quinta-feira, 29 de março de 2018

Arquivo X terminou. E agora?


Por Bernardo Aurélio
Essa semana, fiz um experimento: carente de Arquivo X, como estou, já que a 11ª temporada acabou com um gostinho incômodo no final da língua, fui até meu armário. Tenho algumas caixas das temporadas antigas lá, então decidi sortear uma delas e assistir alguns episódios aleatoriamente. Veio a 4ª temporada, peguei o disco 3 sem saber o que teria nele. O objetivo aqui é falar um pouco sobre esses episódios randômicos que desfrutei.

Só pra gente se situar, no encarte da 4ª temporada vem a seguinte sinopse: “as proféticas palavras do alienígena Caçador de Recompensas ecoam por toda a Quarta Temporada, que se inicia com a mãe de Mulder à beira da morte e o assassinato do misterioso X. A volta de Alex Krycek e o óleo negro alienígena ficam em segundo plano devido ao câncer da Scully. O trágico reaparecimento de Max Fenig leva à morte de um colega agente do FBI. E apesar desses acontecimentos fortalecerem a crença de Mulder em uma conspiração cada vez maior, uma desconcertante verdade revelada por Scully o leva a uma crise de fé que pode ser seu fim”. Esse é o cenário geral, mas eu não lembrava, não fazia ideia exata do que iria assistir. A coisa começa a se descortinar com o primeiro episódio do disco:

Terma, a pedra da morte (“Terma”, s04e09), nota 4 de 5.


O episódio é continuação direta do anterior, chamado “Tuguska, a pedra da morte”, onde Mulder vai para Rússia investigar as origens do óleo negro alienígena. O backgroung estava em algum lugar da minha memória, porque, em Terma, Mulder já começa preso em um campo de concentração e já havia participado de experimentos com o óleo. Ele estava atrás de Krycek e uma das suas maiores motivações era o ódio que sentia por ele. O foco de Mulder é conseguir fugir do campo e voltar para os Estados Unidos, enquanto lá acontecem as melhores cenas: Scully sendo sabatinada por uma comissão do Estado em um tribunal que queria saber do paradeiro do seu parceiro. 


A agente usa toda sua perícia e inteligência para esfregar na cara da comissão que o mais importante não era revelar a localização do Mulder, o que poderia representar um perigo para ele, mas investigar os motivos que o fizeram invadir a Rússia e reacender uma brasa da guerra fria, envolvendo espionagem e assassinatos para queima de arquivo. Grande episódio da mitologia, Krycek que o diga!

Corações de Pano (“Paper Hearts, s04e10), nota 5 de 5

Este episódio havia ficado marcado em minha lembrança quando assisti em uma das reprises da Record, e agora eu lembro o porquê. Nota 5 de 5. É aquele tipo de episódio com final em aberto onde você acredita ou não baseado em suas opiniões.

John Lee Roche é um assassino serial que Mulder ajudou a prender traçando seu perfil psicológico anos antes da série começar. Ele matava crianças e recortava pequenos corações de pano como lembrança das roupas que elas usavam. Teria feito 13 vítimas, até Mulder descobrir, revelado em seus sonhos, o paradeiro do 14º corpo, que o FBI não fazia ideia da existência. Com o desenrolar desta nova investigação, os agentes descobrem que há mais dois corpos desaparecidos e um deles pode ser Samantha, irmã de Mulder.

Trata-se de um excelente triller, que permeia o sobrenatural, mostrando como Mulder e Lee Roche influenciam-se mutualmente, focando sempre na impulsividade do agente, capaz de burlar as condutas do bureau, seja socando um criminoso preso, seja pondo-o em liberdade, para chegar aos fins.

Entraria facilmente em um top de todos os tempos de Arquivo X. Incrível como esses episódios antigos pareciam saber utilizar muito melhor aqueles 43ou 44 minutos de exibição.

O mundo gira (“El mundo gira”, s04e11), nota 3,5 de 5


O que poderíamos ter quando Arquivo X envolve-se com uma das maiores lendas da ufologia da América Latina? Se você lembrou do Chupa-Cabra, está certo! O episódio tem praticamente todos os elementos que tornaram a série um sucesso mundial: fenômenos naturais incomuns (como enormes clarões no céu e chuva amarela), elementos patogênicos estranhos (pessoas morrendo de forma instantânea com seus corpos sendo corroídos inexplicavelmente), a crença irrefreável de Mulder, o ceticismo coerente expresso de maneira tão técnica que apenas Gillian Anderson poderia deixar interessante e... possíveis alienígenas!


Apesar de tudo isso, o episódio escorrega um pouco na dinâmica das cenas no começo e tudo só torna-se mais interessante do meio para o fim, quando começa a dialogar com a veia dramática latina. Afinal, o Chupa-Cabra existe ou é apenas uma forma de um povo de sangue quente, temperado a novelas shakespearianas baratas, justificarem seus atos ou aumentarem suas histórias, maquiando os fatos?

No meio disso tudo, ainda somos apresentados à problemática da imigração ilegal e a discriminação que esse povo sofre na fronteira entre Estados Unidos e México.

O Homem do Câncer (“Leonard Betts”, s04e12), nota 4,5 de 5.

Para todos aqueles que adoram Eugene Tooms, mítico vilão que ajudou a cunhar o termo “monstro da semana” em Arquivo X ainda na primeira temporada, recomendo que assistam Leonard Betts com o coração aberto, mas cuidado!

Existem semelhanças entre Tooms e Betts, mas longe de incomodar, elas são um bálsamo para quem gosta de um assassino bizarro com uma pequena tendência para se alimentar, de alguma forma, de suas vítimas.

O grande lance desse episódio é que Betts, a princípio, não é um monstro da semana. Na verdade, ele é, literalmente, um salva-vidas, um excelente enfermeiro que atende urgências em ambulâncias. Tudo começa quando o carro onde está sofre um acidente e ele “morre”. Mas não é uma morte discreta. Sua cabeça saca e ele torna-se um corpo sem cabeça fugindo do necrotério. Na tentativa de recomeçar nova vida, Betts regenera-se (sim! Nasce nova cabeça!) e procura outra identidade, mas tudo é atrapalhado, tanto pela investigação dos agentes quanto pela sua ex-parceira da ambulância.

O episódio consegue mesclar muito bem o humor cínico de Mulder, a descrença de Scully e cenas nojentas, envolvendo tumores, cistos e lixo orgânico cancerígeno hospitalar.

Conclusão!
Se você tem uma memória fraca como a minha, sempre poderá se divertir pescando qualquer episódio entre as nove temporadas anteriores, principalmente se escolher da quinta temporada para trás, anteriores ao primeiro filme, que mudou consideravelmente a estética da série.

Obs: Os episódios estão na sequência da caixa no DVD, ou seja, o disco 3 reúne do nono ao décimo segundo episódio, seguindo as datas de exibição originais na TV americana (de dezembro de 1996 a janeiro de 1997). Mas se você for procurar o código de produção os episódios serão, respectivamente, 4x10, 4x08, 4x11 e 4x14.

terça-feira, 27 de março de 2018

Sitiado, A luta da mente



Que cenário incrível este de “Sitiado”, livro de Edmar Oliveira. Poderia dizer que a história se passa ali em meados da década de 1920, em Teresina, Piauí, onde a coluna tenentista de Carlos Prestes fez sítio e deixava todo o Brasil em burburinho. Entretanto, nem tudo se passa naqueles dias de calendário preciso... A história prende-se a um tempo muito mais longo e pessoal: aquele que rói na mente do protagonista Teodoro.

Nosso herói é um soldado que defende as fronteiras da capital da província contra as investidas do exército de Prestes e Juarez Távora. Teodoro, estreitado em suas veredas e trincheiras, passava horas na escuridão, aguardando um tiro longe, um insulto do inimigo e o dia seguinte, que trazia Ceiça com seu almoço, protegido por dois pratos, enrolado e dado um nó por um pano, pra proteger do cisco. Ao longo dessas horas, às vezes morosas, às vezes zunindo bala, Teodoro se deixava levar pelas fantasias medievais de Leandro Gomes de Barros, grande cordelista brasileiro. E é nessa fantasia que Edmar Oliveira trança, enlaça e embola o novelo fio da estória.

Teodoro, grande conhecedor dos textos escritos em verso sobres os Pares da França, os guerreiros medievais de Carlos Magno que lutaram contra os sarracenos da Alta Idade Média, enxerga sua realidade como um reflexo daquelas poesias, à princípio, vendo em Carlos Prestes a figura do inimigo muçulmano que invade as terras sagradas dos católicos. À medida que a história se desenvolve às coisas se misturam em sua cabeça, quem antes era o inimigo, é rebatizado com o título de “Cavaleiro da Esperança” que vem salvar o povo do Brasil da opressão da república velha. É nesse embate constante que se dá o sítio da aventura, cerceado pelas histórias, não só Teobaldo, mas vários outros personagens são arrebatados pelas dúvidas de seus posicionamentos políticos, hora heróis, hora vilões. E é neste ponto que Sitiado torna-se muito mais que um livro histórico de algum momento piauiense no século XX e penetra a longa duração e frágil estabilidade das mentes.

O livro é cheio de personagens cativantes que engrossam as tropas da Coluna, e Teodoro, impulsivo que é, também abarca nesta aventura, onde conhece desde árabes que se “convertem” pelo poder e honra dos “soldados templários”, até homens que falam com espíritos. O autor preocupa-se em justificar o ingresso de todos esses ânimos na batalha e, aqui, Edmar mostra que uma guerra é na verdade travada por várias guerras de interesses de cada participante, pois todos têm seus motivos e suas verdades para justificar seus atos, à vezes motivos tão pessoais e mesquinhos, às vezes nobres, mas que acabam percebendo serem tão altivos quanto ingênuos. Nesse ponto, Sitiado não deixa de falar também dos dias hoje...

Escrito em pequenas doses homeopáticas, Edmar, psiquiatra renomado que é, por formação, nos dá a narrativa em contas gotas, dividindo o livro de 210 páginas em 21 capítulos de texto que, ao tempo em que se prende aos regionalismos da escritura, proseando em vários momentos como se escrevesse em versos de cordel, não se rende à cilada de escrever buscando a identidade do Piauí, criando um texto muito mais universal, mas não deixa de ser um homem falando de sua aldeia para o mundo.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Manifesto das reminiscências físicas num mundo virtual



Por Bernardo Aurélio

Esses dias coloquei uma frase no facebook que dizia mais ou menos assim: “adquirir mídias físicas é um manifesto da identidade e da materialidade”. Era de se esperar, que em meio a esse mundo virtual, que é a própria experiência das redes sociais modernas, os detratores viessem com uma enxurrada de “nãos”, negando minha máxima, mas qual não foi minha surpresa, quando a discussão levou a outros rumos, cheios de “curtidas” e solidariedade com minha opinião.

Eu estava falando de um tipo de manifesto. Ora, vejam só, quem é que se manifesta hoje em dia? Principalmente: quem se manifesta diante de um teclado que publica na “time line” do facebook? Normalmente são pessoas raivosas, de opiniões radicais, fundamentalistas, mas em muitos outros casos, são minorias. Um manifesto, às vezes, é apenas um grito ao vento buscando não um grande público que faça eco, mas uma testemunha.

Recentemente assisti a um filme argentino que me escapa o título, mas registro aqui que foi durante a I Mostra de Cinema do Artes de Março, no Teresina Shopping, cujo um dos curadores culpados foi o cineasta Douglas Machado. Era um documentário sobre um pequeno grupo de pessoas incomodados com o fim da Kodak e, consequentemente, da produção de películas, matéria prima para fazer cinema. A “fita” era sobre o incômodo de ser levado por uma correnteza que tenta apagar experiências e tecnologias em troca de algo novo e sobre como esse grupo resistiu. Uma resistência penosa, pois mesmo quando vitoriosos os transformam em alienígenas do seu contexto. Isso porque aquele grupo conseguiu produzir suas próprias películas e realizar um longa-metragem todo em super 8, uma tecnologia completamente fora da curva do tempo de hoje. Foi nesse filme que o “protagonista” disse que não queria um público, mas sim testemunhas. Todo manifesto busca testemunhas.

Oh! Mas que bobagem tudo isso de defender coisas velhas que ocupam espaço e juntam poeira, quando tudo pode caber em um pen drive, ou, muito melhor, na “nuvem”. Não poderia haver nome melhor... Pra quê coisa mais transitória que uma nuvem?

Outro dia um cliente veio se desfazer de 12 discos blue-ray porque já os havia transcodificado todos para seu HD e não fazia mais sentido tê-los. Sua indiferença com a singularidade do objeto, mesmo na era da reprodutibilidade técnica, quando um disco é só mais um dentre milhares produzidos, é de amargurar. Falta-lhe sensibilidade de perceber a troca de uma coisa real por uma experiência de incontáveis bytes.

Alguém poderia perguntar “mas qual a importância do real se todas as experiências são sentidas virtualmente?”. Matrix. Tudo isso é demasiadamente pós-moderno pra mim, que acredito na colher e nas coisas simples. O que importaria é a sensação da experiência e não o objeto em si. De fato, o é. Aquilo que não nos toca, não nos diz nada. Aquilo que nos toca. Tocar. Materialidade. O objeto é uma testemunha do tempo e nós estamos nos tornado insensíveis a ele, substituindo o concreto pelo intangível, abandonando a própria história e aplaudindo, precisando cada vez mais de novos HDs externos ou mais contas em streamings...

A matéria tem história singular que nenhum histórico de blog ou de outros sítios digitais podem permitir. Baixei todas minhas fotos do Orkut quando o google permitiu, pois a rede social ia sair do ar. Mas não tenho mais acesso às discussões, aos grupos, aos bate-papos à tudo aquilo que poderia dar alguma personalidade ou informação à minha vida. Saiu do ar, fugiu da nuvem. Transitório. Inacessível.

Matéria é testemunha primária. Materialismo não é consumismo. Sendo bem ordinário, comprar um livro ou um DVD é um registro, é um manifesto, é um nadar contra as ondas da world wide web. Ter é resistir ao tempo. Ter não é mesquinho, não é feio, não é adorar uma coisa, é poder acessar por todos os sentidos uma experiência que te coloca no tempo, mesmo quando somos anacrônicos em nossos filmes em super 8 ou em nossos discos de vinil ou em nossas revistinhas de papel. É abrir um livro e ler a dedicatória de um pai para um filho, coisa que nenhum pdf ou senha do netflix substitui.

segunda-feira, 12 de março de 2018

CONSTRUINDO UMA RELAÇÃO COM A HISTÓRIA ORAL


Bernardo Aurélio, julho de 2013

Resumo: Este artigo apresenta um relato da minha relação com as entrevistas que realizei durante minha produção acadêmica, percorrendo desde a graduação, especialização e mestrado, entre os anos 2000 e 2013, traçando um paralelo com as leituras teóricas que fiz sobre História Oral procurando revelar onde se firmaram meus erros e acertos em minhas práticas com o tema abordado.
Palavras-chave: história oral, método e relato.

            Escrever sobre teoria da história oral não é mais nenhuma novidade. A bibliografia é bastante extensa e várias são as discussões introdutórias em torno do tema. Entre as perguntas mais recorrentes, questionam se, afinal de contas, ela é uma técnica, uma metodologia ou uma disciplina. Para quem ela é feita? Para os iletrados que não puderam construir discursos escritos? Ela é tão válida como fonte quanto qualquer outro tipo de fonte?  De quem é a autoria da entrevista? Do entrevistado ou do entrevistador? Quais os cuidados e as sensibilidades na relação estabelecida entre os dois lados envolvidos na produção de uma entrevista? Quais os processos técnicos e metodológicos básicos para se realizar história oral?
            Para contribuir com essa discussão, sem entretanto, querer responder a todas esses perguntas, tomarei como ponto de partida a minha relação com o tema, de como fui sendo introduzido no mundo da pesquisa, das entrevistas e da oralidade até o ponto onde ela tornou-se fundamental para o desenvolvimento da minha dissertação.

A PRIMEIRA “ENTREVISTA HISTÓRICA”
            Formei-me em licenciatura em história em 2005, pela Universidade Estadual do Piauí. Naquela época, participei de congressos, encontros, seminários e sempre haviam discussões sobre história oral que eu esquivava, passando pela tangente, mais interessado em outras questões específicas envolvendo a micro história cultural. Para mim, história oral tratava-se de um método interessante, mas desconhecido e aparentemente bastante trabalhoso de lidar. Mais trabalhoso que o normal, na história. Afinal de contas, seria preciso realizar várias entrevistas e transcrevê-las na íntegra... Definitivamente: não!
            Naqueles anos de graduando, desenvolvi meu trabalho de conclusão de curso chamado “Quadrinhos Pós-68”, que tinha três objetos de pesquisa principais. Três pessoas, autores de quadrinhos que moravam na minha mesma cidade e que estavam completamente acessíveis a mim. Estava trabalhando com história do tempo presente, meu recorte iria de 1964 até o início dos anos 1990, seria proveitoso me valer da história oral, pois como diz Bernstein, o historiador do tempo presente é um privilegiado que “praticamente jamais corre o risco de se encontrar privado dos documentos necessários para seu trabalho” (BERNSTEIN, MILZA, 1999, p.129), tamanha a abundância de fontes. Porém, é bem verdade que nem sempre temos acesso a uma fonte produzida no tempo presente, como por exemplo: diários pessoais ou documentos internos de órgãos públicos que ainda não se tornaram acessíveis. Mas o fato é que, comigo, devido a tanta fonte que consegui, como recortes de jornais, fotografias, revistas, acabei me afastando da ideia de precisar gravar entrevistas com meus objetos de pesquisa.
            Dos três autores com quais trabalhei em meu trabalho de conclusão de curso (TCC), dois eu conheci pessoalmente. Do terceiro, só tinha ouvido falar e lido alguns de seus quadrinhos. Arnaldo Albuquerque e Antônio Amaral são pessoas sobre as quais não é difícil encontrar textos em revistas locais, jornais ou internet, além disso eu já os conhecia bem antes de decidir fazer minha monografia. Juntei recortes, fotografias, tirei cópias, fui na casa de um, na casa de outro, coletei ali mais material. Li, comparei com outros textos, analisei, enfim: historiei da melhor maneira que pude, mas não gravei nenhuma entrevista.
            Amauri Pamplona, o terceiro deles, nascera em 1942 e Arnaldo Albuquerque, em 1952. Já Amaral nascera em 1962, portanto, tratava-se de uma criança em 68, o ano-chave da minha pesquisa, e só viria tornar-se um adolescente mais consciente de sua posição enquanto sujeito do mundo no tempo na primeira metade da década de 80. Talvez por isso, Amaral seja o menos afetado diretamente pelos fatos da ditadura militar e, por conta desse distanciamento temporal, senti a necessidade de fazer uma entrevista para entender melhor como ele sentia a ditadura militar. Parece-me que quanto mais presente a história, mesmo com a profusão de outras fontes, mais necessário é a realização de entrevistas para uma melhor apreensão das coisas no tempo.
            Posso dizer que, com Amaral, realizei minha primeira entrevista objetivando uma pesquisa histórica, pois considero que ainda estava muito longe de fazer história oral. Mandei as perguntas por e-mail: muito mais prático. Mandei e esperei as respostas devidamente digitadas. Por um lado, eu não teria a necessidade incômoda da transcrição, é verdade, mas por outro lado tive as limitações que uma lista de perguntas pré-estabelecidas determina, com a frieza da distância e sem a plasticidade que tem o exercício oral.
            Das 15 perguntas que fiz para Amaral, apenas uma era voltada diretamente para minha pesquisa[1]: “A ditadura militar interferiu de alguma forma na sua vida artística?” Esperava encontrar, na resposta que ele me daria, uma explanação de como o modo de viver o período militar influenciou sua vida, de que forma aquela experiência foi latente no seu cotidiano. Hoje, percebo que o padrão lógico rigidamente estruturado da minha pergunta poderia ter inibido de tal modo a memória do depoente que sua fala poderia ter se tornado monossilábica ou muito curta (THOMPSON, 2002, p. 257), ou seja, poderia ter se limitado a um “sim” ou “não”, sem aprofundamento nenhum.  Atencioso como foi, a resposta do Amaral me deixou relativamente satisfeito.
            Nessa entrevista com Amaral, as 14 outras perguntas eram especificamente sobre o Hipocampo, revista em quadrinhos de sua autoria que também foi fonte de pesquisa para meu TCC. Então, praticamente toda a entrevista foi útil para minha pesquisa, entretanto, nem de longe essa primeira “entrevista histórica” que fiz se aproximava da metodologia da história de vida ou história temática que a história oral procura compreender a partir de um recorte muito mais amplo e aberto.
Pelo menos com o Amaral eu fiz uma entrevista. Com Arnaldo Albuquerque, me dei por satisfeito com o que encontrei em jornais e revistas. Simplesmente, não tive a necessidade de entrevistá-lo porque a variedade de fontes materiais supria minha necessidade. Até então era dessa forma que eu entendia a história oral, como uma “complementação” à pesquisa das fontes materiais. Ou seja, sequer uma entrevista por e-mail me ocorreu, já que meus documentos impressos me satisfaziam. Entretanto, cabe aqui um parêntese, ou dois pontos: eu conhecia Amaral e Arnaldo, já tinha conversado com eles várias vezes, já tinha escutado histórias deles e sobre eles. De alguma forma, essas histórias, as reminiscências das experiências que tive com eles ficaram marcadas em minha memória na hora de escrever os respectivos capítulos destinados a eles em meu TCC. Por outro lado, com Amauri Pamplona foi diferente, como veremos a seguir.

A HISTÓRIA ORAL QUE EU DEVERIA TER FEITO
Amauri Pamplona era o menos conhecido dos três, tanto para mim quanto para o púbico amante da nona arte, praticamente um inédito, só tinha encontrado sobre ele dois pequenos textos e histórias em quadrinhos: uma publicada na revista chamada Pulsar e outra na Zig Zag. Não fosse o fato de ter sido me entregue emprestado quase 500 páginas de quadrinhos originais produzidos por Amauri ainda em 1969 e outros fanzines da década de 70 e 80, provavelmente eu o teria procurado em sua casa e teria tido contado com ele como tive com os outros dois autores. O fato é que fiquei completamente encantado com todas aquelas páginas virgens do olhar do historiador e extasiei-me, solitariamente, debruçando-me sobre aquelas páginas amareladas. Novamente a abundância de fontes materiais me impediram de fazer a entrevista, afinal, pra quê realizá-la se tudo de que precisava para fazer minha análise estava bem ali, diante de mim e ao alcance das mãos? A história oral, erroneamente ainda é considerada por muitos, como foi por mim naqueles anos de graduando, como um recurso “tapa-buraco”: se você tem as fontes materiais suficientes, para que entrevistar pessoas? Para quê criar fonte se em suas mãos estão documentos impressos muito mais “fidedignos” e “confiáveis” para o historiador?
Lembro-me que pouco depois da defesa do meu TCC tomei conhecimento de que Amauri Pamplona morrera. Morrera alguém sobre qual trabalho eu dedicara boa parte dos dois anos que passei produzindo minha monografia, texto pelo qual nem o ranço do tempo nem a rígida auto-crítica conseguiram me fazer escondê-lo na gaveta, e talvez, somente por esse carinho egocêntrico que tenho pelo meu trabalho, pesou-me forte a consciência histórica. Não conheci Pamplona pessoalmente, mas poderia tê-lo feito. Poderia ter produzido um registro histórico mais próximo dele através da oralidade. A entrevista deveria ter sido feita, e hoje isto é fato pra mim, mas não só pelo remorso de pesquisador: deveria ter sido feita simplesmente pelo fato de que não poderia ter me privado de conhecer pessoalmente o “objeto” principal de um capítulo inteiro de minha pesquisa, pelo simples fato de que o autor dos textos que eu analisava estava vivo, próximo e disponível. Trata-se de uma irresponsabilidade histórica pela qual aqueles que trabalhem com tempo presente não devem jamais se dar ao luxo de cometer.
Durante a pesquisa que realizei sobre Amauri Pamplona, a partir das minhas interpretações de seus quadrinhos, de conversas com pessoas que o conheceram (como o próprio Amaral ou a professora Graça Vilhena, sua prima), pude compreender que se tratava de uma pessoa angustiada pelos tormentos da vida e que nunca teve o reconhecimento devido pela arte que fez. Na época, eu não tinha leituras que me dessem essa compreensão, mas hoje penso que se tivesse desenvolvido bem meu papel como historiador talvez pudesse ter contribuído de alguma forma através do caráter terapêutico que a história oral pode proporcionar, como diz Thompson:

Recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade; continuar lidando com essa lembrança pode fortalecer, ou recapturar, a autoconfiança. A dimensão terapêutica do trabalho da história de vida tem sido uma descoberta que sempre se repete (2002, p. 208).

Talvez, durante uma entrevista de uma ou duas horas percorrendo o labirinto da memória, encontrar o Minotauro não teria sido tão ruim, e falar sobre ele próprio a partir de uma distância segura poderia ser engrandecedor, revelador e ter feito bem ao Amauri. Ou talvez, ainda, de outro ponto de vista mais egocêntrico, ter realizado essa entrevista teria contribuído sobremaneira para minha monografia, e, consequentemente, teria feito de minha pesquisa algo melhor para a história que  contei.

O PRIMEIRO CONTATO COM O GRAVADOR
Anos depois, em 2008, enquanto cursava uma especialização em artes pela UFPI, fomos dirigidos a produzir dois artigos, cada qual sobre um artista piauiense contemporâneo. Os textos produzidos deveriam ter um caráter biográfico, melhor dizendo: catalográfico. De alguma maneira inconsciente, eu tive certeza de que precisaria recorrer à entrevistas e, pela primeira vez, decidi usar um gravador de áudio para realizá-la. É claro que o simples fato de você usar um gravador para capturar sua entrevista não faz de você um historiador que usa a história oral como método. Aproveitando este final de parágrafo, fica aqui esclarecido o meu direcionamento em entender a história oral como metodologia de pesquisa, nem pura e simplesmente técnica, nem uma disciplina específica e independente. Entendo a história oral como um método diferente de trabalhar determinados objetos, mas em 2008 eu não sabia disso: apenas fiz entrevistas com um gravador.
Decidi entrevistar meu irmão, Caio Oliveira, que é um excelente quadrinista, se é que o meu julgamento parcial poderia falar aqui. No meu entender, ele enquadrava-se na proposta de criarmos, de acordo com o trabalho da turma da especialização que cursava, um catálogo de recentes ou desconhecidos artistas locais. Caio já tinha uma produção significativa, com trabalhos autorias e em parceria com produtores independentes do Brasil, da Escócia e Estados Unidos. O segundo que eu deveria entrevistar seria o Albert Piauí, cartunista e chargista na imprensa piauiense principalmente durante as décadas de 1970 e 1980, além de organizador do Salão de Humor do Piauí, evento que em 2013 chegou a sua 30ª edição.
Comecei pelo meu irmão. A entrevista foi realizada dia 12 de outubro de 2008 e é incrível o nível de amadorismo registrado durante toda a entrevista, que não durou sequer 20 minutos. A conversa não seguiu uma linha de pesquisa de história de vida, nem poderia aprofundar conhecimentos realmente significativos do entrevistado. É sabido que durante uma entrevista de história oral você pode produzir um roteiro de perguntas, mas também é aceito que o entrevistador não precisa prender-se a ele, pois você pode realizar uma entrevista livre. Thompson diz que, com relação a uma entrevista livre, o “fluir fica mais forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações ou evidências que valham por si mesmas, mas fazer um 'registro' subjetivo de como um homem ou mulher, olha para trás e enxerga a própria vida”, e conclui dizendo que nenhuma entrevista deve ser completamente livre, sendo “essencial o planejamento antecipado das perguntas a fazer” (2002, p. 258 e 259). Não foi o que eu fiz.
Minha primeira experiência com um gravador, pelo fato de ser meu irmão o entrevistado, simplesmente aconteceu. Sem preparação prévia, minha ou do meu irmão, sentei ao lado de onde ele estava, disse que precisava realizar um trabalho entrevistando-o, ele aceitou e comecei a gravar. Tudo que eu precisava dizer era “tenta responder como se eu não fosse teu irmão. Como se eu não soubesse de nada” e depois perguntar sobre que quadrinhos ele fez, que projetos estava fazendo... Um apanhado completamente superficial que dificilmente ajudaria em qualquer boa análise sobre vida e obra do interlocutor. Tudo que consegui com ele serviu realmente mais para a elaboração de um catálogo do que de um artigo biográfico.
Por duas vezes eu dei a entrevista por encerrada, depois lembrava de algo e fazia outra pergunta. Minha segunda pergunta foi “O que tu acha que te levou a ser desenhista?”. Caio respondeu que foi a influência do pai. Quase no final da entrevista, depois de 15 ou 16 outras perguntas, dentro de um contexto onde a entrevista já se dava por encerrada, eu retomei a essa influência do pai porque julguei a mais relevante de toda a entrevista e reforcei: “como tu acha que ele te influenciou, te ajudou de alguma forma?”, entretanto, esse pergunta àquela altura, revelava a completa falta de organização e direcionamento no que eu estava fazendo.
O telefone tocou, eu tive de sair para atender e disse “continua falando aí...”  e saio da sala, deixando-o sozinho com o gravador. Nem preciso comentar o quanto isso é errado. Quando retorno, menos de 1 minuto depois, interrompo-o perguntando: “Tá falando sobre o que?”. E ele responde: “Sobre tua pergunta, que eu nem lembro mais qual foi”. Em outro momento, como se minha entrevista não fosse ruim o suficiente, eu gritei: “Mãe, abaixe só um pouquinho aí!”, cortando o início de uma fala do Caio, porque o volume da TV do quarto da nossa mãe estava atrapalhando, o que deixa claro que o local e o momento em que estava sendo realizada a entrevista eram impróprios.
Por causa da ausência de um roteiro, em alguns momentos eu ficava em silêncio tentando formular a próxima pergunta e, não por menos, coisas assim aconteceram: “Como tu se colocaria dentro do cenário cultural piauiense? Dentro dessas artes plásticas, você poderia se conceituar, nesse cenário?”. E ele respondeu: “Hmmm... Não sei nem se entendi a pergunta”. Falta de clareza e objetividade. Depois eu tentei consertar, explicando: “Se tu consegue enxergar tua produção dentro de um cenário no Piauí.” Ele respondeu em apenas três linhas sucintas, que começou com “acho que seria muita pretensão da minha parte” e concluiu com “se alguém disser que é arte, fico envaidecido. Eu prefiro me calar”. Provavelmente por causa das minhas perguntas mal elaboradas, as respostas de Caio eram curtas, sem problematização. Talvez isso se deva ao fato de uma timidez do entrevistado diante de um gravador, pela falta da prática narrativa através da oralidade, que Benjamin adverte que está se perdendo nos dias atuais (BENJAMIN, apud MONTENEGRO, 2010, p. 51). Caio é acostumado a falar através dos seus desenhos, de suas histórias em quadrinhos. Sua narrativa é prioritariamente desenvolvida no campo visual, desde criança, por isso, não afeita à fala. Talvez isso tenha feito dele um narrador ruim diante do obstáculo do microfone[2].
Talvez a proximidade familiar entre mim e o entrevistado tenha estabelecido uma inconsciente certeza de que “nós conhecemos a história que estamos contando”. Ouvindo novamente a entrevista que realizei há quase cinco anos, percebo que se estabeleceu um contrato de confidência entre nós, onde ele apenas confirmava o que eu esperava e sabia que ouviria. Isso me impediu de realizar perguntas básicas. Em determinado momento, Caio fala que tem um produtor dos Estados Unidos interessado em seu trabalho. Eu sabia de quem ele estava falando e sabia das circunstâncias como se conheceram, por isso não me preocupei em questioná-lo sobre isso. O resultado foi que a entrevista acaba e não sabemos o nome deste homem nem quais trabalhos fizeram dele um “semi-profissional” no exterior, como Caio diz. Permitam-me incluir aqui essa informação que pode ser útil para um eventual curioso: chama-se Mike Kennedy e um dos seus trabalhos mais conhecidos é Lone Wolf 2100.
É provável que sendo outro o entrevistador, esse contrato de confidência não existiria e Caio teria, espontaneamente, dito o nome do editor norte-americano, ou seria questionado sobre isso. Sendo o entrevistado um bom narrador ou não, cabe a quem pergunta dirigir a entrevista e tentar torná-la mais produtiva.

O MAIS PERTO QUE CHEGUEI
            Minha entrevista com o Albert, apesar ter sido apenas dois dias depois da realizada com Caio, foi um pouco diferente. Posso até dizer que substancialmente melhor realizada, melhor pensada, primeiro porque eu estava tratando com uma pessoa que não conhecia tão bem como meu irmão, isso exigia de mim mais preparo e me munia de mais curiosidade, segundo porque eu sabia que se tratava de um encontro marcado, uma oportunidade que não seria tão facilmente articulada ao prazer das minhas necessidades e, terceiro, porque eu sabia, de antemão, que haviam tramas históricos com Albert que me interessavam a priori, haviam temas preciosos e histórias de vida de outros personagens que cruzavam a dele e que, para mim, que estudava o contexto da  arte pós-68 desde o meu trabalho de graduação, seria muito rico.
            Partindo desse ponto, estabeleci uma lista de 20 perguntas, um roteiro, com questões tipo: “quando e como percebeu a inclinação para as artes e para o desenho?”, mais voltada para o objetivo do artigo a ser desenvolvido para a disciplina da especialização em artes, mas também inclui na lista algo assim: “Como foi o período da ditadura militar para o seu cotidiano? Para o seu trabalho? Teve algum problema com a polícia?”, pergunta que claramente denunciava um interesse bem maior que o de construir um catálogo de artistas modernos e contemporâneos do Piauí. Percebi que meu “Quadrinhos Pós-68” tem um viés político-cultural e o nome do Albert aparecia nas leituras que fiz para aquela pesquisa. Eu queria saber mais sobre essa história...        
            Marcamos o dia da entrevista: 14 de outubro de 2008. Eu fiquei de encontrá-lo em sua casa, mas poucos antes, quando estava me preparando para sair, liguei para reconfirmar com ele e avisá-lo que estava indo ao seu encontro. Disse-me que esperasse numa esquina, há alguns quarteirões de distância da casa dele. Chego e espero. Era uma esquina qualquer, que levava pra algum lugar da zona norte da cidade. De um lado tinha um terreno sem cerca com uma pequena casa de reboco debaixo de um enorme pé de manga, do outro, tinha um boteco vagabundo. Ele veio fumando seu cigarrinho de palha, apontou pro barzinho e falou com aquele jeito pausado típico que tem: “Vamos conversar ali. Porque... é melhor...” Achei que foi uma péssima a ideia mesmo sem nunca ter lido Thompson, que diz:

Em primeiro lugar, procure utilizar um cômodo tranquilo em que você não seja perturbado por vozes de outras pessoas e onde não haja ruídos fortes ou problemas acústicos causados por superfícies rígidas. O barulho do tráfego de fora pode ser abafado com o uso de cortinas, mas o crepitar do fogo soará surpreendentemente forte na fita gravada (2002, p. 269).

            A verdade é que esse tipo de problema não passou pela minha cabeça quando pretendi gravar com o meu irmão no quarto onde funciona seu “estúdio”, e lá veio o inesperado e provável som da TV e da nossa mãe nos gritando por mais uma vez. Entretanto, era óbvio que gravar em um bar, em frente a uma rua movimentada, com várias mesas e vários clientes seria um grave problema para a qualidade da captação do áudio. Como disse, ainda não havia lido Thompson, mas ele mesmo adverte que a entrevista deve ser feita em um lugar onde o entrevistado sinta-se à vontade, normalmente é em sua própria casa, mas às vezes, o local de trabalho ou um bar pode ativar memórias ou tornar a conversa menos burocrática (2002, p. 265). Imaginei, com minha compreensão intuitiva, que teria de ser ali mesmo, onde ele achasse melhor, porque, mesmo sem o conhecimento específico em teoria da história oral, sabia que era importante deixar o entrevistado sentir-se confortável. Sentamos, pedimos uma cerveja e começamos a conversar.
            A conversa fluiu bem e em determinados momentos nem parecia uma entrevista formal. Lembro-me, novamente, de Thompson dizendo que “uma entrevista não é um diálogo, ou uma conversa. Tudo o que interessa é fazer o informante falar. Você deve ficar o mais possível em segundo plano” (2002, p. 271) ou que, acima de tudo, é preciso disposição para ficar calado e saber ouvir (2002, p. 254). A verdade é que em certos momentos eu apareci mais do que deveria durante as perguntas, ou sugerindo uma palavra ou outra em momentos onde o Albert construía, mentalmente, suas frases. Mas erros como esses foram apenas em alguns poucos momentos, não me crucifiquem! E o mais importante é que Albert ajudou bastante, pois é um grande narrador. Como um artesão, foi “tecendo histórias suas e de outros, as quais se constituem como que em anéis que vão sendo transmitidos a todos os que dispõem a ouvi-los” (MONTENEGRO, 2010, p. 61). E assim, Albert falou sobre seus pais, sobre sua educação, sobre Arnaldo Albuquerque, sobre o Salão de Humor do Piauí, sobre os jornais onde trabalhou e sobre arte.
            Reescutando a entrevista, quase cinco anos depois, percebi que “refletir acerca de uma história de vida a partir do relato oral de memória é debruçar-se sobre fragmentos que o narrador – ainda que com a participação do entrevistador – selecionou para construir uma imagem, uma identidade” (MONTENEGRO, 2010, p. 63). Dessa maneira, Albert apresenta-se como um cartunista que idealizou e que realizou durante décadas um dos maiores eventos de humor do Brasil, mas ao mesmo tempo dizia que “não me acho importante dentro da arte piauiense”, porque sua grande evolução como artista estava guardada e inalcançada pelo público, dizia ainda: “...eu acho que no Piauí, com relação ao desenho de humor, quem mais avançou fui eu, até hoje. Sério. Só que a maioria dos meus desenhos eu não botei pra fora, não é publicado”. Mais tarde, falando sobre si e sobre seu trabalho, disse sorrindo que as pessoas “não conhecem e nem querem, mas elas me adoram”.
            Quando Albert foi perguntado sobre a década de 1970, a ditadura militar e os movimentos de esquerda, ele disse ser frequentador assíduo da casa de Antonio José Medeiros, um dos fundadores do PT no Piauí e nome forte durante os oito anos do governo petista de Wellington Dias no Estado. Disse que ele, “o Antonio José Medeiros, Jorge Riso, Pierre Baiano, Ritinha Cavalcante. Nós fomos presos pela ditadura”.  Sobre essa experiência, Albert relatou:

Começaram a fazer pergunta sobre o Antonio José Medeiros. “Você tava no dia tal, local tal?”. Eu disse: “Estava”. Eles sabiam onde eu sempre estava. Folhearam os desenhos começaram a fazer mais perguntas sobre o Antonio José Medeiros: “Antonio José é comunista?”, Eu disse que ele não era, porque ele nunca foi. Antonio José nunca foi comunista. Sempre foi de direita, ou melhor: não de direita fundamentalista, mas nunca foi de esquerda, entendeu?

            Para Albert, aquelas pessoas que se reuniam na casa do Antonio José em grupos de estudos para ler Fernando Henrique de Cardoso e Celso Furtado não representavam uma ameaça comunista ou revolucionária, ele dizia que “todo mundo era de esquerda, claro! Todo mundo era contra o sistema, mas ninguém queria ser contra o sistema jogando bomba, matando gente”. Ele mesmo disse que não tinha “saco” para aquelas leituras e que ia mais para o grupo porque gostava de uma garota que estava lá (Helena), com quem se casaria depois. Entretanto, saber se eram eles comunistas ou se representavam algum tipo de perigo para a ditadura militar, não cabe apenas a Albert dizer, pois a lembrança do passado é resgatada pelo presente e “como afirma Bergson (1990), não há percepção pura, assim como não há memória pura. Nossa percepção do presente e as lembranças do passado estão marcadas pelas nossas histórias cotidianas, que são sempre individuais e coletivas” (MONTENEGRO, 2010, p. 64).
            A passagem que considerei mais marcante da fala de Albert, pela qualidade narrativa, foi quando de sua prisão por conta deste envolvimento com o “pessoal da casa do Antonio José”. É longa a citação, mas é gostosa de ler. Ele disse:

Eu andava no meio da rua, ainda hoje eu me lembro, eu estava com o José Leite e um amigo meu. Passamos por vários bares de Teresina. Notei que tinha um pessoal que sempre estavam nos mesmos bares que nós. Terminamos no Luxor Hotel, para um leilão de arte e eles estavam lá. O Leite me deixou na casa de Antonio José Medeiros. Eu fiquei lá, conversando um pedacinho. Quando eu saí, para ir pra casa, uns cinco quarteirões depois, vários homens armados saíram de um fusquinha e me prenderam. Rasgaram a cintura da minha calça, eu que era magrinho, para não correr. Aqueles homens fortes, assim, super-armados, me puseram no carro e tcham! (gesticula com a mão, um carro saindo em disparada). Então me levaram para Polícia Federal. Quando eu cheguei, tive a surpresa de ver vários amigos meus já presos, sabe? Nenhum de nós queria pegar em armas e derrubar o sistema, Derrubar o sistema somente com ideias e palavras. Vários amigos presos. Todos que tinham contato com a casa do Antonio José Medeiros começaram a ser presos. Eu fui colocado em uma despensa escura, suja, sabe? Era assim, suja! Porque acho que era uma dispensa. Suja. Ainda hoje eu lembro, que eu estava de roupa branca. Eu fiquei em pé, no escuro. E eu tinha bebido a noite todinha e estava iniciando uma ressaca. A minha vontade mesmo era deitar e dormir. Eu me sentei naquele cubículo escuro e pensei: “Sabe de uma coisa, vou me deitar”. Mas deitar significava que eu ia ficar todo sujo. Era essa exatamente a ideia: ficar sujo e você perder a autoestima?

            Albert apresenta-se como um grande narrador, de afirmações hiperbólicas, coisas como: em Luzilândia o time de futebol dele era o melhor, invicto ou que “poucos conhecem os meus desenhos. Elas não conhecem e nem querem conhecer, mas elas me adoram”, revelando um lado épico que não está interessado em transmitir o “puro em si” da coisa narrada, como um artista da pedra, transformando a informação em narrativa, desenhando em palavras, reconstruindo através delas e imprimindo sua marca na própria fala, “como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN apud MONTENEGRO, 2010, p. 53 e 54). Além disso, como diria Montenegro, seu relato aponta “um exercício de reconstrução do passado recomposto. Nesse aspecto, seus relatos de memória oral apontam ainda para o exercício de reviver experiências, acontecimentos, fatos, possibilitando ao ouvinte transportar-se para o cenário, o contexto reinventado” (2010, p. 56).
            Posso até dizer que minha experiência com a entrevista de história oral foi relativamente bem-sucedida com o Albert Piauí. Meu receio com relação ao local onde foi realizada, um bar em frente a uma rua movimentada, não foi comprovado inteiramente. De fato, sons de carros e caminhões não atrapalharam tanto quanto o descarregamento de várias grades de cervejas que aconteceram durante a conversa. Da mesma forma, uma ou outra frase mais alta das mesas ao lado também não roubaram nossa atenção, bem como o garçom aparecendo e perguntando se trazia outra cerveja ou mesmo quando Albert disse “a saideira e um conhaque”. Detalhes que foram intencionalmente recortados da edição final da transcrição da entrevista.
            Já o roteiro que fiz foi fundamental porque me dava segurança e objetividade na linha do que eu estava querendo, entretanto, as 20 perguntas[3] previamente escritas transformaram-se em quase 60 participações minhas que orientaram sua fala. Mas houveram problemas dignos de nota: Depois de quase 2 horas de conversa, a bateria do gravador acabou. Sorte minha que em momentos oportunos fizemos uma pausa que aproveitei para salvar o arquivo no aparelho mp4. A entrevista foi registrada em 3 arquivos de áudio, o último tem exatamente 32 minutos e, quando a bateria acabou, fiquei desesperado porque não sabia se o aparelho fez um autosave naqueles últimos instantes de energia, ou seja: eu poderia ter simplesmente perdido a última meia hora de conversa, respostas que seriam tão caras pra mim. Não aconteceu, ainda bem.
Eu mantive aqueles últimos 32 minutos que a bateria do gravador registrou, entretanto, as palavras finais do Albert registradas na entrevista foram: “Quando a gente fala de desenho de humor, ninguém conhece esses caras. E outra coisa...”. Essa “outra coisa” ficou nas reticências: o esquecimento providenciado pela falta de bateria. Como a entrevista foi realizada há quase cinco anos é provável que nem o próprio Albert lembre-se do que falou e não ficou registrado.
            Lembro-me que Thompson diz que “nunca comece fazendo uma abertura formal ao microfone: 'Esta é a fita de Fulano entrevistando Beltrano em tal lugar'; isso é uma coisa que formaliza e esfria o ambiente”, ele aconselha que essas informações sejam adicionadas depois (2002, p.270). Esse erro eu cometi, tanto na entrevista com meu irmão como com o Albert.
            A distância entre o dia da gravação e o da transcrição é outro problema. Se tivesse sido transcrito em dias próximos àquele 14 de outubro de 2008, poderia ser que o próprio Albert completasse seu raciocínio e concluísse o parágrafo posteriormente. Entretanto, o processo de transcrição aconteceu no último final de semana na transição entre junho e julho de 2013. E hoje, 7 de julho, Albert deve estar lendo as 15 páginas de texto da sua entrevista e fazendo as correções que acha necessárias antes de assinar o termo de concessão de uso da entrevista para mim. Não preciso nem comentar o quanto tudo isso é errado e dificulta a prática da história oral.
            Determinada hora, Albert fala sobre um assunto delicado e depois de muito dizer sobre ele, afirma, em um dos raros momentos de seriedade de seu depoimento: “eu sei que você não vai publicar isso em seu trabalho”. Eu sorri e, talvez pela liberdade que tinha com o Albert, brinquei: “talvez não”. Ele então reafirmou: “Não, você não vai usar isso!”. É claro que todo caso é um caso, mas “para entrevistar é preciso comportar-se como adulto; não se pode estar com brincadeiras” (THOMPSON, 2002, p. 220) e essa minha fala é o tipo de coisa que pode trancar o entrevistador e levá-lo, inclusive, a recusar-se a falar ou sequer assinar o termo de cessão e uso da entrevista. É preciso estar atento a este tipo de atitude que pode comprometer todo um trabalho.
            Sei que a essa altura do meu relato, fica claro que em nenhum dos casos, nem mesmo na entrevista com meu irmão, eu produzi um termo de cessão de uso para que os entrevistados assinassem. O termo deve ser feito com antecipação e disponível para assinatura, de preferência,  após a gravação ou imediatamente após a aprovação do texto final pelo interlocutor. Acontece que essa “aprovação do texto” acontece durante um processo de construção que envolve quem pergunta e quem responde. Como transcrevi recentemente toda a entrevista que realizei com o Albert, mandei-a por e-mail para que fizesse as alterações que achasse necessárias, ou seja, para que ele corrigisse o que disse, alterasse o seu relato, mudasse o que estava dito e gravado em áudio. À primeira vista isso parece um crime histórico, mas vamos entender isso metodologicamente...
            Em todos esses casos de entrevistas que realizei, não posso afirmar com certeza que havia exercitado a prática da historia oral como rezam os métodos científicos. Primeiro porque não os havia transcrito, segundo porque não os havia analisado sob o prisma de um olhar crítico e histórico. Vamos entender como funciona essa transcrição, já que o arquivo de áudio é uma fonte primária e transcreve-la para o papel exige um processo chamado de transcriação:

O conceito de transcriação é uma mutação, “ação transformada, ação recriada” de uma coisa em outra (…) Nesse sentido, aplica-se à prática da transformação do oral no escrito; a metáfora da água que transmuda do líquido para o gasoso. A palavra também varia na forma do oral para o escrito. É assim que se justificam as variantes de uma mesma fonte, a palavra, que ao perder sua condição etérea ganha dimensões plásticas, viram letras grafadas (MEIHY, 2011, p. 133)

            É nessa dimensão colocada por José Carlos Meihy que entendemos esse processo. A entrevista escrita é outra coisa que deve ser a mesma coisa que em seu “estado” oral, poesia não é poema, “o poema é outro e o mesmo, a entrevista transcriada é outra e a mesma” (2011, p.134). O processo de plastificação da fala pressupõe, claro, outra estética e não se reduz simplesmente a uma transcrição pura. Valendo-se do que disse Frank Kermode, Meihy diz que a fidelidade absoluta da transcrição não implica no ato de saber escrever bem, que a transcrição não deve pretender retratar uma verdade absoluta (2011, p. 135). Bem mais interessante é entender e manter o sentido da fala do interlocutor, retirando os erros gramaticais desnecessários, reparando as palavras sem peso semântico, ignorando os sons, ruídos e interrupções que não contribuem para a entrevista, bem como apresentar o texto transcrito em sua versão final para a autorização do colaborador (2011, p. 139 a 143), o que, de fato, seria a comprovação de um trabalho bem feito.
            Se tiverem curiosidade de observar nos anexos deste meu relato, observarão que a entrevista com o Amaral não foi uma experiencia de oralidade, portanto não houve nem transcrição, muito menos transcriação. Na experiencia com meu irmão, fiz questão de manter os erros que poderiam ter sido corrigidos posteriormente pelo simples caráter didático que ele traz. Mas com relação à entrevista com o Albert, procurei, mesmo muito tardiamente, a seguir o manual de como fazer e como pensar a história oral colocada por Meihy.
            Então, entendendo que “criar” é um verbo sinônimo a “ficcionar”, o processo da entrevista em história oral pode ser entendido como um ato de ficção que envolve o entrevistador e o depoente. Segundo Meihy, “ressalta-se que na prática operacional da produção do texto/documento o entrevistado tenha a função de um operador que em consonância com o colaborador/entrevistador ajude a produzir um texto capaz de dimensionar o encontro” (2011, p. 121) dos dois. Diz ainda que “caso o entrevistado/colaborador, por exemplo, queira tirar algo de seu texto final, ainda na fase anterior à autorização, este poderá exercer seu direito” (2011, p. 121). Por conta disso, o texto foi enviado para Albert visando que ele fizesse as alterações que achasse necessárias sob meu único pedido de “tente apenas manter ao máximo a informalidade e espontaneidade da sua fala”. Meihy ainda afirma que “a textualização final da entrevista é de autoria do historiador, sendo o depoente um colaborador para a fabricação desse novo documento. Pensando o texto final como uma obra que fazemos juntos” (2011, p. 157), deixando bem claro que é função da história oral fabricar fontes, em um processo inteiramente participativo, elaborativo, que foge ao estigma de catalogador de dados e fontes a que o historiador normalmente é pré-julgado.
            Ainda como falei antes, para minha experiência com a oralidade tornar-se mais próxima de uma prática histórica, além da transcriação, falta ainda uma análise crítica. Sobre isso, Verena Alberti, no livro Ouvir Contar, fala-nos a respeito da experiência do senhor Hans Joachim Schröder, que fez uma volumosa pesquisa sobre “Os anos roubados. Histórias narradas e narrativa histórica na entrevista: a segunda guerra mundial do ponto de vista de ex-soldados de tropas”, que é também o enorme título do trabalho que realizou. O livro traz uma vasta pesquisa documental que confirmavam o conteúdo dos depoimentos recolhidos, demonstrando que

a análise das entrevistas consiste em comparar trechos selecionados com conteúdos de livros, artigos e romances sobre a Segunda Guerra e sobre outras guerras. Tais comparações tem o objetivo corroborar o caráter não efêmero das entrevistas, mas acabam dando a impressão de que todo o trabalho era dispensável, já que as informações fornecidas já se encontravam alhures (ALBERTI, 2004, p.62).

            Cabe ao historiador, claro, buscar construir um novo conhecimento ou mesmo uma nova perspectiva sobre a coisa analisada. Não faz sentido produzir um trabalho envolvendo a história oral, a partir de qualquer abordagem que seja (como técnica, metodologia ou disciplina), se não for procurando iluminar um tema a partir de novos olhares. A história oral não deve servir apenas como prova subjetiva de fontes materiais.
            Outra lição aprendida com a leitura sobre Schröder diz respeito, novamente, à problematização das entrevistas. Depois de provar que as falas de seus entrevistados eram válidas para a história apenas comparando-as com outras fontes disponíveis, o autor disponibilizou grande quantidade delas publicando-as em seu livro para que servissem de fonte para outras pesquisas. Segundo Verena Alberti:

A incapacidade de lidar com o saber do outro fica clara pelo fato de o pesquisador deixar as entrevistas falarem por si, como se o trabalho de colhê-las já demonstrasse esforço intelectual suficiente. Quer-se realmente conhecer o saber dos outros, ou quer-se apenas provar que aquilo que se faz é legítimo e, em seguida, oferecer o material coletado para outras pesquisas? (2004, p.67)

            Diante de tudo exposto até aqui e julgando que minha entrevista com o Albert pode ser considerada uma boa entrevista de história oral (permitam-me aqui uma auto-avaliação) chego ao imbróglio de Schröder: e agora? O que fazer com minha entrevista? Compará-la a outras fontes? Publicá-la na integra para servir a outras pesquisas? Sim, claro! Mas o que aprendemos com Verena é que não podemos nos limitar a isso. A entrevista bem feita e a transcriação são apenas os primeiros passos de um processo. Cabe a mim, agora, ciente do que foi aqui colocado, passar a diante, para a análise histórica, que na história oral não é diferente de nenhuma outra.
            O Salão de Humor do Piauí é o objeto de pesquisa do mestrado que curso nestes dias de 2013, e o Albert Piauí é uma das mais caras fontes de pesquisa para mim. Entretanto, a análise histórica do Salão de Humor ainda nem começou. Há muitas pessoas a entrevistar, muitas outras fontes a verificar, muitas informações para serem cruzadas, verificadas, analisadas e muita história ainda a escrever. Os próximos semestres me aguardam.

Referência bibliográfica
MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. São Paulo: Contexto, 2010.
MEIHY, José Carlos Sebe B. História Oral: Como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto. 2ª ed. 2011.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e terra, 3ª ed. 2002.
BERNSTEIN, Serge, MILZA, Pierre in CHAUVEAU, Agnes, TETART, Philippe. Questões para a história do presente. Bauru: EDUSC, 1999.
ALBERTI. Verena. Ouvir Contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV. 2004.


[1]Maiores informações sobre a entrevista com  Amaral em minha monografia, de 2005, disponível na biblioteca da UESPI.
[2]Se bem que usei um mp4 para capturar a entrevista direto no aparelho, sem a utilização de um microfone externo, talvez por isso a qualidade ruim do áudio original. Entretanto, me permiti a liberdade de usar a palavra “microfone” porque coube bem no texto. Às vezes a estética narrativa sobrepõe-se à verdade histórica.
[3]As perguntas que formulei originalmente estão em anexo.

sábado, 10 de março de 2018

Arquivo X – 11ª Temporada







Em 2016, voltaram a ser produzidos episódios inéditos de Arquivos X, após um hiato de 15 anos. Muitos não conhecem, mas a série foi uma das mais populares do mundo na década de 1990, só comparável, em número de público, com Friends e Sopranos.
Acontece que aquela retomada, 10ª temporada, não agradou a maioria dos fãs, apesar de ter atingido grandes picos de audiência, alguns maiores que os grandes sucessos na televisão atualmente, como Game of Thrones, provando que o amor dos “exers” (como são chamados os amantes de Arquivo X, semelhante aos “trekkers” de Star Trek) é grande, o que deu fôlego para que uma nova temporada fosse lançada em 2018.
Vamos analisar toda a temporada.
Resultado de imagem para imagens arquivo X 11º temporada

1. My Struggle III (nota 2 de 5)

O primeiro episódio é escrito e dirigido pelo criador da série, Chris Carter, mas é um pouco confuso, com muitos cortes, que procura uma dinâmica que mais incomoda do que parece inteligente. Aqui nós somos introduzidos à ideia de que o último episódio da 10ª temporada deve ser entendido como uma visão premonitória da agente Scully, de um futuro próximo que ela deve evitar e somos apresentados a uma ideia que parece ter sido imaginada por Carter ainda em 2000, na sétima temporada, que envolve o filho da protagonista, que foi entregue para adoção ainda bebê como forma de resguardá-lo dos perigos da conspiração que envolve a vida dos agentes do FBI, o que faz os fãs correrem atrás de um episódio específico de 18 anos atrás para relembrar o que está acontecendo de novo aqui. Esses tornam-se o mote desta nova temporada.
O episódio falha como começo de nova temporada, apresentando todos os defeitos dos episódios “mitológicos” da temporada anterior (os episódios 1 e 6 da 10ª temporada): personagens malconduzidos, cortes frenéticos, muita informação e pouco tempo para digerir. Simplesmente, o episódio não te dá tempo para refletir e até mesmo Mulder, narrando o episódio, torna-se desnecessário e fraca lembrança do que são as reflexões do personagem quando ele realmente aparecia em off em episódios anteriores.

2. This (nota 2,5 de 5)

É escrito e dirigido por Glen Morgan, que também é cadeira cativa na série. O episódio acerta na nostalgia dos fãs trazendo de volta um dos personagens mais carismáticos de toda a série, o pistoleiro solitário Langly. Aqui nós temos Arquivo X flertando com as novas tecnologias. Os desavisados podem imaginar que é uma tentativa de dialogar com os espectadores de Black Mirror, mas não se enganem. Arquivo X sempre teve episódios trabalhando o uso de tecnologias de ponta, como as ameaças da Inteligência Artificial.
O ponto alto deste episódio é revelar que os criadores desta nova temporada estão empenhados em aproveitar bem o pouco espaço de tempo que possuem (são 10 episódios, o que parece muito para os dias de hoje, mas Arquivo X já teve 25 episódios em uma única temporada) construindo uma teia onde, mesmo os episódios aparentemente fora do que chamamos de “mitologia”, ainda apresentam elementos que constroem uma grande narrativa que deve conectar toda a temporada.

3. Plus One (3,5 de 5)
Plus One é escrito por Carter e começa a mostrar, de verdade, porque Arquivo X merece novas temporadas.
Mortes improváveis estão acontecendo na cidade, cometidos pelas próprias vítimas, por seus duplos! Os agentes vão até lá resolver e a coisa ganha outros contornos: um pouco de thriller, pouco de humor, pouco de romance, tudo misturado com paranormalidade e aquele famoso joguinho da forca que brincávamos quando éramos crianças, onde ou a gente acerta o nome da pessoa, ou o bonequinho morre enforcado.
O ponto alto é a relação entre os protagonistas, que cresce de forma muito natural e, para nós que passamos ANOS esperando por um beijo entre eles, vê-los às confidências e carinhos atenciosos no quarto de hotel, mostra que eles amadureceram muito, coisas que apenas séries com 11 temporadas podem proporcionar ao telespectador.
4. The Lost Art of Forehead Sweat (nota 5 de 5)
Escrito e dirigido por Darin Morgan é o ponto alto da temporada até agora. Darin é autor de alguns dos episódios mais cômicos de Arquivo X, como “Mulder and Scully meet the were-monster” (de 2016, na minha opinião, o melhor da temporada anterior, onde um monstro é mordido por um humano e é amaldiçoado a viver como gente toda manhã), Clyde Bruckman’s Final Repose (da terceira temporada, sobre um vidente que ajuda a dupla a resolver crimes) e “José Chung’s From Outer Space” (sobre um autor de pulps ruins que entrevista os agentes procurando inspiração para escrever um livro sobre abdução alienígena) entre outros.
Neste novo episódio, Darin nos apresenta o “Sr. Ele”. Sabem quem é “Ele”? É aquele que conhece toda a verdade. Ele! A terceira pessoa que tudo vê e tudo sabe! De forma bem-humorada, como sempre fez, Darin nos prova porque as conspirações de arquivo X hoje, no mundo da fake news e da pós-verdade, não causam mais tanto impacto. A verdade já foi tão escancarada e apresentada de todas as formas, que as pessoas não conseguem mais discernir entre o que é verdade encoberta de mentira descarada. Nós vivemos no mundo da pós-conspiração. Um tapa na cara de todos que acreditam que Arquivo X é uma série datada e que não deveria continuar a ser produzida.

5. Ghouli (nota 3,5 de 5)
Este episódio, escrito e dirigido pelo também veterano da série James Wong, começa, aparentemente, como um “monstro da semana”, como chamamos os típicos episódios que sempre aparecem em todas as temporadas de Arquivo X, mas aquela mitologia que venho falando aqui vai sendo amarrada e somos apresentados ao bizarro William, o filho de Dana Scully, que tínhamos visto apenas como bebê na oitava temporada (de 2001), que agora é um adolescente problemático e muito mais estranho do que o Mulder poderia sonhar em ser.
Aqui, entendemos porque Gillian Anderson, que interpreta a Scully, é a grande atriz dramática que sustenta toda a série.


Neste episódio, vimos afundar a relação de Mulder com Skinner, o diretor do FBI a quem os agentes sempre reportaram ou recorreram, que vinha problemática desde My Struggle III, o que deixa a ponta para ser amarrada no episódio seguinte.

6. Kitten (nota 3 de 5)

Este episódio tem uma curiosidade: o ator Haley Joel Osmen, famoso por sua participação no filme O Sexto Sentido, é um dos protagonistas deste episódio. Ele interpreta dois personagens: um veterano de guerra do Vietnã e seu filho nos dias de hoje. O personagem de Haley lutou na guerra ao lado do diretor Skinner e o episódio busca mostrar um pouco do passado deste personagem que é quase o terceiro protagonista da série, mas que nunca teve apresentada sua vida pregressa ao FBI. A própria Scully fala no episódio que não conhecemos o Skinner.
Kitten, ao tempo que mostra uma paranoia envolvendo veteranos de guerra, estresses pós-traumáticos e gás de uso militar para controle emocional da população civil (adoro!), tenta nos revelar o lado humano de Skinner e traçar uma reaproximação de confiança mútua entre o diretor e os agentes. Digo “tenta” porque deixa um pouco a desejar. Skinner é um grande personagem e merecia um episódio melhor trabalhado, pois falha na forma como é conduzido, mas consegue construir uma cena final com um bom e bem escrito diálogo entre os protagonistas.
A temporada revela-se bem melhor que a anterior e ainda temos mais 3 até ela acabar. Não sabemos que futuro nos aguarda, fãs de Arquivo X, só nos resta sonhar com um episódio final melhor que o último da nona temporada.

7. Rm9sbG93ZXJz (nota 3 de 5)

O título do episódio é escrito no sistema Base64, que corrijam-me os melhores informados, são geralmente usados quando há a necessidade de codificar informações binárias que precisam ser armazenadas e transferidas e permaneçam inalterados. Procurei um site que faz a transcodificação e descobri que “Rm9sbG93ZXJz” significa “Followers” (seguidores).
O episódio já pode entrar na lista dos mais “incomuns” de Arquivo X, pois não te dá praticamente nenhum background de porque a história começa naquela situação e não se preocupa em explicar o que está acontecendo.
(Foto: FOX)

Pela segunda vez na temporada, assim como em This, a trama envolve as novas tecnologias e o mote é “o que nós ensinamos para nossas inteligências artificiais”, que tipo de monstro estamos criando…
Os agentes experimentam todos os assustadores transtornos que a indiferença tecnológica pode nos oferecer, desde um pedido em um restaurante que é servido errado, até o incômodo de sentir-se extremamente vigiado em todos seus passos, passando por carros pilotados sem motoristas que andam em alta velocidade.
O episódio é quase todo mudo, com pouquíssimos diálogos, o que pode ser entendido como uma sacada de ironia para os dias de hoje, mas o que torna-o um pouco sacal e de pouco ritmo. Mas o incômodo da narrativa e o humor de algumas cenas nos leva até a cena final e descobrimos o porquê de Mulder e Scully serem o melhor casal da tv americana, numa simples troca de olhares ou toque de mãos.

8. Familiar (nota 4 de 5)

“Familiar” destaca-se na temporada como um excelente triller. A primeira impressão que temos quando vemos o riso do mascarado Mr. Chuckleteeth na floresta é que talvez estejamos diante de uma releitura de Jogos Mortais, ou de mais um assassino mascarado que conhecemos bem de filmes como Sexta-Feira 13. Ainda bem que as primeiras impressões podem estar completamente enganadas...

O título do episódio cai bem, pois “Familiar” nos leva a uma história que pode facilmente ser comparado aos clássicos “monstros da semana” de Arquivo X. É um típico episódio da série que não requer conhecimento prévio sobre os personagens e sua mitologia, mas que pode ser apresentado a qualquer novo espectador e ele provará o gostinho e poderá entender porque Arquivo X não são apenas "homenzinhos verdes" e teorias da conspiração. Ponto alto!


"Familiar" nos leva para uma intricada confusão que envolve problemas familiares, injustiças em cidades pequenas, folclores locais e toda a selvageria e paranoia que uma caça às bruxas nos dias de hoje pode desencadear.

9. Nothing lasts Forever (nota 3.5 de 5)


Arquivo X sempre teve aquele tipo de episódio onde encontramos seitas estranhas fazendo coisas bizarras. Nothing Lasts Forever é um deles. O episódio procura incomodar, tanto pelas cenas nojentas quanto pela própria natureza dos personagens, que parecem uma versão macabra de um programa de matinê da TV setentista norte-americana.



Questionamos, como é comum em Arquivo X, os limites da ciência em um episódio cheio de cenas religiosas, no melhor estilo que já estamos acostumados a presenciar ao lado da agente Scully.




Infelizmente, o penúltimo episódio desta temporada tenta equilibrar uma história de clima freak ao tempo que procura desenvolver o relacionamento dos protagonistas e acaba se atrapalhando um pouco, onde uma parte da história não dialoga com a outra. Enquanto os agentes do FBI tentam resolver seu crime da semana, a série precisa arrumar a casa para o season finale no episódio seguinte e temos um episódio com dois pesos e duas medidas, dois pedaços que não formam um todo e, de novo, somos forçados a nos agarrar à simpatia dos atores e no mistério que o fim da temporada nos trará.



10. My Struggle IV (nota 2,5 de 5)


O último episódio nos chega e deixa muitas dúvidas. A principal delas é saber se a série realmente vai ter uma 12ª temporada ou se tivemos um series finale com uma reticência maior do que normalmente estamos acostumados em Arquivo X.

Chris Carter escreve e dirige o décimo episódio que consegue ser um pouco melhor que o primeiro desta temporada. O episódio tem crateras no roteiro capaz de deixar qualquer fã à beira de um precipício. Rápido e insensível, este final nos faz querer rever a nona temporada e entender que, enfim, aquilo não foi tão ruim assim.

De novo, Chris Carter, já reconhecidamente um novo George Lucas que odiamos amar, perdeu, pela terceira vez, a chance de construir um final digno para os personagens. Não falo de um final que agrade todos os fãs, falo apenas de um final de respeite os personagens que ele criou.


Se você ainda não viu, informo que, a partir de agora, teremos os SPOILLERS.

Primeiro você tem apenas 10 episódios onde o foco é saber o que aconteceu com o filho da Scully, o William, e ele aparece em apenas 2. Apesar de ser um bom personagem, afinal, Carter sabe criar bons personagens, a temporada deveria ter se focado mais nele, mostrando  melhor sua vida ao invés de apenas um resumão sobre sua adolescência traumática nas cenas antes da abertura de My Struggle IV.

A relação de distância entre William e Scully é ótima, afinal, ele nunca se relacionou com ela de fato. O inverso não é verdade. Scully gestou, criou nos primeiros meses, amamentou, sentiu a dor de ter de se separar do bebê além de toda a distância desses longos 17 anos de separação. É ridícula a cena em que ela diz para o Mulder que ela não é a mãe e ele não é o pai da criança, que ele é apenas um “experimento”. E que agora, milagrosamente (de novo) ela terá um novo filho e isso acalenta os dois, como se um filho substituísse o outro. Isso é cuspir na cara dos fãs e no sentimento de maternidade. É assim que vejo.


Todos amamos o Canceroso, mas sabemos que ele nem deveria estar nestas duas últimas temporadas. O homem sobreviveu a dois mísseis lançado por um helicóptero. Não me surpreenderia se ele voltasse numa possível 12ª temporada, afinal, levou apenas alguns tirinhos. Mas uma pergunta me incomoda: seu plano de destruir a humanidade se resumia a ele com um único frasquinho? Quer dizer, agora que ele morreu, o que aconteceu com seu plano? Com seu frasquinho?

A impressão que dá é que Carter pensou na forma mais fácil de terminar a série: vou matar todo mundo! Então, o canceroso morre, Monica Reyes morre de maneira ridícula sem o mínimo esforço de tentar justificar a mudança de sua personagem. Graças a deus não colocaram John Doggett nesta temporada! Prefiro a ausência à destruição da personagem. E o que foi aquilo que aconteceu com Skinner? Ele morreu debaixo daquele atropelamento? Se não tivermos uma 12ª temporada, já pensou o quanto é triste e insignificante o fim que ele teve? Algumas vezes você não pode deixar a reticências ou a interrogação.

E a morte de todos os membros do Sindicato de Colonização Alienígena? Uns com a cabeça explodindo, outros por um raivoso Mulder que invade sua base de uma maneira inexplicável (um tiro é ouvido do lado de fora, os seguranças vão atrás e o Mulder, que estava sozinho e que deve ter atirado, mas não estava lá fora, já estava dentro da base). Tudo muito fácil como varrer a sujeira para debaixo do tapete.

E a Scully ligando para aquele programa sensacionalista da internet para divulgar fake News? Isso é tão irracional e foge tanto da personagem! E sem necessidade! Inclusive, esse apresentador, o Tad O’Malley, que deveria ser importante nessa nova mitologia, foi completamente mal aproveitado em toda essa temporada. Tad era importante (não era como aqueles dois agentes mequetrefes cópia carbono dos protagonistas que surgiram na décima e que foram, graciosamente, silenciados nesse temporada)! Foi Tad quem, bem ou mal, reintroduziu Mulder e reiniciou a série! E ele não fez nada significativo nesses 10 últimos episódios. Ignorado, quando poderia ser um novo tipo de Garganta Profunda ou Agente X para o show.

No mais, aguardando ansioso para assistir uma 12ª temporada para continuar amando e odiando a série, ou um spin off de William, já que estamos esperando a ausência de Gillian Anderson que prometeu não voltar.



Nota média da temporada: 3,25 de 5