quinta-feira, 16 de abril de 2015

BABA HABIBI E BHABHA

Bernardo Aurélio de A. Oliveira (UFPI)[1]


RESUMO: O hibridismo cultural trabalhado por Homi K. Bhabha no livro O Local da Cultura pode ser percebido a partir do estudo da história em quadrinhos escrita e desenhada por Craig Thompson, intitulada Habibi. Ambos autores levantam questões relevantes sobre a formação de culturas, a construção de identidades de povos e de narrativas nacionais. A partir dos estudos de Bhabha e fazendo uma leitura de Thompson sobre os discursos de textos encontrados no Alcorão e na Bíblia, presente em Habibi, podemos perceber até onde aproximam-se, distam-se e misturam-se entre si as culturas maometanas e cristãs, sempre  traçando um paralelo entre as informações dos livros dos autores citados. Este artigo trata sobre a influencia da cultura islâmica sobre a vida ocidental cristã e vice-versa, utilizando o conceito de hibridização de povos e culturas característico das noções de “entre-lugar” definidos por Bhabha, bem como sobre os povos que vivem em situações de fronteira e sobre as raízes e ramificações de suas grandes narrativas nacionais religiosas originárias.

Palavras-chave: Hibridismo cultural, entre-lugar, nação.

Abstract: The cultural hybridity studied by Homi K. Bhabha in The Location of Culture can be seen in the work of Craig Thompson, Habibi. Relevant questions about culture formation in frontier situations and constructions of national narratives can be traced in parallel reading the books of authors cited.
Keywords: cultural hybridity, in-between, nation.

Não poderia deixar de começar explicando que este artigo é fruto de uma apresentação de seminário sobre Homi K. Bhabha, portanto, preciso antes de tudo, dizer que não poderia tê-lo escrito senão baseado nas anotações de Dalva Fonteneles e Jaislan Monteiro, colegas mestrandos e parceiros na apresentação do “O Local da Cultura como território de negociação: reflexões sobre a questão pós-colonial” durante última aula de Teoria da História, ministrada pelo professor Drº Edwar Castelo Branco. Dito isto, de alma limpa e com as anotações dos colegas em mãos transcrevo esse relatório em forma de artigo.
            Bhabha é daquele tipo raro de autor que torna-se unanimidade. Dono de um estilo forte e difícil de leitura, que não procura ser didático, pedagógico muito menos dono de uma verdade teórica que tenta impor-se a outras, é muito mais um autor que procura por em prática as teorias que o tornaram conhecido: como o hibridismo cultural. Portanto, preocupa-se em misturar o eu ao outro dos autores (como Fanon, Said, Foucault, Green) tornando seu pensamento uma terceira coisa fruto da fusão das duas partes anteriores. Tornou-se, de fato, “um dos principais arautos dos chamados teóricos pós-coloniais e do multiculturalismo, um atento pesquisador das minorias sociais e culturais” (EICHENBERG, 2012).
            Meu objetivo aqui é traçar um paralelo entre alguns desses conceitos e a história em quadrinhos Habibi, de Craig Thompson, obra que, por sinal, não fica à sombra de Bhabha, mesmo porque são de universos editoriais diferentes, mas o que quero realmente dizer é que “Habibi é um monumento do quadrinho moderno e uma resposta atual a questões que nos perseguem desde sempre”. Claro que essa citação foi retirada da orelha do livro, entretanto não sou o único a concordar com ela visto a quantidade de prêmios e elogios que o livro já recebeu[2]. Na minha opinião, Habibi é tão importante para os quadrinhos quanto O Local da Cultura é para a História, mas minha opinião aqui é quase tão imparcial quanto às citações das orelhas dos livros, portanto, Franz Lima, escritor e blogueiro dirá o que eu gostaria de dizer, assim fica mais impessoal:

São 672 páginas de arte em estado puro. Ilustrações belas, detalhadas e, ao mesmo tempo, simples na mensagem que passam. Não há excessos, apesar do refinamento da produção. O que vemos desde a primeira página é um fenômeno. A combinação de roteiro, letras, desenhos e, principalmente, um recado para um mundo cada vez mais crítico quanto aos islâmicos torna "Habibi" uma pérola de valor inestimável (2012).

            Elogios à parte, vamos ao que, de fato, interessa: Bhabha escreveu sobre o mundo pós-colonial em que vivemos e sobre as consequências dessa condição, “é um salutar lembrete das relações “neo-coloniais” remanescentes no interior da “nova” ordem mundial (...) Tal perspectiva permite a autenticação de histórias de exploração e o desenvolvimento de estratégias de resistência” (BHABHA, 2013,  p. 27). Segundo o autor, após a segunda grande guerra, as populações do mundo intensificaram as correntes de migrantes e refugiados, e sua pesquisa preocupa-se em entender esse mundo que desloca a questão da cultura para uma época em que populações diversas estariam nesse constante movimento, redefinindo limites fronteiriços em níveis mais psicológicos, sociais e culturais do que meramente geográficos. Então, esses homens fronteiriços levam consigo sua bagagem material e imaterial e traduzem-se na relação da diferença com o outro, o nativo. É preciso entender essa fronteira na perspectiva de Bhabha antes de voltarmos para o Craig Thompson e seu Habibi.
            “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente” (HEIDEGGER apud BHABHA, 2013, p. 19). É com essa citação que Bhabha inicia a introdução de seu livro. Ele  nos explica que as fronteiras são lugares de articulação de diferenças que dão início a novos signos de identidade. É na relação fronteiriça entre o eu e o outro que nossas diferenças se revelam e nessa articulação existe uma troca que recria outro de nós mesmos. Essa articulação acontece no entre-lugar. Vide figura[3] abaixo.






Fig. 01. Relação entre eu e o outro que cria outros de nós mesmos devido ao entre-lugar (espaço intervalar).

           
            Esse encontro de partes é um espaço intervalar, de fronteira entre diferentes culturas. A simples existência desse tipo de espaço faz de nós seres múltiplos, diferentes das construções herméticas e homogêneas construídas pelas identidades nacionais, por exemplo. As grandes narrativas estatais constituem o povo “em objetos históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no preestabelecido ou na origem histórica constituída no passado” (BHABHA, 2013, p. 237). Para essas narrativas pedagógicas, o conceito de muitos como um baseia-se na teoria que “trata gênero, classe ou raça como totalidades sociais que expressam experiencias coletivas unitárias” (BHABHA, 2013, p. 232). O que precisamos imediatamente perceber aqui é a sutileza dessas fronteiras que nos definem como seres plurais, diversamente dessa estratificação fixa e hierárquica que nos mutila em blocos de comportamentos culturais isolados, para isso, Bhabha cita René Green e seu exemplo do sótão, do poço e da escada “para fazer associações entre certas divisões binárias como superior e inferior, céu e inferno. O poço da escada tornou-se um espaço liminar, uma passagem entre as áreas superior e inferior” (2013, p. 23). Bhabha explica:

O poço da escada como espaço liminar, situado no meio das designações de identidade, transforma-se no processo de interação simbólica, o tecido de ligação que constrói a diferença entre superior e inferior, negro e branco. O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que ele propicia, evita que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais. Essa passagem intersticial entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta (2013, p. 23).

            Tornamo-nos então seres híbridos e nessa condição implodimos qualquer conceito de identidade nacional cristalizada. Somos heterogêneos, precisamos perceber o outro de nós mesmos que nos tornamos ainda intra-uterinamente, quando nos dão nome e a cor do enxoval. Precisamos perceber nosso hibridismo cultural quando rezamos pra Jesus e para Todos os Santos ou quando comemos a comida típica de um país estrangeiro no restaurante da esquina. E tudo isso é reforçado no mundo pós-colonial, pois foi esta condição que mais propiciou as características de fluidez e transitoriedade moderna.
            Permitam-se a leitura de uma citação de minha autoria: dois quadrinhos de um fanzine que fiz chamado Babar o Bhabha e que serviu como recurso didático durante o Seminário que fizemos sobre O Local da Cultura. Fica mais fácil de engoli-lo se entenderem a imagem como um simples parágrafo, escrito por mim de maneira não-completamente-verbal.


Fig. 02. Quadrinhos de minha autoria publicado no fanzine Babar o Bhabha.
           
            O que tentei trabalhar nesses quadrinhos é um pouco do que Bhabha disse:

Estar no "além", portanto, é habitar um espaço intermédio, como qualquer dicionario lhe dirá. Mas residir "no além" é ainda, como demonstrei, ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar a futuro em seu lado de cá. Nesse sentido, então, o espaço intermédio "além" torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora (…) o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com "o novo" que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estático; ela renova o passado, refigurando-o como um "entre-lugar" contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O "passado-presente" torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 2013, p. 28 – 29).
           
            A relação entre passado e presente não é simples como uma linha narrativa cronológica prevê. Viver no mundo pós, é residir no além onde o passado é constantemente revisitado. Tanto é, que o passado torna-se presente. É quando uma tradição cultural pedagógica que estabelece uma identidade de nação-povo que foi sedimentada desde um passado remoto, torna-se uma prática renovada no cotidiano atual: é o passado vivo, renovado e performatizado pelas culturas híbridas modernas. É quando, por exemplo, o vaqueiro deixa o gibão de couro em casa, veste a calça jeans, monta na sua moto e leva a boiada através de uma estrada de asfalto.
            Diante do que já foi colocado, podemos voltar para Craig Thompson. Habibi conta a história de Dodola e Zam, dois escravos de uma cidade fictícia chamada Vanatólia, provavelmente uma referência a Anatólia, região do extremo oeste da Ásia, também conhecida como Ásia Menor, onde fica a Turquia. A península anatoliana é situada geograficamente como uma ponte entre a Ásia e a Europa, o que é muito curioso e oportuno para a análise neste trabalho, já que pontes podem possuir a mesma carga simbólica das escadas citadas por Green e Bhabha agora a pouco. É o ir e vir dos agentes entre os extremos da ponte que estimula o hibridismo cultural transformando o eu e o outro. Podemos imaginar que essa região fictícia da Vanatólia, se realmente foi inspirada na Ásia Menor, como parece, é um país de grandes fronteiras culturais, principalmente porque a história em quadrinhos pode ser entendida como um conto de fadas dos dias atuais “sobre a cultura e o comportamento das pessoas em um país tipicamente islâmico. Mas não se deixem enganar: Habibi é um conto de fadas como os antigos foram. Há força, impacto e verdade nos desenhos e palavras da Graphic Novel” (LIMA, 2012).
            Para não me alongar muito, Dodola foi vendida ainda criança para seu noivo, um escriba que costuma trabalhar em transcrições do Corão. Ela aprende a ler e escrever, vivendo bem com seu marido, apesar da diferença de idades: ela casou-se com 9 anos e ele, provavelmente, com 40. Um dia a casa é assaltada, seu marido morto e ela é levada por traficantes de escravos. Entre eles, conhece uma criança menor que ela, Zam, de quem decide cuidar. Eles conseguem fugir e vão morar no deserto. E a história deles dois alonga-se, maravilhosamente, por mais 600 páginas, pelas quais não posso nem devo me prender aqui. O que interessa agora são as histórias que Dodola narrava para Zam. Histórias dos princípios, de Deus, anjos, demônios e crentes. Histórias da Bíblia, histórias do Corão, narrativas primordiais de livros que identificam e unem povos-nações.
            Thompson deu uma entrevista especial para Ramon Vitral, publicado no jornal O Estado em janeiro de 2012, que traz informações importantes antes de entrarmos diretamente na análise de Habibi. Ramon faz questão de lembrar primeiro a experiencia católica do autor retratado em seu primeiro grande trabalho, o livro Retalhos, depois perguntou “como foi escrever sobre o mundo islâmico em Habibi tendo a formação cristã conservadora que teve?”

Esse foi o elemento que tornou mais acessível a escrita sobre o Islã. Interagindo com amigos muçulmanos, vi que a vida deles não era tão diferente do ambiente em que cresci. São os mesmos estilos de vida, as mesmas morais e, principalmente, as mesmas histórias como fundamentos de ambas as crenças. Foi o meu ponto de acesso. O Alcorão contém algumas das mesmas histórias da Bíblia, mas de forma menos linear e mais poética (THOMPSON apud VITRAL, 2012).
               
            Senhores, Craig Thompson não poderia ter nos proporcionado uma resposta melhor. Fica evidente a questão do entre-lugar, do hibridismo cultural, a percepção das diferenças fronteiriças e das semelhanças dos mitos originais que fundamentam nações inteiras ao redor do mundo. Não contentando-se com uma resposta tão oportuna como essa, parece-me que Thompson sabia que alguém escreveria sobre ele um dia sob a ótica de Bhabha, afinal de contas, leiam o que ele disse, dia 28 de julho de 2012, ao repórter André Miranda, do jornal O Globo quando perguntado se acha que a origem do fundamentalismo religioso é a mesma no Ocidente e no Oriente:

Eu acredito que sim. Os fundamentalistas são os mesmos, assim como são os mesmos os seguidores eventuais de ambas as fés. Cristãos eventuais não são necessariamente conservadores ou dogmáticos, e o mesmo se aplica ao muçulmano comum que você pode encontrar na rua. Eu acho que a reação anti-Islã que surgiu nos Estados Unidos depois do 11 de Setembro nasceu em grande parte de um auto delírio, uma forma de atacar a mesma intolerância religiosa que existe em nós mesmos. O grande tema de Habibi é que esses rótulos — cristão e muçulmano, homem e mulher, Oriente e Ocidente — são simplesmente fronteiras imaginárias que precisam ser descartadas (THOMPSON apud MIRANDA, 2012)

            Os binarismos cristão x mulçumano, homem x mulher, oriente x ocidente “são simplesmente fronteiras imaginárias que precisam ser descartadas”. Lembram da figura 01? Percebem que o resultado do encontro eu x outro é uma imagem esmaecida, enevoada? Não é meramente ilustrativo: o resultado dessa colisão dicotômica é um abrandamento das percepções das diferenças via de regra a percepção e o “achamento” do entre-lugar. É perceber que essas fronteiras são, de fato, imaginárias, como disse Thompson. Tudo isso é muito importante porque perpassa as opiniões de Bhabha, que desde o início de seu livro preocupa-se em colocar sua teoria como forma de minorar os problemas entre-nações. É dele a seguinte citação:

Os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contínua de tradições históricas, ou comunidades étnicas "orgânicas" - enquanto base do comparativismo cultural-, estão em profundo processo de redefinição. O extremismo odioso do nacionalismo sérvio prova que a própria ideia de uma identidade nacional pura, "etnicamente purificada", só pode ser atingida por meio da morte, literal e figurativa, dos complexos entrelaçamentos da historia e por meio das fronteiras culturalmente contingentes da nacionalidade [nationhood] moderna (BHABHA, 2013, p. 25).
           
            Bhabha percebe que a cristalização de uma cultura e a pedagogia de uma política nacional pura e autoritária termina por sérios problemas como o extremismo na Sérvia ou o drama do “teatro contemporânea do Sri Lanka” (2013, p. 25).  Por várias vezes, Thompson foi perguntado se a escolha temática de Habibi, de lidar com o povo islâmico num mundo pós-11 de setembro. Eis o que ele disse ainda na entrevista a André Miranda:

Depois do 11 de Setembro houve uma grande islamofobia na mídia americana, e, em parte por isso, eu quis olhar dentro do Islã para melhor compreendê-lo e poder reconhecer suas belezas. Também percebi que eu não tinha amigos muçulmanos, e trabalhar em “Habibi” me permitiu conhecer novas pessoas e ganhar novas amizades. Muitos dos diálogos do livro vieram de conversas que tive com novos amigos que fiz (THOMPSON apud MIRANDA, 2012).
           
Em outra entrevista ao jornal O Globo, dessa vez cedida a Telia Navega ainda 2009, perguntado se suas motivação para Habibi seria o desejo de humanizar a cultura islâmica depois do 11 de setembro, ele disse:

Esse pode ter sido meu impulso inicial, por minha frustração com relação ao comportamento da América pós 9/11, mas “Habibi” acabou saindo mais como um conto de fadas. Ela usa detalhes da cultura islâmica e toma emprestado seu ritmo de contar histórias, como em “As mil e uma noites”. É uma história de amor entre duas crianças escravas, sexualmente abaladas, com desertos, haréns e favelas como cenário. É seco, espiritual e sexual. (THOMPSON apud NAVEGA, 2009).

            Então, Habibi não é uma resposta direta ao 11 de setembro, é um conto de fadas moderno “como os antigos foram”, nas palavras de Franz Lima já citadas aqui. É uma grande história que aborda questões sobre capitalismo e acúmulo de riquezas (como a água nos haréns do sultão), o amor, o espírito e o sexo, além de questões ambientais. Mas nos concentraremos em uma narrativa envolvendo os povos do livro, presente nessa obra.
            Para os cristãos acostumados com o Gênesis é sabido que Isaque, filho de Abraão com Sara foi levado pelo pai a um local de sacrifício a mando de Deus. Entretanto, para a narrativa islâmica, Abraão teria tido um filho com Agar, escrava entregue a ele pela própria esposa, e ao filho deram o nome de Ismael. Atentem-se às próximas ilustrações:



Fig. 03: THOMPSON. 2012. p.47

            Como podem ver, Thompson cita o mesmo fato sob dois pontos de vista, mostrando não apenas a diferença entre as religiões, mas as semelhanças embrionárias de onde ramificaram as narrativas que deram origem a seus povos. Fica ainda mais claro:


            Fig. 04: THOMPSON. 2012. p.618

            De Ismael até Maomé ou de Isaque até Cristo. “Qual foi o filho?”, pergunta Thompson (2012, p. 48). Quem Abraão levou para o “abate”? Qual a verdadeira história? Qual o verdadeiro Messias e, consequentemente, qual o povo escolhido por Deus? Não cabe a mim, como historiador, tentar provar qual a verdade, porque isso envolve, mais do que evidências históricas e provas materiais, questões de fé e de vivência espiritual que estão muito além das narrativas que eu, ou pesquisadores mais eficientes, possamos traçar. E digo isso baseado na teoria de Bhabha:

O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração de estrategias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novas signos de identidade e postos inovadores de colaboração contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (BHABHA, 2013, p. 20).

            Com essa citação quero dizer que não é a procura da verdade subjetiva originária o que deve interessar ao historiador hoje, mas sim problematizar a articulação da diferença. Alguém pode dizer que Ismael foi inventado quase 700 anos depois de Cristo. Se uma coisa é verdade e outra é mentira, mesmo a busca pela verdade histórica devendo ser sempre a utopia do historiador, o que mais interessa hoje é perceber como essas narrativas se elaboram e quais estratégias montam para redefinir a sociedade que constroem, é entender como o discurso dessas histórias constroem as narrativas dos povos-nações. Tudo isso torna-se mais interessante quando percebemos que o resultado e a moral dessas histórias, tanto na Bíblia quanto do Corão, são semelhantes, reencontrando novamente um fato em comum. No caso de Ismael ou Isaque, Maomé ou Cristo, Thompson responde a pergunta com o que  há de comum nessas narrativas: qual das crianças foi executada? Nenhuma. “O anjo Gabriel trouxe um carneiro para ser oferecido no lugar deles” (2012, p. 646).
            Um outro ponto que me chamou a atenção que fiz na leitura de Habibi com olhos de Bhabha, foi a discreta passagem onde Dodola caminha pelo centro de Vanatólia, uma cidade “tipicamente” árabe, mas hibridizada com elementos ocidentais: as vitrines com biquines ou moda íntima, as motocicletas, os letreiros luminosos, as gravatas, os ternos. No meio de toda a movimentação ela percebe mulheres vestindo shorts e saias, deixando os cabelos soltos em um grande contraste ao que imaginamos ser os hábitos das mulheres árabes. Sentindo-se confortável com isso, Dodola baixa o véu, mostrando os cabelos, e continua a andar pelo comércio (fig. 05), mas logo em seguida é abordada de forma grosseira por homens no meio da rua (fig. 06), provavelmente julgando-a uma mulher “promíscua”, como devem parecer as mulheres ocidentais aos olhos daqueles mais fundamentalistas islâmicos.

Fig. 05: THOMPSON. 2012. p.615


Fig. 06: THOMPSON. 2012. p.616

            A passagem lembrou-me novamente Bhabha, que disse o seguinte durante uma entrevista ao jornal O Globo:


Nenhum indiano estava no tempo ou no lugar, na condição de cidadania, para poder considerar o que estava acontecendo a eles. Eles negociaram a situação. Eles tinham um modo de absorver certas ideias progressistas do Ocidente, porque se davam conta de que certas ideias de modernidade melhoravam o seu mundo. Eles aceitavam a modernização, mas não necessariamente a bagagem ideológica, ética ou dos costumes da ocidentalização. É dessa experiência, acho eu, que advêm tanto o meu conceito de hibridização como o de cosmopolitismo vernacular (2012).

            Ora! Dodola viu que andar de cabelos soltos era “bom”, e decidiu absorver essa ideia “progressista” do ocidente. Não cogitou, entretanto, que as pessoas ao redor não aceitariam a bagagem ideológica que isso acarretaria. Essa discreta passagem no meio de tantas páginas da obra Habibi nos apresenta novamente todo o conflito de que nos fala Bhabha sobre a vivência dos povos fronteiriços, que é comum ao hibridismo cultural.

            Ainda tomando como exemplo essa passagem de Habibi, voltamos novamente à entrevista de Bhabha ao jornal O Globo, quando ele conta uma historinha sobre uma moça que encontrara dentro de um trem:

Era uma jovem coberta por um véu, apenas os olhos aparecendo. As faces de todas as demais pessoas estavam à vista, e aquilo me chocou. E minutos depois o trem pára e ela se levanta para sair. Quando passou por mim, olhei e descobri que as suas costas estavam completamente à vista. E ela usava uma calça jeans que chegava até as suas ancas, e tinha uma pequena tatuagem. Mas seu rosto estava mascarado. Duas coisas eram claras para mim. Primeiro, que na nossa cultura sempre parecemos querer colocar todos os tipos de comportamento na panela maior da identidade. A maneira de se vestir, de falar, tudo tem de formar uma noção composta de identidade, aí nos sentimos seguros. Acho que isso é o problema real nesse caso. Segundo, não devemos ler essas coisas como marcas de identidade, mas como mensagens misturadas, diferentes. De um modo engraçado, esse era o direito da jovem de brincar com os diferentes tipos de linguagens, expectativas, normas e códigos de uma esfera pública metropolitana pós-migração ou da diáspora (2012).

            A grande diferença entre essa história de Bhabha e a passagem de Habibi é que uma se passa em Vanatólia, uma ponte cultural entre ocidente e oriente[4], e a outra se passa em Berlim, um grande centro cosmopolita ocidental. Bhabha impressionou-se com o véu cobrindo o rosto da moça no vagão do trem porque era diferente do contexto cultural alemão onde estava e, talvez por isso, a moça não se deixou intimidar como Dodola e vestiu o véu, mas deixou as costas à mostra, vestindo também uma calça jeans que mostrava suas “ancas”. Evidentemente, Bhabha não reagiu de forma grosseira como os homens do mercado em Habibi em relação à estonteante moça de costas nuas senão vestida apenas com uma discreta tatuagem, mas muito provavelmente soube apreciar o hibridismo misterioso da moça de rosto coberto e de outras partes à mostra... Se era, ou não, uma forma engraçada da moça lidar com os códigos metropolitanos de uma lógica migratória pós-colonialista, só podemos afirmar que Bhabha está certo quanto ao hibridismo cultural e que a moça, apesar de poder “chocar” as pessoas do vagão, não sofreu nenhum tipo mais grave de represália por seus modos, pois a mistura dos povos evidencia as diferenças, mas abranda os conflitos.
            Ainda existem muitos elementos importantes que poderiam ser identificados e cruzados entre Bhabha e Habibi, mas deixo minha contribuição por aqui e espero ter despertado o interesse para que outros colegas possam traçá-las.

 

Referências


EICHENBERG, Fernando.  Homi Bhabha e o valor das diferenças. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/01/14/homi-bhabha-o-valor-das-diferencas-426300.asp> Publicado em 14 de janeiro de 2012. Acesso em 03 de agosto de 2013.

LIMA, Franz. Resenha da Graphic Novel "Habibi" de Craig Thompson. Disponível em: <http://apogeudoabismo.blogspot.com.br/2012/09/resenha-da-graphic-novel-habibi-de.html> Publicado em setembro de 2012. Acesso em 03 de agosto de 2013.

VITRAL, Ramon. Craig Thompson fala sobre os oito anos de criação de 'Habibi'. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,craig-thompson-fala-sobre-os-oito-anos-de-criacao-de-habibi,817622,0.html > Publicado em 02 de janeiro de 2012. Acesso em 03 de agosto de 2013.

MIRANDA, André. Política, religião e amor em quadrinhos: entrevista com Craig Thompson. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/07/28/politica-religiao-amor-em-quadrinhos-entrevista-com-craig-thompson-457500.asp > Publicado em 28 de julho de 2013.




[1]Mestrando em História Cultural pela UFPI, com o Projeto “Salão de Humor do Piauí: Uma história de risos e cabelos brancos”, bernardohq@hotmail.com.
[2]Nos Estados Unidos, o prêmio Eisner é o mais importante dado às histórias em quadrinhos. Habibi foi indicado à categoria de Melhor Álbum de 2012, mas não levou. Craig Thompson, o autor, entretanto, ganhou o prêmio na categoria Melhor Escritor/Ilustrador por este trabalho. No Brasil, Thompson ganhou o HQMix de 2013 como Melhor Desenhista Estrangeiro por Habibi.
[3]Agradecimento especial ao colega Jaislan Monteiro, por ceder, mesmo sem seu conhecimento, o uso da imagem criada por ele para sua explicação sobre Bhabha durante seminário.
[4] Como convencionamos acreditar, Vanatólia seria uma alusão à península anatoliana.

Nenhum comentário: