quinta-feira, 31 de maio de 2012

Daytripper


Daytripper: Não, não quero falar da música dos Beatles. Quero falar de um gibi criado pelos irmãos gêmeos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá. Na verdade, não terminei de ler o livro deles ainda e nem sei se tem alguma ligação do quadrinho com a música homônima dos besouros. Mas normalmente é a primeira coisa que vem a nossa cabeça se conhecemos um pouco dos rapazes de Liverpool quando pegamos esse livro em nossas mãos. Como sou muito mediano em inglês, usei o Translete Google e não vi ligação nenhuma, mas deve ter, com certeza. Entretanto, o que realmente importa é que se há ou não ligação, e se você percebe isso ou não, de nada interferirá no prazer da sua leitura.



Daytripper é um desses trabalhos onde percebemos que os artistas que nós gostamos realmente amadureceram, perderam os excessos artísticos e encontraram o caminho do sucesso criativo. Os irmãos Bá e Moon faziam fanzines, pequenas crônicas em quadrinhos, muitos num clima bem nostálgico, blazé, algo meio indie rock, sabe? Poesias e reflexões sobre a vida? Umas das histórias desses fanzines, que eles chamam de 10 Pãezinhos (aliás, um nome muito fofo, fala a verdade?) era sobre um grupo de amigos que se encontram no aniversário de um amigo morto para lembrá-lo. A alma do falecido aparece e todos saem pra si divertir, beber e escutar rock. Esse é o tipo de coisa que os irmãos fazem muito bem.

Eles entraram no mercado americano há um bom tempo e Bá já estava fazendo um sucesso danado nos Estados Unidos com a série Umbrella Academy (escrita por Gerard Way, vocalista da banda My Chemical Romance). Ele deveria estar muito ocupado então otimizou o tempo com o irmão de alguma forma que o Fábio tomou a dianteira nesse projeto, pelo menos nos desenhos (que são sensivelmente diferente dos do irmão, que tem um estilo muito parecido com os de Mike Mignola, autor de Hellboy) e produziram a série em 10 edições de Daytripper, publicadas originalmente pela DC Comics (de Batman e Superman) pelo selo Vertigo, e que a Panini lançou encadernada. Bá faz as capas e poucas páginas internas, mas os dois dividem toda a autoria do livro.

Enfim, do que trata? Cada uma das edições que já li é uma história fechada, com um tema específico. Numa visão ampla, temos: discussão sobre família, relação com os pais, amigos, amor, infância e trabalho. Brás de Oliva Domingos, o protagonista, é filho de um grande e premiado romancista nacional e sente o peso de querer continuar o ofício do pai. Como escritor, Brás consegue lançar um romance e se torna o autor das colunas diárias sobre os mortos nos jornais, algo de que ele parece não se orgulhar muito... Daytripper é sobre todos os “e se...” que podem acontecer em nossas vidas. E se eu tivesse decidido fazer aquela viagem louca pra Salvador? E se eu tivesse falado com aquela garota linda que olhou pra mim no supermercado? E se meu melhor amigo enlouquecesse? São essas coisas que levam a história de Brás pra frente, numa falta de cronologia e continuidade absurdas que transformam esse livro em algo único. Quando lemos, sentimos aquele impulso de: “Porra! Aproveita a vida!”. Cada instante pode ser o último e você não sabe, definitivamente, quando a morte poderá te levar. Inclusive, a morte é um tema recorrente da série e está presente em praticamente todos os capítulos.

Moon e Bá fazem parte do top da renovação dos quadrinistas nacionais, dos quais estão presentes também autores como Rafael Coutinho, Rafael Albuquerque e Rafael Grampá, que fazem sucesso no exterior e que também já tem obras publicadas no Brasil. Pode procurar! Garanto!

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Visita à casa do Amaral


Foi em um sábado de julho, mais precisamente no dia 17 do ano de 2004. Eu estava desenvolvendo um trabalho de conclusão de curso para minha licenciatura em história pela UESPI e Antonio de Pádua Amaral era o que os cientistas costumam chamar de “objeto de pesquisa”.



Saí de casa logo após o almoço. Peguei o “amarelão 2” e fui até o bairro mocambinho, onde o objeto reside, numa viagem de quase 45 minutos. Era pouco mais de 13 horas quando cruzei o portão de entrada. Amaral o abriu e sua esposa, por sinal minha orientadora na pesquisa que realizava, convidou-me a sentar à mesa para almoçar junto com todos eles: meu objeto de pesquisa, sua mulher, a mãe do objeto e os pequenos objetos, suas filhas. Educadamente, recusei.




Sentei-me à sala e fiquei assistindo Video Show enquanto esperava. Depois de uns 15 minutos e de um breve almoço, Amaral sentou-se ao chão e, a princípio, não trocamos palavras. A certa altura, todas já haviam terminado. Quando o programa que assistíamos tornou-se insuportavelmente besta, Amaral tomou iniciativa e convidou-me a subir até o pequeno quarto onde trabalha.


Só então pude perceber que sua casa era bastante aconchegante, harmoniosa em cores e na ocupação dos espaços, se é que toda minha formação em arquitetura e decoração, que se resume a nada, pode dizer. Seus desenhos e pinturas emolduradas ilustravam as pareces. A cozinha era um corredor longo e até espaçoso que dava acesso às portas dos fundos, defronte à escada que leva ao quartinho onde produz sua arte. Mas antes de subirmos ele me levou até uma área, ao lado da escada, que estava cheia de armários e papéis com gerações e gerações de ácaros onde estavam alguns quadrinhos e desenhos originais. Ele pegou uma ou outra raridade e disse pra subirmos.



No quartinho, ele perguntou o que eu gostaria de escutar. Pelo chão havia duas pilhas de LPs com discos do Raul Seixas, Beatles, Jimmy Hendrix e outros. Escolhi um do Jethro Trull, que não conhecia na época, mas que me chamou atenção. “Boa escolha”, pensei. “Toma! Lê isso aqui enquanto dou uma cagada”, ele disse, me entregando os quadrinhos que havia pego no armário embaixo da escada. Foi a primeira vez que vi e toquei nos encadernados de Flash Gordon e Príncipe Valente da mítica editora Ebal, dois dos maiores clássicos da história dos quadrinhos, no mundo. Enquanto deleitava-me folheando aquilo, ouvia uma ótima música e não queria imaginar a situação da porcelana no banheiro onde meu objeto produzia.



Amaral voltou e começamos a conversar sobre algumas publicações que haviam por ali, como a revista Front ou Ragú. Falamos de quando ele recebeu, em 2000, o troféu HQ Mix de melhor revista independente com Hipocampo, enquanto ele juntava umas pastas e álbuns com recortes de jornais e desenhos seus. Disse-me que naquela ocasião, os melhores do ano no mundo dos quadrinhos, nomes como Neil Gaiman, Ivo Milazzo e Angeli, passavam bem na sua frente, de um lado para o outro, e ele, completamente matuto, vindo do interior do Piauí, de Campo Maior, segurava algumas Hipocampo debaixo do braço, estupefado pelo desfile de celebridades, sem coragem de aproximar-se nem ao menos para apresentar-lhe o universo caótico da Rã e da Salamandra.

Ele me mostrou alguns recortes de jornais sobre o Hipocampo, mas eu queria mais, queria material anterior ao Hipocampo, e encontrei. Desenhos do final da década de 70, super-realistas, outros de um realismo fantástico e cheios de detalhes, bem diferente do que já conhecia do Amaral. Anterior a isso, havia o jornal mimeografado O Osso, do qual participou.


Ele me mostrou fragmentos de sua vida que resultaram em uma família. Estávamos todos lá: pai, mãe, avó, filhas, neta, empregada, recortes de jornal, fotografias, desenhos e pinturas. Eram mais que os objetos que me levariam a escrever isto. Era mais que uma experiência de um sábado de julho.

Juntei aquele material todo que o Amaral havia produzido e, olhando desenhos com intervalos de 20 anos, perguntei o que havia transformado tanto sua arte plástica. “Foi a poesia”. Era óbvio! A transfiguração, a transcendência, o sentir antes de tocar, a essência única e universal, características tão marcantes da poesia, estavam em seus novos quadrinhos e telas. Mas Amaral adverte que seria uma heresia confundir seus textos com poesias modernas. Não se acha um poeta, nem que poderia ser. É o que é, o que pode ser, um “senhor” artista plástico que também faz quadrinhos e com várias outras pretensões artísticas.

Coloquei tudo o que ele havia me emprestado para estudar em minha mochila e falamos sobre amores, trabalho, melancia e Hipocampo. Disse-me que o “bruxo da caixa de sabonete” era um amigo que fazia um pedal para distorcer o som da sua guitarra com uma saboneteira, que o Hipocampo é autobiográfico, que não bebe água porque não tem gosto de nada, que ser desenhista não impressiona nenhuma mulher, que o jeito é aprender a tocar algum instrumento musical.

Depois de posar para algumas fotografias, ele me convidou para presenciar a nova fase do Hipocampo: ele ligou sua guitarra. Se você já tiver lido algum dos quadrinhos do Amaral, sabe que sua linguagem é impressionante. Amaral fazia uma melodia de textos retirado do universo Hipocampo. Era um rythim n’ blues do cacete! Amaral é, definitivamente, um grandessíssimo artista, fazendo telas, quadrinhos, esculturas, estampas, designer e, agora um músico quase completo. Segundo ele, Deus sabe o que faz: se tivesse lhe dado um voz poderosa teria sido um cantor, estaria lutando outra batalha, não muito diferente, mas outra batalha pra gravar seus discos e, provavelmente, nunca teria feito uma HQ do Hipocampo. Fecha-se uma porta, abre-se outra.


Depois de passar toda a tarde naquela casa, a noite havia chegado. Minha bolsa e minha memória estavam cheias de material que viria formar o quarto capítulo de minha monografia, mas antes de ir embora, meu objeto de pesquisa convidou-me a tomar uma xícara de café, que aceitei prontamente.

Inscrições para a 12ª Feira HQ



O maior evento de quadrinhos e cultura pop do Piauí está com as inscrições prorrogadas para garantir a partição de todos. Até o dia 22 de junho, desenhistas, roteiristas e todos os demais praticantes das categorias do edital da 12ª Feira HQ podem enviar seus trabalhos e disputar as premiadas colocações. O regulamento e a ficha de inscrição continuam disponíveis no site do Núcleo de Quadrinhos do Piauí.
4º Seminário de Quadrinhos abre chamada para trabalhos

Professores, estudantes e pesquisadores acadêmicos estão convidados a participarem do 4º Seminário de Quadrinhos do Piauí, que acontece dentro da 12ª Feira HQ, nos dias 26, 27, 28 e 29 de julho no Complexo Cultural Clube dos Diários em Teresina. A proposta do evento é discutir as Histórias em Quadrinhos do ponto de vista universitário, através da pesquisa e da produção científica. O edital está disponível no site do Núcleo de Quadrinhos do Piauí e traz todas as informações para quem pretende participar como ouvinte ou como autor de artigo científico. A programação inclui exposições dos trabalhos produzidos, palestras e oficinas, com direito a certificado. Os convidados e as temáticas a serem debatidas serão anunciadas em breve.

Vejam o site www.nucleodequadrinhos.org

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Histórias Cruzadas





Por Bernardo Aurélio 

O filme Histórias Cruzadas (The Help) conta a história das empregadas domésticas negras norte americanas durante a primeira metade da década de 1960. Escrito e dirigido por Tate Taylor, baseado na novela de Kathryn Stockett, o filme se passa na cidade de Jackson, Mississipi, região sulista dos Estados Unidos, historicamente reconhecida por defender a política escravocrata durante a guerra de secessão no século XIX. Mesmo tendo perdido a guerra, a herança da segregação racial continuou forte nos EUA até o momento quando se passa a história do filme, onde os negros deveriam ter livros, escolas, hospitais e até banheiros diferenciados e não compartilhados com os brancos.

A história é contada sob dois pontos de vistas: a de Eugenia Pheelen, conhecida como Skeeter, uma jovem mulher branca, de 23 anos, que sonha em ser escritora e que foi criada desde bebê por uma empregada negra, chamada Constantine, por quem nutria grande afeto. Skeeter decide escrever um livro de entrevistas onde essas mulheres negras contariam suas experiências nas casas dos brancos ao perceber-se inserida num grupo social onde todas suas “amigas” foram criadas por mulheres negras, mas que, quando cresciam, discriminavam-nas, considerando-as inferiores e possuidoras de doenças diferentes das pessoas brancas. O outro ponto de vista é o da empregada Aibileen, que trabalha na casa de uma amiga de Skeeter e que se torna a primeira mulher disposta a lhe dar entrevistas, narrando todas as situações horríveis pelas quais tem que passar cotidianamente.

Fazer um livro de entrevistas com essas empregadas domésticas era um trabalho muito difícil por que havia medo muito grande por parte dessas mulheres que teriam de contar suas histórias. O Estado do Mississipi proibia qualquer tipo de manifesto, livro ou panfleto que pregasse igualdade racial ou mesmo defesa dos direitos dessas pessoas, de forma que esse livro era contra a lei e as pessoas envolvidas na produção dele, sujeitas às mais duras agressões baseadas no preconceito oficializado e praticado ali. A parte mais difícil seria conseguir mais depoimentos para puder tornar o livro publicável. As mulheres negras só se tornam confiantes e corajosas para falar abertamente suas histórias devido à morte de Medgar Wiley Evers, conhecido ativista negro, por homens da KKK, e por causa da injusta prisão de uma de suas colegas, Yule Mae, acusada de roubo na casa de Hilly, umas das “amigas” de Skeeter.

O livro escrito por Skeeter, narra as histórias dessas mulheres negras e o filme conta a história da produção desse livro, e vai além, mostrando a reação das pessoas envolvidas diretamente nas histórias ali narradas depois que a publicação é distribuída para venda.

A produção do livro nesse filme tem uma ligação muito forte com o ofício do pesquisador ligado à história oral e sua relação com a memória. Primeiro de tudo, precisamos nos firmar na certeza de que a lembrança não é necessariamente uma verdade, como nos adverte Beatriz Sarlo. Então, Skeeter nos apresenta narrativas individuais de pessoas que estão sujeitas a uma memória seletiva que pressupõe também o esquecimento de muitos fatos. As narrativas individuais das empregadas nos apresentam uma história, uma versão. Maurice Holbwachs nos fala dessas que mesmo essas memórias individuais sendo autobiográficas, os grupos sociais, como o das empregadas negras apresentados nesse filme, determinam o que deve ser lembrado, o que é memorável, ou não.

O livro também nos remete à história do cotidiano, trabalhado por Certeau. As empregadas negras são protagonistas sociais de sua própria cultura inseridas nas casas brancas. O hábito alimentar dos negros e a educação que eles dão aos filhos dos brancos diariamente.

No filme, a verdade está no dia a dia da cozinha. Lá, as empregadas são confidentes entre si e falam sobre como odeiam suas patroas e como fazem escondidas o que é proibido fazer nas casas delas, como quando Minny Jackson, que é proibida de usar o banheiro da patroa, diz para a amiga Aibileen que leva papel higiênico de sua própria casa para que a patroa Hilly não perceba que tem uma negra usando seu banheiro. Na cozinha, elas falam de uma história subterrânea, que não deve surgir à tona. Minny ironiza: “Sou surda e muda”. Aibileen responde: “Faz como eu faço?”. Skeeter pretende levar essas histórias da cozinha para todo seu público leitor.

Em determinado momento, Aibileen pergunta: “Srta. Skeeter, e se não gostar do que eu tenho a dizer?” Skeeter responde: “Isso não se trata de mim. Não importa como eu me sinto.” Só então Aibileen fica mais à vontade e começam a conversa. O local é em sua própria casa e Skeeter faz tudo que Aibileen exige para poder dar a entrevista: estacionar o seu carro bem distante de sua casa, pegar um taxi e ainda descer a duas quadras da casa de Aibileen e alterar todos os nomes dos envolvidos. Era uma história subterrânea, oculta e, por seguro de vida, deveria permanecer assim. O historiador que trabalha com objetos de pesquisa como Aibileen, precisa se submeter às suas vontades para deixá-lo o mais à vontade possível, para que a narrativa discorra da forma mais natural possível.

Quando Skeeter pergunta “como se sente criando crianças brancas, quando seus próprios filhos estão em casa sendo cuidados por outras pessoas?”, Aibileen muda a expressão, fica pensativa e olha para a foto de seu filho na parede. Skeeter, como entrevistadora, fica atenta a essas reações e pergunta sobre a foto. Aibileen pede pela próxima pergunta. Skeeter faz várias perguntas que pareciam não funcionar. Aibileen não estava em sintonia com elas. Não era exatamente sobre aquilo, ou daquela forma, que ela queria falar, então propõe dizer, de outra maneira, o que está sentindo: Aibileen pede pra ler as memórias que havia escrito sobre tudo aquilo. Skeeter aceita prontamente. O entrevistador deve se adaptar a essas formas nas quais o entrevistado se sente mais à vontade em sua fala. Aibileen começa a ler e a entrevista segue, pela primeira vez, agradavelmente.

Havia um banco, no quintal da casa de Skeeter, que funcionava como um apoio para a memória, um lugar que levava a protagonista a uma visita ao passado: um flashback. Esses lugares de memória são matérias, funcionais e simbólicos. Em dois momentos do filme, Skeeter usa lugares como esse para se lembrar de Constantine, sua empregada. Uma vez no banco, onde Constantine surge aconselhando uma Skeeter adolescente, numa cena que carrega aquele espaço de sentimento. Outra cena é na varanda da casa de Constantine, onde vemos a empregada fazer tranças na protagonista, ainda criança.