(Este texto foi publicado, originalmente, na revista Acrobata, em 2015)
Quero
falar sobre a produção de histórias em quadrinhos (HQs) no Piauí, sob a
perspectiva de um cenário cultural. Quer dizer, isso existe por aqui? Evidente
que há desenhistas, escritores, quadrinistas, por assim dizer. Existem também
eventos, desde alguns focados mais nos animês e mangás, que acontecem quase
todos os meses em Teresina, e em algumas cidades do interior, em Piripiri e
Parnaíba, por exemplo, como também a Feira HQ, evento “anual” desde 1999 e que
teve sua 13ª edição em 2013.
Talvez
eu não seja a pessoa mais indicada para escrever isso, já que estou intimamente
próximo do tema, entretanto, me considero intimado. Meu objetivo não é fazer um
recorte ou um panorama totalizante. Afinal, é como uma lista cheia de
subjetividades. Alguns nomes estão incluídos, outros esquecidos ou,
simplesmente, não foram citados.
Pra
começo de conversa, entendo que pensar em “cenário” envolve uma série de
elementos interligados, e um deles é a sensação de pertencimento, de entender
que esse cenário é como um grande grupo do qual fazemos parte. Acredito também
que sentimentos como esse são estimulados, entre outras coisas, pela construção
de uma história em comum. Se entendermos as pinturas rupestres como HQs, então
temos uma longa pesquisa pra fazer, já que o Piauí possui alguns dos maiores
sítios arqueológicos com esse tipo de inscrição no mundo. Se considerarmos que
os quadrinhos modernos nasceram junto com o desenvolvimento da imprensa, com as
charges no século XIX, falta-nos também uma pesquisa apurada sobre quem eram os
ilustradores dos primeiros periódicos jornalísticos do Piauí. Houveram ilustradores
no século XIX ou início do século XX? Eles fizeram quadrinhos? Isso ainda é uma
incógnita pra mim e desconheço pesquisas desse gênero, mas certa vez fiz uma
entrevista com Albert Piauhy, reconhecido cartunista à frete do Salão de Humor
do Piauí por quase 30 anos, e ele disse-me que o “Arnaldo Albuquerque é o
primeiro chargista da história piauiense. De verdade, entendeu? Porque eu
entrei lá pra substituir o Arnaldo (...) Na verdade, o Arnaldo fez charge no
jornal O Dia, mas o primeiro chargista constante fui eu mesmo. Fui eu que
consolidei a charge no jornalismo piauiense. Só que naquela época eu era um
cara muito inquieto e o mundo era grande e eu achei de ir embora pro Rio de
Janeiro. Então eu fui chargista do Jornal O Dia várias vezes até chegar a vez
do Jota A”.
Se
estudarmos os jornais da década de 1970 pra cá encontraremos facilmente os
nomes citados acima: Albert, Arnaldo, Jota A e outros, como Dodó Macedo, e,
mais recentemente, Moisés ou Izânio. Eles ilustraram nossos jornais.
Eventualmente, a piadinha do cartum vinha em arte sequencial: em quadrinhos.
Alguma coisa se originou com essa geração, afinal entendemos Arnaldo
Albuquerque como o autor da primeira revista em quadrinhos do Piauí, a Humor
Sangrento, impressa em 1977.
Mas
enfim, esses caras que ilustraram os impressos incentivaram a criação de um
cenário no Piauí? Vou citar o Albert novamente, ele costuma dizer que por aqui
uma geração não cria outra. Não parece existir essa linha contínua (que não
precisa ser entendida como linear ou progressista) traçada por sobre essas
gerações, interligando-as. Não generalizaria o pensamento do Albert para todas
as artes, mas acho que os artistas plásticos no Piauí sofrem sim deste
problema: Qual? O de uma geração não alicerçar-se em outra, ou desconstruir a
anterior intencionalmente, possibilitando um mínimo que seja de entendimento de
plano, de chão, de perspectiva, se é que me faço entender... É quase crônico! E os quadrinistas não são
alheios a isso. Para exemplificar melhor, vamos pensar a questão do humor
gráfico. Imaginem que o Piauí possui 30 anos de experiência de um Salão de
Humor bem sucedido (apesar das afirmações e evidências em contrário) e qual é a
escola de humor que se criou no Piauí? Os cartunistas piauienses que estão nos
jornais são os mesmos há quase 3 décadas. Qual a promessa do humor gráfico no
Piauí? Quem substituiria Jota A, Moises ou Dino Alves (que ainda terão muitos
anos de trabalho, queira Deus!) e que já tem, pelo menos 5 anos de experiência
no mercado?
Agora
entenda que, à exceção do salão de artes plásticas organizado pela fundação
municipal de cultura de Teresina, e do próprio Salão de Humor do Piauí, não
temos nenhum outro evento significativo envolvendo artes plásticas no estado.
Talvez a Feira HQ, que teve 13 edições, mas a modéstia e o bom senso me impedem
de citar. Só para reforçar essa ideia, fiz uma entrevista com Sônia Terra, que
foi presidente da Fundação Cultural do Piauí por oito anos (de 2003 a 2010) e
lhe perguntei sobre essa ausência de ações no âmbito das políticas culturais
para as artes plásticas e ela disse que “se você for olhar, nós não temos
sequer no Piauí um equipamento cultural digno pra receber grandes exposições:
nós não temos uma galeria de artes plásticas. Pra quê mais grave do que isso?
Hoje a galeria do Clube dos Diários é mínima e insuficiente. A gente não recebe
aqui grandes exposições porque nós não temos espaço. Estou falando
institucionalmente, governamentalmente. Isso significa que nós temos um déficit
enorme com esse segmento, assim como teve com outros segmentos. E isso é um
desafio. Nós passamos oito anos e não conseguimos, fizemos questões pontuais
que não representam a demanda que está aí reprimida, nem o mínimo a gente
conseguiu realmente atender. É fato. E não digo isso com alegria não, digo com
muita tristeza”. Preciso dizer que, durante minha entrevista, Sônia Terra
colocou, reiteradamente, que a ausência de políticas públicas mais eficientes
para as artes plásticas é também reflexo de uma classe mal organizada,
articulada ou participativa e citou o Salão do Livro do Piauí como um sucesso
exatamente por se apresentar de forma oposta à maneira como a classe dos
artistas plásticos se apresentam diante do poder público.
Para
além disso, o que quero dizer é que somos carentes de espaços: o estado não
realiza um salão de artes plásticas, não temos uma galeria e não temos uma
escola pública para artes plásticas (a não ser que você queira cursar arte
educação!). Isso, de certa forma, nos torna órfãos de muita coisa. É claro que,
eventualmente, você descobre a obra de um Afrânio Pessoa ou Jô Oliveira e
percebe que pessoas como eles fizeram gerações de artistas por aqui. Mas quem
Arnaldo Albuquerque criou? Quem o Amaral, autor do premiado quadrinho
Hipocampo, fez? Não falo de “fazer escola” ou instituir um estilo. Pergunto
como classe. Se Arnaldo Albuquerque é pioneiro, quem são os outros quadrinista
significativos que surgiram no cenário aberto por ele?
Não
podemos ignorar que existe um problema de mercado. Músicos piauienses como
Assis Bezerra eram também bons quadrinistas, mas que deixaram as pranchetas
pela guitarra. Era necessário escolher uma arte ou mesmo tentar tirar um
sustento dela. Então, o que parece existir, constantemente, são desenhistas
insistentes que realizam seus quadrinhos no intervalo que o cotidiano lhes permite.
Inclua nessa conta os inúmeros alunos dos cursos de Arte da UFPI, ou mesmo
técnicos do IFPI, que queriam ser quadrinista e saem de lá professor de
“educação artística” nos fundamentais do ensino público.
Para
realizar este texto, fiz um roteiro de seis perguntas e enviei para 6
desenhistas que considero importantes na atual produção de quadrinhos local. Disse
que estava escrevendo um artigo sobre o cenário de quadrinhos no Piauí, do qual
eles devem fazer parte. Todos visualizaram as perguntas, cinco confirmaram que
iriam enviar, um ignorou o aviso não comentando nada e apenas 2 enviaram as
respostas dentro do prazo que pedi (8 dias). Não escrevo isso com tom de
denúncia contra nenhum deles. Só achei um dado significativo para a discussão
que estou fazendo. Afinal, os seis tinham consciência que eu os havia
selecionado, mas será que eles se percebem como um grupo independentemente de
suas ligações interpessoais? Eles poderiam se perceber como um recorte
significativo de um cenário? E será que se importam com isso?
Os
dois artistas que responderam foram Thiago Melo e Joniel Santos, ambos
quadrinistas premiados na Feira HQ. Joniel, inclusive, já tem algumas coisas
publicadas por aí. A primeira pergunta que fiz foi: “Existe um cenário de
quadrinhos no Piauí? Existem referências de autores ou trabalhos locais?”
Joniel disse: “Creio que existe gente querendo fazer quadrinhos e alguns
fazendo. Espero que assim possa existir um cenário propriamente dito como em
outros estados. E quanto a referências, sim, temos referências de autores
locais que estão conseguindo visibilidade nacional e internacional.” Thiago
Melo citou exemplos: “Sim, mas é muito tímido - infelizmente. Algumas
referências locais podem ser destacadas, como os trabalhos do Leno Carvalho, do
Caio Oliveira e do Bernardo Aurélio que, em cenário local, talvez sejam os
artistas de maior destaque nessa área”. Os dois não são muito otimistas com
relação ao “cenário” local, apesar de existir algumas pessoas que começam a
aparecer como referências nacionais, ou mesmo internacionais.
Da
minha parte, quais os quadrinistas profissionais que considero por aqui? Sendo
otimista, citaria três: Leno Carvalho, Caio Oliveira e Will Walber Jr. Esses
autores, de estilos completamente diferentes, treinados nas escolas de suas próprias
subjetividades, moldados por suas leituras, vendem seu trabalho para o mercado
nacional e internacional. Existem vários outros que fazem quadrinhos, claro,
mas autores como esses três poderiam ser considerados referência para quaisquer
quadrinista de primeira viagem que queiram tentar a sorte nesse mundo de artes
sequenciais, entretanto, não são! Isso porque falta maior conhecimento sobre a
obra desses artistas que conseguem algum destaque no cenário local ou nacional.
Parte dessa falta é culpa pessoal de cada um, entretanto existe uma ausência maior
que deveria cumprir esse papel divulgador, de contar nossa história e
apresentar os exemplos, acima disso, de lhes representar. O Núcleo de Quadrinhos
do Piauí (NQ) foi criado para isso, entretanto, eu seria ingênuo se acreditasse
que o NQ cumpre com seus objetivos.
No começo do texto disse que eu não era a pessoa indicada
para escrever este texto e um dos motivos é porque sou um dos sócios fundadores
do NQ, presidente por 4 anos e conselheiro por mais 2 anos, além da minha luta
nos outros 8 anos anteriores, quando o grupo atuava antes de sua regulamentação
formal. O que posso dizer é que dos cerca de 30 sócios oficialmente registrados
em ata e dos mais de 1000 membros do grupo virtual no facebook, o NQ resume-se
a meia dúzia de pessoas, às vezes 9 ou 10 se considerarmos o que rege o
estatuto, incluindo diretoria e conselho. Deste pequeno ciclo, um ou dois são
quadrinistas. Para não me alongar em uma discussão que não é a proposta, o NQ é
uma instituição aberta, sem fins lucrativos e disposta a trabalhar com todos
que se apresentarem. Foi assim, com a ajuda de vários amigos e assistentes que
fizemos 13 edições da Feira HQ e alguns projetos de publicação de quadrinhos,
como a Revista Feira HQ nº 1, 2 e 3, reimpressão de 30 anos de Humor Sangrento,
Foices e Facões, Cabeça de Cuia, O Imortal e Por dentro do Máscara de Ferro.
Para exemplificar
melhor o papel do NQ, faço uso do que disse os artistas convidados. Para Joniel
Santos “o Núcleo e a realização da Feira durante todos esses anos foi de
importância fundamental pra o quadrinho no Piauí. A oportunidade dada aos
iniciantes, como ocorreu comigo, a visibilidade dos trabalhos que são avaliados
por profissionais e as premiações que sempre estimularam a produção no nosso
estado e em outros. Sou suspeito pra falar da Feira HQ já que devo o início da
minha carreira à exposição das minhas obras neste evento e pelos contatos que
fiz através dela”. Thiago Melo afirmou que “para os quadrinistas locais, a
Feira é um dos poucos espaços de visibilidade e troca de experiências no nosso
Estado. Acredito que se a Feira um dia acabar, leva junto boa parte disto que
se constitui como um ‘cenário local de quadrinhos’”.
Acredito que a opinião dos dois é bastante significativa,
falando por si mesmas. Talvez, um ou outro dos quatro que não responderam
minhas perguntas apresentasse opinião contrária. De fato, a Feira HQ ou o NQ
não contribuíram de forma verdadeiramente efetiva para construir um cenário ou
desenvolver um mercado de quadrinhos local, característica essa de vital
importância quando se pensa em qualquer cenário cultural em qualquer região.
Entretanto, pessimismos à parte, NQ contribuiu
para que esse cenário tivesse algum rosto, nome ou alguma história, e como já
disse, esse é um dos elementos fundamentais para construirmos uma ideia de
cenário.
Lembro-me de conversa que tive certa vez com Chagas Vale,
grande músico e ator de teatro de bonecos. Sim! Ator de teatro de bonecos. Pois
não são apenas os bonecos que encenam numa peça de mamulengo, também atua o
dono da mão escondido por trás do palco. E o que estou dizendo aqui não é
incoerente: lembro do Chagas porque ele disse para mim que os quadrinistas são
como atores de teatro de boneco: o grande público sempre nos considera uma arte
menor. Teatro de Boneco < Teatro. Quadrinhos < Artes plásticas (ou artes
visuais). Cito isso, neste momento, para que você considere que, no Piauí, onde
os grandes artistas plásticos de caras pinturas a óleo que ostentam salas e
gabinetes não possuem, sequer, uma galeria digna, fruto, eventualmente, de mal
organização e articulação de uma classe sem representatividades. Agora imagine
que os quadrinistas fazem “apenas teatro de boneco” diante das grandes obras de
arte e tente configurar o cenário de nossa expressão artística.
Obrigado.