Eisner, importante autor e teórico de quadrinhos norte americanos, já disse que “não há como mensurar isso, mas sabemos que essas diferentes mídias se influenciam entre si” (EISNER.2005.p.73).
            Para entendermos melhor uma arte como as HQs, podemos tomar como base de estudo o cinema e traçar esses paralelos e perpendiculares, semelhanças e diferenças, buscando continuidades entre ambas, como Ismael Xavier fez comparando teatro e cinema.

A polêmica entre cinema e as HQ, para determinar qual dos dois influenciou mais o outro, está longe de acabar. Isso ocorre porque os dois meios de expressão, que nasceram quase ao mesmo tempo no final do século passado, nunca pararam de olhar um para o outro, de se copiar e até de se roubar. Ao lado do desenho animado, eles introduziram a continuidade narrativa onde a ilustração, a pintura e a fotografia geravam imobilidade.
(...)
Na origem, o cinema é que fazia empréstimos das HQ: basta pensar no célebre “O Regador Regado” (Lumière, 1895), adaptado de uma história em quadrinhos publicada em 1887 (GUYOT. 1994. p.23)

            Obviamente, Guyot faz referência à origem das HQs a partir da teoria das publicações em jornais do final do século XIX, ignorando a possibilidade milenar anterior. Mesmo assim, aponta os quadrinhos como o primeiro a influenciar o cinema, e não o inverso. Entretanto, Guyot não se preocupa tanto com isso. De fato, para ele, o mais importante são as semelhanças e as diferenças.

Contudo, há parentescos entre as duas formas, pelo menos em termos de vocabulário. O cinema teve a oportunidade de ser levado a sério mais cedo e de se ver dotado de uma terminologia de análise que serve até hoje ao estudo de textos literários. A pintura, no entanto, já tinha o seu vocabulário, ela também, e as palavras “detalhe”, “retrato” ou “paisagem” correspondiam ao corte em planos que conhecemos. Com efeito, a representação do real, com seus enquadramentos e perspectivas, se distingue de técnicas puramente cinematográficas como o zoom ou o fading (...) A grande arte das HQ não se define pelo uso de técnicas ditas cinematográficas, mas por poder fracionar, separar, jogar com vinhetas de diferentes formatos, superpor, compor pranchas de imagens lá onde o cinema, que não pode introduzir variações em sua tela, exibe uniformemente seus quadros (...) Como a HQ tem grande probabilidade de ser relida, certos autores se dedicam a enriquecer seus desenhos com o único objetivo de surpreender mesmo na segunda leitura: as gags anexas, no fundo do cenário, não são utilizáveis pelo cinema, em que o espectador sempre tem um foco visual fixo, sem dispor de tempo para sair um pouco da ficção (...) o espectador não conseguiria compreender a sucessão de imagens resultante. Ele nunca pode reduzir o ritmo, parar ou voltar. Como observa Bilal: “o grafismo permite toda uma série de enriquecimentos, de recursos cromáticos permanentes impossíveis no cinema. Assim, o filme é, de certo modo, um pálido reflexo do meu universo” (GUYOT, 1994, P. 25).

            Guyot é bem claro no que considera mais importante. Apesar de se utilizar de recursos cinematográficos, como definição de ângulos e planos (americano, close, aberto), a narrativa dos quadrinhos não se define por isso, mas sim pela capacidade de composição de pranchetas, do enriquecimento gráfico e do tempo que são únicos em cada uma dessas expressões.

Apesar de parecer haver um relacionamento mais evidente entre quadrinhos e cinema, existe uma diferença básica e fundamental: ambos lidam com palavras e imagens. O cinema reforça isso com som e a ilusão de movimento real. Os quadrinhos precisam fazer uma alusão a tudo isso a partir de uma plataforma estática impressa. O cinema usa a fotografia e uma tecnologia sofisticada a fim de transmitir imagens realistas. Mais uma vez, os quadrinhos estão limitados à impressão. O cinema pretende transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos a narram. Essas singularidades, claro, afetam as tentativas de aproximação do cineasta e do cartunista. (EISNER.2005.p.73).

            Eisner nos apresenta estas diferenças básicas citando a natureza estática dos quadrinhos, mas coloca também referências novas: a pretensão realística do cinema. Quando usa a fotografia e a representação do real como ferramenta de trabalho, o cinema propõe uma experiência real. Quando o som começa a fazer parte da linguagem cinematográfica, essa experiência torna-se ainda mais forte. Os quadrinhos podem até utilizar a fotografia também, mas mais uma vez, sua linguagem estática de narrativa o distancia de uma experiência real. Eisner continua:

Tanto um [os quadrinhos] quanto outro [o cinema] são narradores trabalhando dentro de sua mídia para fazer contato com um público. Mas cada um deles tem um compromisso diferente com sua audiência. O cinema exige pouco mais do que a atenção de seu espectador, enquanto os quadrinhos precisam de um pouco de capacidade de leitura e participação. O espectador de um filme fica aprisionado até um filme terminar, mas o leitor de quadrinhos está livre para folhear a revista, olhar o final da história, ou se deter numa imagem e fantasiar (...) O filme transcorre sem qualquer preocupação quanto à capacidade ou habilidade de leitura de sua audiência, enquanto os quadrinhos precisam lidar com ambas. A menos que os leitores de quadrinhos sejam capazes de reconhecer as imagens ou fornecer os eventos necessários que a disposição das imagens propõem, nenhuma comunicação é estabelecida . Por causa disso, o quadrinista é obrigado a inventar imagens que se conectem à imaginação do leitor (EISNER. 2005. p.75-76).

            Eisner é bem feliz quando trata da necessidade do leitor de quadrinhos ser ativo e imaginar as imagens entre um quadro e outro (assunto que trataremos com mais cuidado nas próximas páginas), além de fornecer, internamente, também, o som àquelas páginas.  Entretanto, é pequenez da parte dos teóricos quadrinistas, afirmarem que “o  cinema exige pouco mais do que a atenção de seu espectador” ou que “o filme transcorre sem qualquer preocupação quanto à capacidade ou habilidade de leitura de sua audiência”. É verdade que um filme é projetado para uma sala lotada, de 500 ou mais lugares, de forma indiferente à individualidade de cada um que está ali, mas acreditar que todos entendam as informações de um filme de forma passiva ou pelo simples fato de estar um pouco mais que atento, não é verdade: cinema também exige leitura e participação, principalmente nos longos planos seqüência com profundidade de campo, onde vários elementos podem ser apresentado ao espectador ao mesmo tempo. Um bom filme, apresenta vários elementos que podem ser descobertos a cada vez que é assistido. A edição cinematográfica possui cortes que também exigem do espectador imaginar momentos que estão no filme de forma implícita, como por exemplo: em determinada cena vemos um homem tomar café da manhã, na cena seguinte o vemos dirigindo seu carro em direção ao trabalho. Ora! Não vimos o personagem sair da mesa, da cozinha, de casa e entrar no carro, ou mesmo dar a partida no veículo, mas tudo isso aconteceu. O cinema exige este tipo de sensibilidade de leitura e de participação do público em vários níveis de dificuldade.
            Quando os críticos falam de “experiência cinematográfica”, geralmente ignoram o fato de se assistir a um filme na sala de suas casas, além de romantizarem a própria projeção, como fez Guyot acima, dizendo que nunca se pode reduzir seu ritmo, para-lo ou voltar a uma cena que queremos rever. Eisner disse que o “espectador de um filme fica aprisionado até um filme terminar”. É como dizer: “A vida fora da sala não existe mais até o fim daquela seção. Todos os espectadores estão juntos no mundo do cinema”. A experiência estética do cinema pode ser rompida pelo mais simples desvio de atenção, desde um celular tocando, do barulho da pipoca sendo mastigada, da vontade de ir ao banheiro, ou mesmo quando uma cena do filme nos remete a uma lembrança interna e viajamos momentaneamente para nosso próprio mundo, esquecendo a projeção. O mesmo acontece quando lemos quadrinhos. Além disso, o filme em casa permite ao espectador, com o controle remoto em mãos, quase o mesmo controle que o leitor de quadrinhos ao folhear uma revista: o espectador pode pular cenas, ver o final, pausar a exibição, assistir o resto depois. Não vamos romantizar as diferenças.
            Contudo, ainda há muitas divergências verdadeiras a serem exploradas: o cinema possui um formato para sua tela, via de regra, na proporção de 16:9. As HQs têm vários formatos possíveis para impressão e cada quadrinho, em cada página, pode assumir um formato (ou “requadro”, como Eisner chama) que irá compor de maneira diferente cada prancheta, característica extremamente singular do quadrinho em comparação ao cinema. Eisner falou sobre isso:

O formato (ou ausência) do requadro pode se tornar parte da história em si. Ele pode expressar algo sobre a dimensão do som e do clima emocional em que ocorre a ação, assim como contribuir para a atmosfera da página como um todo. O propósito do requadro não é tanto estabelecer um palco, mas antes aumentar o envolvimento do leitor com a narrativa (...) Além de acrescentar à narrativa um nível intelectual secundário, ele procura lidar com outras dimensões sensoriais (Eisner. 2001. p. 46).

            A forma do requadro é um recurso plástico muito particular dos quadrinhos e que o cinema não pode experimentar muito. Entretanto, essas diferenças de recursos gráficos são temas a serem estudados particular e posteriormente em outro estudo e em outro momento, o que cabe agora é dizer que essa composição nos quadrinhos é que irá sugerir o tempo de sua leitura. “Sugerir” porque quem define mesmo é o leitor, determinando onde e quanto tempo irá gastar enquanto lê uma HQ, diferente do cinema, que tem o tempo determinado pela projeção. Porém, como dissemos acima, não vamos romantizar a experiência estética do cinema e dos quadrinhos. É claro que com a possibilidade de se “pausar” um filme ou de se rever uma cena quantas vezes quiser assistindo a um filme num aparelho reprodutor doméstico, ou mesmo abandonar a sala de projeção quando o espectador bem entender, pode-se questionar essa teoria do tempo a favor dos quadrinhos, contudo, não podemos ignorar o fato de que essas intervenções prejudicam o ritmo do filme, que é determinado pela edição ou pelo tempo de cada plano, consequentemente, prejudica também a experiência cinematográfica, que não deveria ter seu tempo de projeção interrompido. Da mesma forma, o ideal seria só fechar uma história em quadrinhos quando terminada sua leitura, mas como sabemos, o ritmo e o tempo nas HQs sofrem influencias e interferências diretas durante sua leitura, da mesma forma que alguém  quando interrompe a leitura de um romance bem no meio de um capítulo crucial porque uma xícara de café quente não pode esperar.
            Também não podemos esquecer que nas produções cinematográficas recentes, como Hulk do diretor Ang Lee (2003), o recurso de recortar a tela de projeção do cinema em vários “quadrinhos” com focos diferentes é um recurso que se assemelha à página de uma HQ, entretanto, os vários focos de concentração criados com isso ainda não dão ao público o tempo individual que só o leitor de uma arte estática como os quadrinhos tem.
            Desavenças à parte, a paixão entre HQs e cinema é recíproca. Muitos artistas envolvidos em ambas as áreas dialogam muito, apesar dessa constante “polêmica” de saber qual influencia mais a outra.

Meu caro Moebius,
(...)
Que grande diretor de cinema tu serias! Nunca pensaste nisto?
O que há de mais admirável nos teus desenhos é a luz – sobretudo nos teus desenhos em preto e branco: uma luz fosfórica, oxídrica, luz de lux perpétua, de limbos solares...
Fazer um filme de ficção científica é um dos meus velhos sonhos. Eu penso nisto desde sempre, pensava nisto bem antes destes filmes estarem na moda. Tu serias, sem dúvida, o colaborador ideal, entretanto não te chamarei jamais, pois tu és completo demais, tua força visionária é terrível demais. Então o que eu iria fazer nessas condições?
Eis porque, caro Moebius, te digo apenas isto: continua a desenhar fabulosamente para a alegria de todos nós.
Buon lavoro e buona fortuna.
Federico Fellini (MOEBIUS. 1984)

            Esta carta, escrita pelo notório cineasta Federico Fellini foi retirada da quarta capa do álbum O Homem é bom?, de autoria de Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, um dos quadrinistas mais premiados ao redor do mundo. A força de seu trabalho em relação ao cinema não poderia ser expressa melhor por Fellini, pontuando o artista em seu devido lugar:  que continue fazendo quadrinhos! Entretanto, Moebius já namorou com o cinema. Na década de 70 trabalhou em esboços junto com Alexandro Todorokita, em 78 faz desenhos para a ficção científica Alien, de Ridley Scott, em 79 faz story-boardy de Os Mestres do Tempo e Tron, filme da Walt Disney.

Eu descobri as histórias em quadrinhos francesas através da série de faroeste Lieutenant Blueberry, desenhado por Moebius (...) Depois de ter visto seu trabalho, senti que acabara de conhecer um amigo. Por isso, quando comecei a me envolver no projeto Duna, eu o convidei para vir trabalhar comigo.
Nós trabalhávamos oito horas por dia naquele filme, durante meses e meses (...) Moebius desenhava de um jeito incrivelmente rápido. Trabalhar com ele era melhor do que trabalhar com as câmeras mais sofisticadas. Sua caneta, quase que miraculosamente, criava todos os travelings, as tomadas panorâmicas e os zooms que eu tinha em mente. Isso me dava um registro pleno de todas as emoções que eu queria ver nos rostos dos meus atores. Através dos três mil desenhos adicionais que ele fez para Duna, eu tinha a nítida impressão de que já estava com meu filme pronto. Todos que olhassem para o trabalho dele sentiriam que tinham apreciado o filme tão inteiramente como se tivessem assistido à película na tela de uma sala de cinema (JODOROWSKY. 2006)

            É lugar comum elogiar a narrativa de um desenhista de quadrinhos dizendo que ela é “cinematográfica”. Como Guyot bem colocou, o cinema teve “a oportunidade de ser levado a sério mais cedo e de se ver dotado de uma terminologia de análise que serve até hoje”, entretanto, a mesmo fonte nos adverte de que “os dois meios de expressão (...) nunca pararam de olhar um para o outro”. Portanto, não parece sensato elevar ou rebaixar a qualidade de uma arte em comparação à outra e dizemos apenas, a partir das colocações de Fellini e Jodorowsky, que suas linguagens dialogam. Assim sendo, chegamos a um ponto além da simples comparação: como entender história em quadrinhos a partir da linguagem do cinema?

02.
            A fotografia do cinema parece-nos, à primeira instância, o elemento mais fácil para começar o diálogo. Vários pensadores da arte sequencial (história em quadrinhos) já estabeleceram esse diálogo do plano do cinema com o plano do quadrinho: o close, o plano americano, o plano aberto, o plongé, o contra-plongé etc. Entretanto, limitaremos esta pesquisa ao estudo específico do processo de edição cinematográfica. Parece avesso começar um estudo do quadrinho a partir da última etapa da produção de um filme, mas este é apenas um elemento como qualquer outro que também pode ser estudado isoladamente do todo.
            Scott McCloud, em seu livro Desvendando os quadrinhos, disse que os filmes antes de serem projetados “são só um gibi muito, muito, muito lento” (fig.01), isso porque no cinema há 24 fotografias por segundo, ou seja, 24 frames. Nas histórias em quadrinhos, esses frames podem ser entendidos como cada quadrinho que há na página, entretanto, é fundamental lembrar neste momento que, diferente dos quadrinhos, o cinema não tem no frame a unidade básica da criação ou projeção do filme. Nas HQs, o frame/quadro tem essa função básica pela natureza do registro desse momento único, como uma fotografia, mas no cinema o que importa de fato é a continuidade (ou descontinuidade) dos planos sendo enquadrados: o frame em favor do plano e dos enquadramentos. Por isso, é comum que teóricos do cinema discordem de Scott McCloud, afirmando que o filme não é pensado como quadros, mas como planos em movimento, portanto, nunca será uma história em quadrinhos, mesmo antes de projetado. Isso fica mais claro de entender se você imaginar que os frames não existem mais no vídeo ou na imagem digital, e o cinema não sofreu nenhum abalo cognitivo, porque o que importa são os planos sequências, a imagem em movimento.

A verdade é que um filme está sendo efetivamente “cortado” 24 vezes por segundo. Cada quadro é um deslocamento do anterior. Acontece que num plano contínuo, o deslocamento espaço/tempo de um quadro para outro é tão pequeno (20 milésimos de segundo) que o público o vê como uma continuidade dentro de um mesmo contexto, em vez de 24 contextos diferentes por segundo. Por outro lado, quando o deslocamento visual é suficientemente grande (como no momento do corte), somos forçados a reavaliar a nova imagem como um contexto diferente. Milagrosamente, na maioria das vezes, não temos dificuldade em fazê-lo (MURCH. 2004. p. 18)

(Fig. 01. McCLOUD. 1993. P. 08.)

            Walter Murch, editor vencedor do Oscar por Apocalipse Now (dirigido por Francis Ford Coppola, 1979) e O Paciente Inglês (por Anthony Minghella, 1996), em seu livro Num Piscar de Olhos, nos explica a importância desse frame de uma maneira que casa muito bem com os quadrinhos. Primeiro, ele chama o frame de quadro. Segundo, ele cita que quando o “deslocamento visual é suficientemente grande” nós somos forçados a reavaliar o contexto. O corte feito depois de um plano contínuo nos leva a um novo espaço tempo e nós precisamos “milagrosamente” compreender essa mudança que aconteceu. Este “milagre” só acontece porque temos as ferramentas necessárias para entender a mudança que acontece.  Segundo Alberto Manguel, “só podemos ver as coisas para as quais já possuímos imagens identificáveis, assim como só podemos ler em uma língua cuja sintaxe, gramática e vocabulário já conhecemos” (2006. p. 27). As ferramentas do cinema, essa gramática e vocabulário que conhecemos bem ou mal, é que constrói a sua linguagem. Para entendermos o corte, passamos por uma série de processos internos que buscam o conhecimento necessário para decodificarmos a mensagem da imagem, ou melhor dizendo: da transposição de uma imagem para outra. Scott McCloud, em seu livro “Desvendando o Quadrinhos”, diz a respeito:

Esse fenômeno de observar as partes, mas perceber o todo, tem um nome. Ele é chamado de conclusão. Em nosso dia a dia, nós tiramos conclusões com freqüência, completando mentalmente o que está incompleto, baseados em experiência anterior (...) Sempre que vemos uma fotografia num jornal ou revista, nós praticamos a conclusão. Nossos olhos captam a imagem em preto e branco fragmentada em retículas e nossas mentes a transformam na “realidade” da fotografia (...) Nos filmes, a conclusão acontece continuamente – vinte e quatro vezes por segundo – enquanto nossas mentes transformam uma série de imagens paradas numa história em movimento contínuo (McCLOUD. 1993. p. 63-65).

            McCloud nos diz que nossa “experiência anterior” nos fornece as ferramentas para interpretarmos as partes a que somos submetidos de maneira que possamos tirar conclusões delas para entendermos o todo. McCloud diz que tiramos conclusões continuamente enquanto assistimos a um filme, mas podemos supor que o ato da conclusão a que ele se refere não se resume a isso e pode ser aplicada numa percepção bem maior. Existe uma realidade visível que nossos olhos captam e nossa mente decodifica, criando imagens, quando na verdade vemos apenas pontos luminosos e somos levados a crer na continuidade dessa realidade. Guarde bem essa idéia da conclusão que usamos diariamente, ela será útil adiante. Agora vamos entender como Murch explica como isso pode acontecer no que diz respeito à conclusão das partes no deslocamento espaço temporal em seu trabalho, a edição no cinema:

O que nos parece difícil de aceitar são os deslocamentos que não são nem sutis nem gritantes: por exemplo, o corte de um plano de corpo inteiro para outro um pouco menor em que os atores estão enquadrados do tornozelo para cima. Neste caso, o novo plano é diferente o bastante para assinalar que algo mudou, mas não o suficiente para nos fazer reavaliar o seu contexto. O deslocamento não é contínuo, mas também não é uma mudança de contexto. A colisão dessas duas idéias produz uma confusão mental – um pulo – que, comparativamente, torna-se incômodo (MURCH. 2004. p. 18 - 19).

            Também nas histórias em quadrinhos existe este deslocamento no espaço tempo e é  claro que Murch está se referindo a deslocamentos de um plano para outro e não simplesmente nesses vários e pequenos frames (24 por segundo) que compõe um mesmo plano. Contudo, diferente do cinema, dificilmente nos quadrinhos encontramos cortes que durem 20 milésimos de segundo entre um quadro e outro. Nos quadrinhos, cortes rápidos acontecem quando é preciso apresentar muita informação num curto espaço de tempo, dando uma leve impressão de “câmera lenta” (slow motion). Por exemplo: quando observamos um objeto em rápido movimento percorrer “lentamente” um pequeno espaço de tempo, como uma bala que se aproxima de alguém, ou quando Clark Kent torna-se Super-Homem enquanto cai de um prédio. Isso acontece durante dois ou três segundos, mas pode ser apresentado em uma página com cinco ou seis quadros. Jota A e J. Marques Jr. na história “As Tartarugas Cangaceiras”, publicada na revista Qua Qua Quadrinhos, ilustra de forma bem humorada esses cortes rápidos (Fig.02), onde uma faca arremessada contra alguém desloca-se de um quadrinho para o outro no espaço de tempo de alguns décimos de segundos enquanto a vítima observa-a vindo em sua direção, derramando gordas gotas de suor.

Fig.02. Revista Qua Qua Quadrinhos. Página 20. 1993

            Normalmente, os cortes que acontecem nos quadrinhos são mais “incômodos”, como os que citou Murch. Esses cortes simples, que permanecem no mesmo contexto também são comuns, tanto quanto aqueles que transportam o leitor de um lugar e de um momento para outro. Como o entender dessa descontinuidade espaço temporal funciona?
            Murch, no capítulo Não se preocupe, é apenas um filme nos apresenta uma explicação interessante. Ele compara o corte do cinema ao ato de “piscar” do olho, que fazemos continua e rotineiramente. Vamos entender o que isso quer dizer... Essa sensação da descontinuidade nos é fácil de assimilar porque, segundo ele, as imagens que experienciamos em nossos sonhos são descontínuas e de cortes bruscos, como no cinema.

Talvez a explicação seja bastante simples: aceitamos os cortes porque nos lembram as imagens justapostas dos sonhos. De fato, a brutalidade do corte pode ser a chave determinante para efetivamente produzir a similaridade entre os filmes e os sonhos. No escuro do cinema, estaríamos dizendo para nós mesmos: “Isto parece realidade, mas não pode ser realidade porque é muito descontínuo visualmente, portanto deve ser um sonho” (MURCH. 2004. p. 63).

            O homem acostuma-se, com o passar de sua vida, a aceitar a narrativa descontínua dos sonhos e, muitas vezes, consegue contar a história do seu sonho. De alguma maneira, o corte que acontece no sonho é semelhante ao que acontece no cinema. E esse corte proporcionado pelo sonho nos é compreensível porque o fazemos quando piscamos. Piscar é um corte.

Um aspecto a ser considerado porém é a possibilidade de existir uma parcela de nossa realidade que, mesmo acordado, vivenciamos como cortes cinematográficos, quando as imagens da realidade se agrupam numa justaposição mais descontínua do que parece.
Comecei a pensar nisso por ocasião do primeiro filme que editei – A Conversação –, quando reparei que Gene Hackman (no filme, Harry Caul) piscava em momentos muito próximos aos pontos em que eu decidia cortar. Era interessante, mas eu não sabia o que fazer com isso.
Foi então que certa manhã (...) vi que a primeira página de um número da Monitor trazia uma entrevista com John Huston (...) “Olhe para aquela lâmpada ali. Agora olhe para mim. Olhe de novo para a lâmpada. Agora para mim de novo. Viu o que fez? Você piscou. Isso são cortes. Depois de ver uma primeira vez, você sabe que não precisa fazer um movimento contínuo entre mim e a lâmpada porque já sabe o que tem no meio. A sua mente corta a cena. Primeiro você olha a lâmpada. Corta. Depois olha pra mim.”
O que Huston nos pede para observar é o piscar, um mecanismo fisiológico que interrompe a aparente continuidade visual da nossa percepção. A minha cabeça pode se mover lentamente quando olho de um lado da sala para o outro, mas na verdade estou cortando o fluxo das imagens visuais em fragmentos significativos e assim justapondo e comparando esses fragmentos (que no exemplo de Huston são o rosto e a lâmpada) sem informações irrelevantes no meio do caminho.(MURCH. 2004. p. 64-65).

            Nas histórias em quadrinhos esse corte acontece no espaço entre quadros, esse espaço que Scott McCloud chama de “sarjeta” (fig.03), mas que outros preferem se referir como “calha” ou simplesmente “entre quadros”. É na calha que nós precisamos conceber a maior parte do processo de transformação espaço temporal entre um quadro e outro.

(Fig. 03. McCLOUD. 1993. P. 66.)

            Como dissemos anteriormente, os quadrinhos não possuem 24 quadros por segundo, mas, diferente do cinema, sua imagem estática possui tempo próprio. Imaginemos um determinado quadrinho onde podemos ler um diálogo entre dois personagens e uma ação se desenrolando em segundo plano, como um terceiro personagem correndo na direção destes dois. No quadrinho seguinte, o terceiro personagem os alcança e participa do diálogo com os outros do início. Agora, acompanhem o raciocínio: o tempo do diálogo dos dois personagens no primeiro quadrinho pode ser presumido pelo tempo do espaço percorrido pelo terceiro personagem até atingir aqueles que estão conversando no início. Quando esse terceiro personagem os alcança, em algum lugar na calha, passamos para o momento imediatamente anterior ao do quadro seguinte, que é quando ele inicia sua participação no diálogo.
            O leitor precisa entender essa relação entre espaço tempo dos quadrinhos, que é muito diferente no cinema. Nos quadrinhos, um dos motivos para aceitarmos o corte com certa facilidade é pela natureza de sua arte ser palpável e estática, assim como na pintura e na fotografia, enquanto que no cinema o significante é imaginário. Isso cria uma certa confusão  que faz com que certos teóricos é recorram ao erro de dizer que o cinema nos transmite uma falsa sensação de continuidade, afinal, cada segundo é cortado 24 vezes. Para entendermos esse equívoco, é importante lembrar aqui duas coisas: a primeira é a respeito da imagem do vídeo e do cinema digital que já falamos antes: o frame, a película, não existe mais nessa mídia, mas isso não atrapalha a cognição do filme, não existe mais essa “falsa sensação de continuidade” porque os 24 quadros por segundo não estão mais ali. A segunda diz repeito ao processo de conclusão que também abordamos há pouco tempo: se entendermos que percebemos a realidade visível a partir de pontos de luz e que o decodificamos em nossa mente e construímos imagens, podemos concluir que essa percepção da realidade também tenta nos enganar, a visão também nos proporcionaria uma falsa sensação de continuidade. Portanto, a idéia da falsidade do cinema é tão verdadeira quanto a falsidade da percepção da realidade à nossa volta, o que, no fim das contas, desqualifica essa diferença da descontinuidade ou corte entre o cinema e os quadrinhos. Voltamos ao ponto que é realmente o diferencial: quadrinho é estático e cinema é movimento, esses são os critérios que diferenciarão a percepção do espaço tempo tanto numa arte e quanto na outra.
            A calha entre um quadrinho e outro é o corte, trata-se do piscar onde nós, leitores, precisamos justapor essas imagens e perceber todas as informações que existem entre elas. As HQs exigem do leitor que ele saiba o que há no entre quadros da mesma forma do percurso que existe entre o olho e a lâmpada, no exemplo de Huston citado por Murch.

É claro que há um limite para o tipo de justaposição que conseguimos fazer: não dá para avançar ou voltar no tempo e no espaço (e essa é a prerrogativa dos sonhos e dos filmes). Ainda assim, o deslocamento visual que consigo apenas girando a cabeça (do Grand Canyon à minha frente para a floresta às minhas costas, ou mesmo de um lado para o outro dessa sala) pode ser gigantesco (MURCH. 2004. p. 65).

            Como Murch colocou acima, se observarmos um ponto A, fecharmos os olhos, girarmos a cabeça 180° e abrirmos os olhos novamente em um ponto B, poderemos nos deparar com uma imagem completamente diferente e nem por isso perdemos a percepção do contexto, indispensável para se contar uma história. Nos quadrinhos e no cinema a mudança de um ponto A para um ponto B pode acontecer de maneiras diferentes, que vamos tratar logo, antes, porém, Murch discute algo que cabe muito bem aqui. Ele descreve seu processo de trabalho:

Além do procedimento normal, ainda selecionava pelo menos um quadro representativo de cada posição de câmera e fotografava-o. Em seguida mandávamos revelar num laboratório “1 hora”, como se fossem fotos de família, e as colocávamos em painéis de acordo com a cena. Sempre que os planos tinham uma encenação mais complexa ou uma câmera em movimento, era preciso tirar mais de uma foto (...), geralmente tirava três, mas na maioria das vezes, apenas uma (MURCH. 2004. p. 42).

            As cenas de cada rolo de filme que Murch recebia para editar, eram fotografadas. Uma única foto para cada cena ou tomada. As mais complicadas, que exigiam uma mudança mais elaborada de um ponto A para um ponto B, exigiam mais de uma foto para que ele, o leitor em questão, que não apenas lia, mas construía uma fundamental parte da narrativa cinematográfica (a edição), pudesse entender o movimento da cena. Continua:

Além disso, em função da forma em que são dispostas, as fotografias se relacionam entre si de forma interessante. Em A Insustentável [Leveza do Ser] tínhamos, digamos, 16 painéis de fotos, 130 fotos em cada painel e cada painel foi organizado como a página de um livro: as fotos da esquerda eram “lidas” para a direita e depois, na linha seguinte, da esquerda para a direita de novo etc., exatamente como na leitura de um texto, e, quando se chegava ao final de um painel, você ia para o alto do seguinte e lia a primeira linha etc. A junção entre esses painéis era uma coisa interessante de se ver porque justapunha cenas que, apesar de nunca terem sido pensadas juntas, estavam ali, lado a lado (MURCH. 2004. p. 43).

            Este álbum que Murch constrói é muito semelhante a uma fotonovela, e uma fotonovela não deixa de ser uma história em quadrinhos. A ordem sequencial das imagens justapostas neste álbum que ele construiu é a narrativa do filme que pode ser lida como em um livro, da mesma forma que assistimos desenrolar em nossas mentes as cenas de uma história em quadrinhos. Mais ainda existe algo de fundamental em cada imagem que ele selecionou, que ele chama de “momento decisivo”.

Mas para mim o trunfo das fotos era que elas se transformavam em hieróglifos para a linguagem das emoções.
Que palavra expressaria o conceito de raiva irônica com uma ponta de melancolia? Não há palavra para isso, pelo menos não em inglês, mas é possível ver essa emoção específica representada numa fotografia.
A foto também pode representar um tipo de antecipação nervosa: a personagem está amedrontada, ao mesmo tempo excitada e confusa porque sente desejo por outra mulher. E esta mulher está dormindo com o marido dela. O que isso significa?
Seja o que for, está lá, na expressão dela, no ângulo da cabeça com o cabelo e o pescoço e na tensão dos músculos, na posição da boca e nos olhos dela. Basta apontar para a expressão do rosto de um ator e estarão superadas as dificuldades da linguagem ao lidar com a sutileza dessas emoções intraduzíveis [...]
A partir daí o trabalho do editor será o de escolher as imagens certas e colocá-las em seqüência na medida certa para expressar algo semelhante ao que foi captado naquela fotografia.
Ao escolher um quadro representativo, o que se está procurando é uma imagem que sintetize a essência dos milhares de outros quadros que formam a tomada em questão. É o que Cartier-Bresson – referindo-se à fotografia – chamou de “momento decisivo”. Acho então que, na maioria das vezes, a imagem que escolho acaba entrando no filme e, na grande maioria das vezes, bem perto o ponto de corte (MURCH. 2004. p. 43-44).

            Cada foto selecionada por Murch é, como disse, o “momento decisivo”, o momento em que cada imagem possui o maior número de elementos e informações necessárias para se contar a história, a “essência” de cada cena. Cada momento decisivo pressupõe centenas ou milhares de frames anteriores e posteriores. Uma boa história em quadrinhos deve ser construída desses momentos decisivos, quadro a quadro, onde cabe ao leitor justapor as imagens e visualizar em sua mente os milhares de “frames” não selecionados pelo desenhista e que estão escondidos entre uma imagem e outra.          Will Eisner falou sobre isso:

As histórias em quadrinhos são uma mídia confinada a imagens estáticas, desprovidas de som ou movimento, e o texto tem de suprir essas restrições.
Os escritores também têm de levar em conta as habilidades do artista para definir suas expectativas. O artista ou o escritor (ou ambos) são desafiados pela necessidade de transmitir o “âmago”. Gestos sutis ou posturas provocativas não são fáceis de se representar sem a movimentação contínua fornecida pelo filme. Nesta mídia, imagens para “contar” a história têm de ser extraídas do fluxo da ação e, então, serem congeladas (Eisner. 2005. p.118).

            O que Eisner coloca é que, tanto o escritor quanto o desenhista de quadrinhos, precisam representar, em cada quadro, o âmago da história, ou a essência dela, o que preferir. E essas imagens são construídas também pela escolha das palavras certas, mas principalmente pela seleção do momento extraído do fluxo das ações. É importante ressaltar aqui que o termo “representar”, aplicado por Eisner em seu texto, não  foi gratuito: como quadrinhos não dispõe de som ou movimento, normalmente os gestos e expressões utilizados na maioria dos quadrinhos possuem uma natureza cênica, como se os personagem estivessem atuando, interpretando, como se estivessem em cena, mise en scène. Aqui, esses momentos decisivos nos quadrinhos, lembram mais a representação exagerada típica do teatro do que a representação mais realista do cinema.
            Scott McCloud, em outro de seus livros, dessa vez o Desenhando quadrinhos, fala um pouco sobre esse momento decisivo.

São estas as cinco situações em que suas escolhas poderão determinar a diferença entre uma narrativa clara e convincente e uma bagunça: Escolha do momento, escolha do enquadramento, escolha das imagens, escolha das palavras, escolha do fluxo. Começando pelo topo, vamos dar uma olhada em cada uma e veremos como elas se relacionam.  Estas escolhas preliminares [momentos] são o primeiro estágio de planejamento dos quadrinhos, em que os eventos de uma história são separados em porções legíveis (...) Mesmo com esboços simples como esses, o leitor deve ser capaz de “ler” claramente a ação. Nossa escolha do momento  (...) desempenha um importante papel em assegurar a clareza. Os momentos escolhidos na seqüência (...) representam a rota mais direta e eficiente para comunicar nosso simples enredo  (McCLOUD. 2008. p 10-12).

            McCloud diz que, da mesma forma como no cinema, existem vários elementos envolvidos no ato de construir as imagens e como colocá-las em ordem para se narrar uma história. É importante que um leitor de HQs entenda que determinado quadrinho foi desenhado daquela maneira porque foi o melhor ângulo que o desenhista imaginou que funcionaria para contar aquela história. Este momento decisivo, adicionado aos outros quatro elementos, ou escolhas, segundo McCloud, trazem todas as informações necessárias para que se desenrole a narrativa, os personagens, a trama, o que seja.
            Nesse ponto, o desenhista de quadrinhos, que já possui o roteiro nas mãos, representa várias funções daqueles que fazem cinema. Não apenas do editor, selecionando a melhor tomada que entrará em sua história, mas também o câmera e o fotógrafo, decidindo os ângulos e a iluminação. É também o diretor, trabalhando toda a história e os personagens como em um filme. É o quadrinista que define a expressão no rosto dos personagens, lidando “com a sutileza dessas emoções intraduzíveis”, de maneira que, como dissemos anteriormente, o trabalho de edição é apenas um elemento isolado que podemos utilizar para o estudo dos quadrinhos.

03.
            Como colocamos acima e prometemos retomar à questão, nos quadrinhos e no cinema a mudança de um ponto A para um ponto B podem acontecer de diversas maneiras diferentes. André Bazin nos fala em seu ensaio intitulado “A Evolução da Linguagem Cinematográfica” que existem três maneiras de se fazer uma montagem:

...elas [as possibilidades da montagem] podem ser apreendidas perfeitamente em três procedimentos conhecidos geralmente pelo nome de “montagem paralela”, “montagem acelerada” e “montagem de atrações”. Criando a montagem paralela, Griffith conseguia dar conta da simultaneidade de duas ações, distantes no espaço, por uma sucessão de planos de uma e da outra (BAZIN. 1991. p.67)

            A primeira delas, a montagem paralela, é muito simples e podemos entendê-la simplesmente retornando às citações de Murch quando fala sobre os cortes bruscos, de contextos diferentes. Essas narrativas paralelas são facilmente encontradas em quadrinhos, como, por exemplo, em cenas de conversas por telefone, quando percebemos um fio telefônico em espiral dividindo os quadros, substituindo a calha, dando impressão de ações paralelas e simultâneas. Em outros casos, podemos ver dois focos de ação desenrolando-se na mesma página sem, necessariamente terem ligações diretas uma com a outra.
            Bazin continua explicando, dessa vez a montagem acelerada: “Em La roue, Abel Gance nos dá a ilusão da aceleração de uma locomotiva sem recorrer a imagens reais de velocidade (pois afinal, as rodas poderiam rodar sem se deslocar), pela simples multiplicação de planos cada vez mais curtos” (BAZIN. 1991. p.67). Neste caso, o cinema usa planos repetidos com duração cada vez mais curta, a roda da locomotiva girando em espaços de tempo cada vez menores, no caso, para dá a impressão de que a velocidade está aumentando. Ou seja, utiliza de mais cortes que a média normal para dar agilidade a uma cena, tudo isso sem recorrer a imagens reais de velocidade.
            Bazin é um dos mais importantes defensores do realismo cinematográfico e propõe uma ética no registro do mundo através do cinema. É irônico usar sua teoria para estudar os quadrinhos, uma vez que “imagens reais” nos quadrinhos são raríssimos. Na verdade, não conseguiria citar um exemplo. Se considerarmos os quadrinhos feitos com desenhos, podemos considerar que nenhum dos seus quadros são “reais”. Se citarmos os quadrinhos construídos com fotografias, ainda não teríamos a movimentação para dar a sensação de realidade e a própria natureza da edição dos quadrinhos, favorecido pelos “cortes bruscos”, acabaria com qualquer possibilidade de representação real. Se ignorarmos tudo isso, podemos aplicar Bazin e discutir o ponto: como dissemos anteriormente, os quadrinhos permitem ao leitor um tempo subjetivo que lhe atribui um ritmo próprio de leitura, o que dificulta essa percepção de aceleração entre um quadro e outro. Entretanto, recursos gráficos são possíveis de sugerir essa sensação. Enquadramentos com ângulos inclinados, imagens repetidas com leves distorções ou mesmo o simples recuo do distanciamento entre os quadros, a diminuição do espaço da calha, podem permitir essa sensação de rapidez crescente, entretanto é mais comum que, quando uma imagem é repetida, multiplicadas vezes numa mesma página, a sensação comum é a de que o tempo desloca-se mais devagar, dando uma impressão de lentidão ou desaceleração, exatamente o contrário do que propõe Bazin. Scott McCloud, em seu livro Desvendando os Quadrinhos, diz:

Quando aprendemos a ler quadrinhos, aprendemos a perceber o tempo espacialmente, pois, nas histórias em quadrinhos, tempo e espaço são uma única coisa. O problema é que não há diagrama de conversão. Os poucos centímetros que nos transportam de segundo pra segundo numa sequência [as calhas, ou sarjetas] podem nos levar por centenas de milhões de anos em outra. Assim sendo, como leitores, nós temos a vaga sensação de que movendo-se pelo espaço, nossos olhos também estão se movendo pelo tempo (McCLOUD. 1993. p 100).

            De acordo com o autor, a percepção do espaço tempo nos quadrinhos é uno. Espaço é tempo. Para entendermos melhor a colocação de Scott, precisamos olhar a figura 04, onde encontramos um, digamos, “experimento de percepção temporal” no qual um mesmo quadrinho é repetido várias vezes ou ocupa um espaço maior na página, dando uma sensação que tempo maior para o leitor. Entretanto, usando a idéia de que espaço é tempo nos quadrinhos, podemos teorizar que, se em determinado quadrinho, o plano (ou a sequência de quadros) é repetida em espaços na página cada vez menores, como se páginas inteiras fossem repetidas em enquadramentos que ocupassem cada vez menos espaço, se o enquadramento vai gradativamente diminuindo a cada repetição, a impressão que teríamos, com certeza, é a de que o mesmo acontecimento está ocupando cada vez menos tempo (espaço) para acontecer, ou seja: o fato, a cada repetição mais curta, estaria acontecendo mais rápido.

(Fig. 04. McCLOUD. 1993. P. 101.)

            A última das montagens, é a de atrações, que, segundo Bazin:

Enfim, a montagem de atrações, criada por Eisenstein, cuja descrição não é tão fácil, poderia ser definida grosseiramente como o reforço do sentido de uma imagem pela aproximação de outra imagem que não pertence necessariamente ao mesmo acontecimento: os fogos de artifício em O Velho e o novo, que sucedem a imagem do touro. Nessa forma extrema, a montagem de atrações foi raramente utilizada, até mesmo por seu criador, mas podemos considerar bem próxima em seu princípio à prática mais geral da elipse, da comparação ou da metáfora (...) Quaisquer que sejam, podemos reconhecer nelas o traço comum que é a própria definição da montagem: a criação de um sentido que as imagens não contém objetivamente e que procede unicamente de suas relações (BAZIN. 1991. p.67-68).

            Para explicar Bazin, a melhor maneira que encontramos é citando McCloud novamente. Para ele, existe nos quadrinhos seis tipos de transição de imagens, uma delas é o non-sequitur (do latim: “não se segue”).

E, finalmente, existe o non-sequitur, que não oferece nenhuma sequência lógica entre os quadros. Esta última categoria sugere uma questão interessante. Seria possível uma sequência de quadros totalmente desconexos entre si? Eu particularmente não acredito. Por mais que uma imagem seja diferente de outra, sempre há um tipo de alquimia no espaço entre os quadros, que pode nos ajudar a descobrir um sentido até na combinação mais dissonante. Essas transições podem não fazer “sentido” de uma forma tradicional, mas algum tipo de relação acaba se desenvolvendo. Criando uma sequência de duas ou mais imagens, nós damos a ela uma identidade forçando o leitor a considerar essas imagens como um todo. Por mais diferentes que sejam, elas passam a pertencer a um único organismo (McCLOUD. 1993. p 72-73).

            Esse tipo de montagem exige um tipo de sensibilidade diferente do leitor, ou espectador, além de uma certa responsabilidade do artista que as cria. Bazin e McCloud nos afirmaram que nós, como interlocutores dessas imagens, procuramos um sentido nessas uniões desconexas e que esse sentido acaba fluindo como que fruto de uma alquimia, por mais absurda que a interpretação dessas imagens possam ser. A sensibilidade a que me refiro diz respeito ao leitor ficar atento e não simplesmente ignorar essas imagens que parecem desconexas, buscando nelas uma interpretação pessoal. A responsabilidade do artista diz respeito ao objetivo que ele procura alcançar com esse tipo de imagens, para que elas não se limitem a experimentalismos que “não faça nada para levar a história adiante (...) proporcionando ocasionais piadas absurdas” (McCLOUD. 2008. p. 17).
            Como dissemos acima, seis são os tipos de transições que Scott McCloud pôde encontrar nos quadrinhos: 1) Momento a momento; 2) Ação a ação; 3) Sujeito a sujeito (ou tema a tema); 4) Cena a cena; 5) Aspecto a aspecto e 6) Non sequitur (fig. 05). Vamos abordar as cinco primeiras, que não foram trabalhadas ainda.

(Fig. 05. McCLOUD. 2008. P. 15.

            “As transações de momento a momento, por exemplo, são úteis para retardar a ação, aumentando o suspense, capturando pequenas mudanças e criando um movimento cinematográfico na página” (McCLOUD. 2008. p. 16). Esse primeiro tipo de transação, como disse McCloud, lembra muito a linguagem cinematográfica exatamente por trabalhar com cenas do mesmo ângulo, momentos de um mesmo plano, sem aqueles cortes bruscos de contexto do qual falou Murch, como comentamos no início deste texto. Como se a câmera, ou o olho do leitor, se aproximasse de um rosto entre um quadro e outro, ou alguém fechasse os olhos, ou uma bola rolasse de um lado para o outro do mesmo enquadramento.
            “Os tipos de ação a ação são conhecidos por sua eficiência. O cartunista simplesmente escolhe um momento por ação, de modo que cada quadrinho contribua para levar o enredo adiante e manter o ritmo acelerado” (McCLOUD. 2008. p. 16). Este tipo de transição é mais difícil de acontecer no cinema porque é típico da narrativa de imagens estáticas. Um exemplo citado por Scott: no primeiro quadro temos uma ginasta passando pó nas mãos, no seguinte, temos ela correndo, no terceiro quadro, ela saltando um obstáculo, no quarto, tocando o chão, no quinto, fazendo uma pose, no sexto, comemorando com o técnico. Ora, tudo isso no cinema poderia facilmente ser feito em um plano sequência sem nenhum corte (se desconsiderarmos os 24 frames por segundo), o que pareceria uma cena de momentos. Se o diretor decidisse filmar essa mesma cena com movimento de câmera que alterasse seu ângulo, ainda teríamos momento a momento. Agora, se ele decidisse fazer cortes, mostrando a cena de ângulos ou perspectivas diferentes, teríamos a cena dentro de um mesmo contexto, o que McCloud chamaria de tema a tema, como a ginasta saltando e, em seguida, o sorriso do técnico, ou um corredor que cruza a linha de chegada e em seguida vemos uma mão apertando um cronômetro (McCLOUD. 1993. p. 71).
            Em seu primeiro livro, Desvendando os Quadrinhos, Scott McCloud intitula essa transição de tema a tema, entretanto, em seu terceiro livro, Desenhando Quadrinhos, ele se refere a essas transações de forma mais específica: sujeito a sujeito. “As transações de sujeito a sujeito são igualmente eficientes para levar a história adiante alternando os ângulos para dirigir a atenção do leitor conforme o necessário” (McCLOUD. 2008. p. 16). Esse tipo de edição de imagens é muito comum no cinema clássico, onde o plano seguido de contra plano narra, principalmente, cenas de diálogos. Um personagem é colocado do lado direito do enquadramento enquanto que o segundo é colocado do lado esquerdo, para a passar a idéia de que estão um diante do outro.
            “Os saltos de cena a cena podem ajudar a contar a história em extensões diferentes, permitindo ainda assim diversos intervalos de tempo e uma variedade de locais. Olhe bem para suas histórias e você descobrirá que poderá cortar muitas coisas.” (McCLOUD. 2008. p. 17). Essa transição é a mesma montagem paralela de Bazin, com um diferencial: não precisa, necessariamente, serem cortes de momentos simultâneos. “Com frequência, o raciocínio dedutivo é exigido na leitura dos quadrinhos, como nessas transições cena a cena, que nos levam através de distâncias significativas de espaço e tempo” (McCLOUD. 1993. p. 71). São cenas que, normalmente exigem caixas de texto com citações como: “Enquanto isso, na sala da justiça...” ou “Dez anos depois, em Paris...”. Às vezes, as imagens bastam, sem nenhum texto explicativo, como se tivéssemos no primeiro quadro, um plano aparecendo o sol e no quadro dois, o mesmo plano agora com a lua.

Às vezes pode convir à narrativa paralisar o tempo e deixar que o olho vagueie. As transições de aspecto a aspecto fazem justamente isso e foram usadas com sucesso no Japão – e recentemente na América do norte – para criar uma forte sensação de local e estado de espírito (McCLOUD. 2008. p. 17).
Um quinto tipo de transição, que a gente vai chamar de aspecto pra aspecto, supera o tempo em grande parte e estabelece um olho migratório sobre diferentes aspectos de um lugar, idéia ou atmosfera (McCLOUD. 1993. p. 72).

            As duas citações de McCloud para o mesmo assunto, em livros diferentes, explicam bem este tipo de transição. São imagens que, normalmente servem para contextualizar a cena, mas não apenas o plano aberto que mostra uma externa de casa e, em seguida, uma interna em plano médio, com alguém sentado numa poltrona na sala, assistindo televisão. O aspecto a aspecto sugere uma pausa na narrativa, mostrando vários elementos de um mesmo contexto. Esse tipo de narrativa, nos quadrinhos orientais, onde foi muito desenvolvida, às vezes, enchem várias páginas de cenas isoladas de um mesmo contexto, como, por exemplo, um grande centro urbano sendo mostrado em detalhes: os prédios, os transeuntes, os carros, um semáforo. Essa técnica também é aplicada para exprimir algum sentimento, se a idéia é mostrar o cotidiano conturbado da cidade grande onde o protagonista vive em constante angústia, pode-se colocar um mendigo, um acidente de trânsito, um assalto, o consumismo das vitrines das lojas etc. Scott utilizou, em seus dois livros, a cena da chuva sob vários aspectos, apostando em cenas que exprimiam sentimentos de solidão e melancolia. No cinema, narrativas como essas não são difíceis de encontrar, a diferença no quadrinho se dá, novamente pela qualidade estática das imagens, que permitem que o leitor demore quanto quiser em cada quadro até perceber a natureza do sentimento ou atmosfera que o narrador pretende atingir. Mas Scott ainda nos apresenta outro diferencial:

Quando o conteúdo de um quadro mudo não indica sua duração, ele também pode produzir uma sensação atemporal. Devido à sua natureza não-resolvida, esse quadro permanece na mente do leitor e sua presença pode ser sentida nos quadros seguintes. Em “quadros sangrados” - aqueles que extrapolam a margem da página – esse efeito é composto. O tempo não é mais contido pelo ícone familiar do quadro fechado. Ele sofre uma hemorragia e escapa pro espaço infinito. Essas imagens podem estabelecer o clima ou senso de lugar em cenas inteiras pela sua presença atemporal (McCLOUD. 1993. p. 102-103).

            O quadro sangrado, ou vazado, é um recurso muito comum nos quadrinhos. O ícone do quadrinho, esse quadro fechado, essa unidade básica que constitui cada momento decisivo nas HQs e delimita um espaço e um tempo de determinada cena, pode ser rompido ou se apresentar de várias maneiras diferentes, o requadro, como disse Eisner. Esse sangramento do quadrinho pode se dá de duas maneiras: a primeira, que Scott chama de “ruptura da quarta parede” (2008. p. 33), não é rara nas HQs, e trata-se quando a imagem de um quadrinho dialoga diretamente com outra na mesma página. Às vezes, um personagem ou um objeto qualquer rompe a linha do requadro e interfere na leitura dos quadros vizinhos, pois essa imagem sobrepõe as outras (fig. 06). Esse tipo de ruptura do quadro tem forte papel na diagramação da página, dando destaque de determinado quadro em relação aos outros. É um recurso muito comum em cenas de ação ou quadrinhos de super heróis, quando personagem parecem saltar ou voar pra fora do quadro ou da página.

(Fig. 06. McCLOUD. 2008. P. 33.)

            Enquanto que a primeira ruptura se dá entre um elemento (personagem ou objeto) e o requadro ao seu redor, a segunda ruptura, que Scott chama de “imagem sem borda” (2008. p.33), se dá entre o requadro e a margem da página, é quando esse quadro não abarca tudo que é necessário e a imagem parece incompleta, vazando para fora dos limites de impressão da página (fig. 07). É quando o narrador se propõe a não determinar esse espaço e tempo. É como se dissesse: “existe muito mais disso fora do quadro”. Essa informação fica sobrevoando a cabeça do leitor. Esse recurso é muito utilizado nessas transações de aspecto a aspecto nos quadrinhos e o cinema, dificilmente consegue transmitir esse “sangrar” da imagem, já que seu enquadramento na proporção 16:9 é completamente utilizado na projeção, não há como rompê-lo. Sugerir que existe algo fora do quadro, isso os quadrinhos e o cinema fazem o tempo todo, porque todo plano recorta determinado espaço, mas é diferente de propor a ruptura do espaço e do tempo. Da mesma forma que o cinema, os quadrinhos colocam imagens que exigem do espectador/leitor a imaginação de perceber esse mundo fora do quadro: como um close up que pressupõe o entendimento do redor. Mas é essa natureza estática das HQs, sua limitação espacial, seja o papel impresso ou a tela de um computador, e a  possibilidade de diagramação da página que permite a visualização de vários quadrinhos ao mesmo tempo, é tudo isso que permite aos leitores que, quando acontece esse segundo tipo de ruptura em relação ao quadro e a margem da página, que percebamos a proposta de um quadrinho atemporal e de espaço infinito. Até onde vejo, o cinema não permite que o espectador compare a margem de um frame com outro, pela natureza contínua das imagens e por que a área de sua projeção normalmente é aquela 16:9. O cinema utiliza outros recursos que os quadrinhos não dispõem para trabalhar a edição e essa percepção de espaço tempo: o som, a música, a imagem acelerada, o bullet time, o movimento de câmera etc.


            Hoje, o sangramento nos quadrinhos é um recurso tão próprio de sua linguagem, tão poderoso e atraente que acaba sendo mal utilizado, fazendo com que se perda essa característica atemporal e de espaço infinito. Em quadrinhos como o mangá Gantz, publicado pela editora Panini, praticamente não existe margem nas suas páginas, todos os quadrinhos são vazados para fora da página e divididos apenas pelas calhas internas. Nesses casos, o recurso do quadrinho atemporal e de espaço infinito não é utilizado e é substituído pela necessidade do desenhista de ter mais espaço por página para desenhar.
            Com essas observações, concluímos um primeiro esboço comparativo da edição e da narrativa entre cinema e quadrinhos. Percebemos que a teoria do cinema pode ser facilmente aplicável aos quadrinhos ressalvando a diferença básica entre as duas: uma arte prima pelo movimento e a outra pelo grafismo estático. Comparamos teorias de estudiosos do cinema e dos quadrinhos no que diz respeito à narrativa e à edição e percebemos as semelhanças e singularidades entre elas. Procuramos não supervalorizar uma arte em detrimento da outra,  mas vale lembrar que este foi mais um estudo sobre os quadrinhos utilizando o referencial teórico do cinema como escada. Esperamos termos acrescentado algo substancial sobre o assunto, mas temos plena certeza de que ainda há muito a se dizer sobre esse e outros temas envolvendo quadrinhos e cinema.
REFERÊNCIAS

AUMONT. Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify. 2004.
BAZIN. André: O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense. 1991.
EISNER. Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
EISNER. Will. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005.
GUYOT. Didier Quella. A história em quadrinhos: coleção 50 palavras. São Paulo: Loyola. 1994.
JODOROWSKY. Alejandro. MOEBIUS. Incal. Vol. 1. São Paulo: Devir. 2006.
MANGUEL. Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras. 2006.
McCLOUD. Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M.Books. 1993.
McCLOUD. Scott. Desenhando quadrinhos. São Paulo: M.Books. 2008.
MOEBIUS. O homem é bom? Porto Alegre: L&PM. 1984.
MURCH. Walter. Num piscar de olhos: A edição de filmes sob a ótica de um mestre. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004.
XAVIER. Ismail. O cinema no século. Imago Ed.: Rio de Janeiro. 1996.

FONTES


A. Jota. JR. Marques. Qua Qua Quadrinhos: As Tartarugas Cangaceiras. Teresina: Fundação Nacional de Humor. 1993. p. 20.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

12 FATOS RUINS (e bons) SOBRE STAR WARS - ROGUE ONE (COM SPOILERS)


01 - Primeiro filme da franquia sem a abertura clássica com as letras indo pro infinito. (Obs: Caravana da Coragem 1 e 2, aqueles filme dos Ewoks tb não tinha. Mas se todo mundo ignora esses filmes, eu tb posso) 

02 - Confesso que senti falta, inclusive da música tema, que parece não existir no filme, apenas umas variações parecidas que vc fica o tempo todo pensando: “agora vai, só que não” (com exceção da Marcha Imperial, que está lá. Ou terei me enganado e é apenas uma variação dela tb?);


03 - O filme é um pouco lento, quase enfadonho.


04 - As atuações são ótimas, com exceção do Forest Whitaker, que fica cada vez pior sempre que abre a boca (e fica pior ainda quando vc lembra que assistiu a excelente atuação dele em A Chegada uma semana antes). 

4.5 - Cara, o que foi aquela morte completamente desnecessária do Forest Whitaker no filme? "Me deixem aqui pra explodir! Vão!"

05 - Não temos um vilão específico: os vilões são a Estrela da Morte, um Tarkin em CGI nada discreto (quer dizer, todo mundo sabe q é um CGI e que parece um replicante falando. Pq não contrataram um ator parecido? Maquiagem, gente!)

06 - Darth Vader e toda a sua grandiosidade, numa cena exagerada que é puro fanservice. Estou falando da cena magnânima e desnecessária da sombra dele se projetando gigante na parede e gelo seco pelo chão. Todo mundo sabe que no Episódio IV o Darth era só um segurança particular quase sem falas. Parece que o diretor sabia que só teria duas cenas com o Darth e precisava punhetar mesmo, pros fãs ficarem babando. A segunda cena dele é bacana, parece o Jason!

07 – Você gosta de humor estilo Marvel? Não? Bom, está lá! Não tanto quanto o que vimos no Episódio VII, mas se a proposta era fazer um “filme de guerra a la Segunda Guerra Mundial”, deveriam ter deixado o filme mais sério mesmo.

08 – O monge lá fica o tempo todo repetindo seu mantra, tanto e tão desesperadamente que irrita, como se o diretor quisesse criar nova frase de efeito para fãnboys ficarem repetindo em eventos.

09 – Sério? Era pra ser um filme de Guerra e quando, um dia, irão fazer os Storm Troopers botarem medo? Putz! Parece cena de trapalhões! Os caras são lesados ao extremo. Apenas 10 rebeldes na praia fazendo o DIABO contra uma fortaleza do Império. Esse Império é uma bosta mesmo.


10 – O filme não precisava ter existido: toda a informação da Estrela da Morte poderia ter sido enviada pelo “Hannibal lá” no pen drive junto ao piloto. “Ah! Mas não cabia pq tava dentro de um HD externo grande demais e bla bla bla”. Não! Nas últimas cenas vemos os soldados levando toda a informação contida naquele HD dentro de um pen drive do tamanho de um cartão de crédito.

11 – Filme altamente previsível: Vc viu episódio IV, né? Então vc sabe que muitos rebeldes morrem pra conseguir aquela informação e tudo. Quer dizer: todo mundo morre pq a permanência da vida desses personagens seria completamente anacrônico com a série. Então vc fica só esperando quando todos irão morrer... Até a cena final com a princesa Leia era óbvia: ela tinha de aparecer para receber as informações, como vimos no episódio IV.

12 – Episódio VII é melhor.


Mas o filme é bom, e pra provar, aqui vão alguns FATOS POSITIVOS

01 – O diretor Gareth Edwards não sofreu como um Zack Snyder que tenta emular uma cartilha proposta por um Nolan. Quer dizer, ele afastou-se do que JJ Abraham propôs e criou certa identidade para o filme. Por isso vc tem a sensação de que está assistindo algo um pouco diferente dos demais filmes de Star Wars.

02 – As cenas de luta são muito boas, principalmente com o monge (o que não era de se surpreender).

03 – Tem, provavelmente, as melhores sequencias de luta fora do espaço da franquia, quer dizer, do exército com os pés no chão, que acontece na praia.

04 – Tem, provavelmente, a melhor e mais aterrorizante cena de Darth Vader usando seus poderem já feita no cinema (apesar de curtinha)

05 – Os personagens principais evoluem no filme e conseguem nos surpreender um pouco com suas falas e discursos.

06 – O filme reforça a mensagem de luta da Rebelião contra as forças opressoras, o que é sempre bem-vindo.


07- Tem uma bela fotografia, que varia desde imagens paradisíacas de praias até cânions e grandes montanhas desertas.


08 – O filme cumpre um papel muito digno que é introduzir novos fãs à série. Nesse ponto, ele é mais feliz que Episódio VII, já que os novos espectadores podem correr logo em seguida para assistirem ao episódio IV, a continuação direta desse filme.


09 – O filme evita a tentativa de criar um casal romântico: amém!

10 – Temos um ótimo alívio cômico, que é o robô K-2SO, cheio de personalidade e carisma, que parece unir o melhor do C3PO com o BB8.

11 – A Rebelião não é tão boazinha, como vimos nos primeiros minutos do filme, que nem George Lucas poderia mudar, afinal, o capitão atirou primeiro.
12 - Rogue One é melhor que, pelo menos, os Episódios I, II e VI.