terça-feira, 15 de maio de 2018

Conheça Face Oculta




Problemas Editoriais no Brasil

Face Oculta é um daqueles títulos que você oferece para o leitor, insistindo: “Leia isso, por favor!”, mas como sou o dono da livraria, ele pensa logo que só quero vender um troço estranho que está encalhado na prateleira. Até entendo, por que acompanhei um pouco os problemas da série no Brasil. Inicialmente, ela foi lançada em novembro de 2012 e deveria seguir o padrão original italiano, uma maxi-série em 14 volumes, mas morreu na segunda edição, deixando os compradores frustrados com dois gibis que provavelmente nunca teriam continuação.

Mas a esperança não é necessariamente gratificante, pode ser torpe, e iludiu uma segunda vez aqueles fãs do fumetti. Em setembro de 2016, a Panini lança novamente o título, desta vez encadernando as 4 primeiras edições em um volume. A gente faz a matemática e deduzimos que essa nova série deverá ter apenas 4 volumes, juntando todas as 14 edições originais. O problema é que a edição custava R$39,9 e vinha de um histórico com terrível falha de continuidade. Os eventuais fãs do escritor Gianfranco Manfredi, que conheciam seu trabalho no excelente Mágico Vento (série que a Mythos publicou na íntegra em 151 edições e que hoje reimprime em edições especiais coloridas e em capa dura), poderiam evitar a nova edição por pura falta de expectativas, já que já fora frustrado uma vez. Já o público mais amplo, facilmente teria descoberto a história que este título poderia continuar minguando em sua mais tenra idade. Acredito que foi isso que aconteceu.


As poucas Face Ocultas que solicitei em minha livraria, eram recusados até pelo mais bonelliano dos meus clientes, que dirá leitores de X-Men ou One Piece. Encalhou. Mas a gente não quer desistir de um bom gibi e, depois de quase dois anos (agora, em maio de 2018), a Panini anuncia o volume dois, talvez muito por causa do sucesso que foi a retomada de títulos italianos através de iniciativas independentes, como a da Lorentz, com Dylan Dog e Editora 85, com Dampyr. Pelo sim ou pelo não, o que importa é que agora é hora de festejar e tirar a poeira da cara, ou da face, com o perdão do trocadilho.



Mas nem tudo são rosas, o volume dois de Face Oculta custará a bagatela de R$51,9, um ponto muito difícil para barganhar com os leitores. Tudo bem que teremos, nesse encadernado, cinco edições da série original, quase 100 páginas a mais que o volume anterior, totalizando 480 páginas, e, por mais que seja injusto comparar títulos e preços, o que importa é a realidade do bolso do leitor, e pagar R$51,9 por um gibi, 16x21cm, preto e branco, de um personagem completamente desconhecido, é investir demasiada e cegamente no público de nicho que, por estar desde 2012 esperando, duplamente frustrado, pode se negar a comprar, sem contar que existem edições do gênero muito mais em conta, do próprio Tex, com cerca 320 páginas pela metade do preço. Isso sem mencionar gibis como Lobo Solitário, com mais de 300 páginas por apenas de R$18,9.

Quem é o autor?
Escrever esse texto foi uma grande surpresa, pois descobri que Gianfranco Manfredi, além de ser o escritor de Mágico Vento, é um artista múltiplo, autor de mais de trezentas canções, vários roteiros de cinema e televisão, ensaios e críticas sobre música, entre outras coisas, como sua graduação em História da Filosofia, formação que o permitiu inclusive lecionar na área em institutos de educação italianos.



Manfredi nasceu em 1948 e até meados da década de 1980 produziu música intensamente. Quer dizer, ele não é um aventureiro na área que cria canções pontuais para se divertir. É autor e/ou cantor em, pelo menos, 11 discos (entre álbuns e singles) desde 1972, sendo que seu último, data de 2003. Sua carreira na música dividia-se entre o compor e cantar, mas escrever músicas acabou tornando-se o foco principal, local mais agradável e que lhe dava mais espaço criativo dentro dos seus limites. A escrita, afinal, sempre é mais libertadora, pois os limites são imaginários, talvez esse tenha sido o verdadeiro motivo que o levou a afastar-se do mundo da música e imergir nos vários universos das letras.





A partir da segunda metade dos anos 80, começa a dedicar-se à carreira de escritor, roteirizando 9 filmes e vários programas de TV, mas não ficava apenas atrás das câmeras, pois foi ator em outras 9 películas.



 Em uma entrevista para o site texwillerblog.com (que tive a pachorra de traduzir usando o google e adaptar livremente), Manfredi comenta sobre porque parou de fazer filmes: “Alguns filmes produzidos na Itália não me interessam. Há ótimos filmes, pelo amor de Deus, mas o esforço para completar um de algum valor expressivo, hoje na Itália, é realmente inviável. Estou acostumada a trabalhar duro, mas não estou disposto a trabalhar como uma mula para coisas que terminam não realizadas, ou que são malfeitas, ou concluídas apenas cinco anos depois de alguém pensar nelas, ou que não encontram espaço nos cinemas porque a distribuição está nas mãos dos americanos”. Manfredi também comente que o cinema italiano é muito voltado para a aventura e humor, gêneros que não lhe apetece, preferindo muito mais o horror ou o romance (o que tentou fazer em Face Oculta, do qual trataremos mais à frente):

“Escolhi a escrita, que me deixou criativamente mais livre. Meu amor pela escrita, no entanto, foi maior do que para a música, que também me deu grande satisfação, assim eu aproveitei a boa reputação e estima que tinha ganhado como um cantor/compositor para me apresentar no cinema como roteirista, principalmente, mas também como ator e, às vezes, como compositor de música cinematográfica. Mais tarde, bastante decepcionado com o fato de que na Itália na época foram produzidos quase exclusivamente comédias, enquanto eu preferia um cinema mais radical em suas escolhas (do western ao horror), decidi abordar a escrita de uma maneira mais ampla e completa e assim cheguei à narrativa escrita, com uma série de romances que exploram, digamos assim, os limites do gênero (do gótico ao romance histórico)”.




Produziu 15 romances, além de um tanto assim de ensaios e críticas de música. Sua estreia no campo dos quadrinhos ocorreu com a criação de "Gordon Link", um caçador de fantasmas não convencional, em 1991. A partir de 1994, Manfredi começa a colaborar com a Sergio Bonelli Editore, escrevendo inúmeros roteiros para Dylan Dog e Nick Raider. Em 1997, foi a vez de criar seu projeto mais duradouro, o western Mágico Vento, que mistura elementos de terror e magia (e que futuramente iremos resenhar). Em 2005, fez sua estreia como roteirista de Tex, escrevendo a história "La pista degli agguati", um gibizão de história fechada com 290 páginas, publicada no Maxi Tex daquele ano. 



Só em 2007 começou o Face Oculta, um romance em quadrinhos, fechado em 14 volumes. E agora uma informação que pode deixar todos nós com uma pulga enooooorme atrás da orelha: Face Oculta tem uma sequência! Mas calma! Ao que tudo indica, a série original é conclusiva, o que temos nessa nova história intitulada Shanghai Devil é outra maxi-série em dezoito edições, utilizando o mesmo protagonista Ugo Pastores, mas que não precisa ser lida para uma plena satisfação com a série anterior. Manfredi parece escrever como nos moldes das antigas aventuras seriadas, onde o protagonista aventura-se em cenários diferentes a cada vez, saindo da África, em Face Oculta, para a China nesta segunda. 



Em outubro de 2014 começou sua mais recente obra nos quadrinhos, chamada Adam Wild, uma série de aventura que volta para um cenário relativamente parecido com o Face Oculta, a África oitocentista.




Manfredi, nessa montanha russa criativa que é sua vida, reúne algumas das principais características que formam um bom escritor: experiência e vontade de narrar. Definitivamente, não é um emergente na área.

Mas do que trata mesmo o gibi?
“Gostaria de escrever histórias de amor. Nunca fiz isso, mas o experimento me atrai. Tentei fazer um pouco no Face Oculta, e talvez, no futuro, faça isso em um romance. Difícil de percorrer todo esse caminho em uma história em quadrinhos, porque nem a Bonelli nem outras editoras na Itália parecem estar interessadas em nada além de quadrinhos de aventura ou humor. Eu não escreveria sobre bolos de carne sentimental. Acredito que o amor pode ser contado de outra maneira, mas... Para escrever coisas diferentes, você deve primeiro ler coisas diferentes, ampliar o alcance de seus interesses”



Tentarei responder a essa pergunta do tópico, citando esse trecho do autor Gianfranco Manfredi para deixar bem claro que Face Oculta não é exatamente o que aparenta. Quando você vê a capa, um homem de terno com um revólver na mão, um exército formado por tribos africanas e um rosto, ao fundo, coberto por uma misteriosa máscara prateada, tudo parece nos levar para uma exótica aventura, mas isso é apenas o que sugere as primeiras 100 páginas desse encadernado.

Sem querer estragar o prazer de sua leitura e procurando apenas preparar o terreno para o leitor desavisado, Face Oculta conta a história de Ugo Pastore e seu pai, Enea. Ambos são representantes de uma sociedade comercial italiana que faz transações econômicas e diplomáticas entre a metrópole e suas colônias. Chato? Poderia ser se o cenário inicial não fosse realmente a exótica África dos 1890. Então, sim! É um gibi sobre intrigas políticas e comerciais, que deve ser lido com atenção, porque a Etiópia, dividida em várias tribos que lutavam entre si, foi forçada a aceitar o reinado de um soberano que subiu ao trono por interesse da própria metrópole italiana, afinal, negociar com um único rei é mais fácil do que com várias tribos de opiniões diversas. Neste cenário, surge a figura enigmática e mitológica do Face Oculta, personagem que consegue reunir homens de tendências diversas contra a tirania do rei e contra exército italiano.

Tudo indica que a história seguiria facilmente por aí, mostrando o preparo e a execução de uma guerra sangrenta. Mas as coisas não são tão simples e, baseado em fatos reais, Manfredi sabe que não pode resolver as coisas facilmente. Na segunda parte deste volume 1 (dividido em 4), temos um salto temporal de 5 anos, e vemos Ugo morando em Roma, distante desses problemas da colônia. E é fantástico lê um gibi italiano passando-se em terra natal, pois somos tão acostumados a ler aventuras da Bonelli em outros países da Europa ou na América que ficamos encantados com os detalhes das ruelas escuras de Roma e suas fachadas em ruínas.



Mas, como estava dizendo, a história parece mudar drasticamente nessas edições 2, 3 e 4 que compõe o volume, deixando Face Oculta em segundo ou terceiro plano e focando no que parece ser uma calma e delicada montagem de um cenário maior. Somos apresentados a novos personagens e outras tramas, envolvendo dramas familiares e ocultação de cadáveres e, ao final deste primeiro volume, voltamos para a África, sob novas perspectivas.

Nos editoriais da revista, o autor nos informa de algumas influências que teve, como as óperas dramáticas e a construção de personagens femininos, vivendo em um mundo extremamente machista, então somos apresentados à personagem Matilde, de uma personalidade profunda que nenhuma pequena resenha deveria ousar explicar, mas que representa, de certa forma, o tipo de personagem romântico da época, apaixonada e doente, frágil, mas, ao mesmo tempo, capaz de nos surpreender, fugindo do padrão moldado muito mais pela opressão externa do que por qualquer outra coisa. Também conhecemos Vittorio, um oficial da cavalaria, metido a Don Juan, aventuresco, violento, justo e insensível (se é que é possível). Enfim, não são personagens fáceis de lidar.

Apesar do sensível distanciamento da narrativa sobre o personagem Face Oculta, tudo parece ser conduzido de volta para lá, e é o que vemos acontecer já na quarta história desse primeiro volume, pois mesmo lá na Itália, enquanto nossos três protagonistas enrolam-se em suas próprias confusões, descortina-se no fundo do palco o problema constante que envolve a guerra travada entre a Itália e a Etiópia e, com certeza, nos próximos volumes (que oramos para a Panini publique com uma velocidade superior a uma bienal) teremos muitas aventuras sob um sol escaldante e de paisagens de areia arrastadas pelo vento.

Quase esqueci de falar do desenho! A primeira edição é feita por Goran Parlov, já conhecido tanto pelos bonellianos quanto pelos marvetes, quando desenhou o Justiceiro para a “Casa das Ideias”. Parlov é, de longe, o melhor desenhista na edição. É importante explicar que, na Itália, para manter uma série mensal com 100 páginas de quadrinhos, é muito comum o rodízio de desenhistas. Pela qualidade das pranchetas, é completamente inviável que o mesmo artista assuma um título sozinho, já que ilustrar essa quantidade de quadrinhos pode demorar, facilmente, de 3 a 4 meses. Por isso, temos 4 desenhistas neste primeiro volume, um para cada edição. Rotundo faz a segunda e segue uma linha parecida com a de Parlov, de traços angulares e estilizados, de altos e cristalinos contrastes em preto e branco. A terceira edição, de Nespolino, tem um traço mais próximo do que gosto de chamar de um padrão bonelliano de qualidade, mais tradicional, mais quadradinho em sua narrativa e estilo de desenho. O autor da quarta edição deste primeiro encadernado, é Burak, com certeza o que causa mais desconforto em qualquer leitor desavisado. Com uma rachura, por vezes, grosseira, tem o traço mais distante do que um leitor mais mainstream está acostumado, mas também de uma riqueza incrível.

Para não me alongar mais, a gente só espera que a torpe esperança não nos iluda uma terceira vez! Vida longa a Manfredi, Face Oculta e que venha logo Shangai Devil.

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