Continuação da entrevista com Albert Piauhy, por Bernardo Aurélio
Pergunta nº 31, Bernardo Aurélio:
Como você se enxergava naquele movimento cultural da década de 70? Você se
enquadrou em algum movimento?
Albert Piauhy:
Quando eu cheguei em Teresina, era uma cidade muito fechada, muito provinciana
e Teresina nunca se abriu muito pra ninguém E a vida cultural de Teresina era a
churrascaria Avenida, na Frei Serafim. Não existia charge na imprensa local.
Não existia música nos bares como tem hoje. Não existia nada. Teresina não
tinha nada de arte. O que você tinha naquela época forte, era a Jovem Guarda,
que tinha uma penetração muito grande na sociedade. Então, haviam grupos
musicais que tocavam as músicas da Jovem Guarda: Os Metralhas, Os Brasinhas e dezenas de grupos que tocavam
em festas. Então o forte naquela época eram músicas que você tinham desses
grupos. E fora isso o que é que tinha? Não tinha um salão de artes plasticas,
não tinha museu, não tinha porra nenhuma. Então, eu cheguei numa cidade que,
artisticamente, não tinha nada. Esporadicamente tinha o lançamento de um livro
de um autor que mandava publicar seu livro, mas não tinha nada.
33BA:
Você chegou a editar o Humor Sangrento. Como foi conheceu o Arnaldo?
AP:
Fui eu e o irmão dele que editamos. Eu conheci o Arnaldo assim: o Chico Viana
era do jornal O Dia e namorava uma amiga da minha mãe. E o Chico Viana pra
puder conquistar a garota, tinha de me conquistar também. Aí eu andava de carro
com o Viana nessa cidade, nos bares, no meio jornalístico e um dia ele passou
pra pegar o Arnaldo em casa, pra fazer desenhos para o Segundo Caderno. No
jornal O Dia, pela primeira vez se fazia um caderno cultural em Teresina, aos
domingos. E o Arnaldo já era chargista e desenhava lá. Aí o Chico Viana disse
assim: “vamos ali pegar o Arnaldo”. Porra! Eu fiquei tremendo, porque eu
conhecia o Arnaldo de Luzidlândia. Porque o Herculano dirigia o jornal eu Arnaldo
fazia xilogravura lá e eu gostava das coisas que o Arnaldo fazia. Aí, de
repente, eu tava no mesmo lugar que o Arnaldo. Aí nós saímos dali e fomos pro
jornal O Dia. Aí eu conheci o Arnaldo e a partir dali eu colei no Arnaldo.
Sempre que ele tava num lugar, eu tava atrás dele. Aí o Arnaldo me levou para
as festinhas do pessoal do Gramma, nas casas tinha maconha, bebida. Era
engraçado, eu fumava meu primeiro “baseado” eu capotava assim, no meio da noite
(risos). Que ele já tinha costume de fumar e eu não, entendeu?
Aí eu
conheci o pessoal do Gramma, através do Arnaldo, e aí começou a me dar força.
Assim, o cara que não sabia desenhar, eu desenhava ruim pra porra, mas ele
tinha paciência, sabe? Aí fiquei muito amigo do Arnaldo, a partir daí. Só que
aí o Arnaldo se afastaria do jornal e começaria a desenhar quadrinhos,
definitivamente, até ele ter aquele acidente fatídico com a moto. Na verdade,
dizem que ele queria se matar. Eu acho que ele tava era doidão. E a partir
daquele acidente, o Arnaldo nunca mais foi o mesmo. Porque o Arnaldo tinha
liderança, era um cara bonito, simpático, envolvente. Quando ele chegava assim
num lugar, ele comandava. “Vamos fazer isso! Vamos fazer assim!”. Ele tinha uma
liderança tão grande, cara, impressionante! Aí depois que ele teve aquele
acidente, quando passou quase dois anos deitado numa cama se recuperando,
quando ele saiu da cama, ele não tinha mais capacidade de liderança. Ele perdeu
a liderança, porque não tinha mais vontade. E é uma coisa que envolveu também a
Lídia, que ele era apaixonado por ela e não deu mais certo. Uma série de
fatores que contribuiu pra isso.
34BA:
Como foi que surgiu a ideia e a oportunidade de fazer a revista Humor
Sangrento?
AP:
Naquela época a gente fazia um jornal chamado “Chapada”.
35BA:
Foi antes, né? Vamos começar como Chapada, então. Como surgiu a ideia, como foi
tua participação n'O Chapada do Corisco? Depois a gente volta lá pro tempo
cronológico...
AP: A
gente tinha a ideia de fazer o jornal. E naquela época todos nós eramos muito
“fodidos”. Assim, naquela época não tinha mercado de trabalho pra nós. Nós
todos éramos garotos que nos virávamos com muita dificuldade e os únicos caras
que tinham uma posição assim mais organizada era o Dodô Macedo e o Cineas
Santos. O Cineas era professor, dava muita aula, então ele tinha uma vida
organizada, entendeu? E nós, não. Aí surgiu a ideia de fazer esse jornal.
Juntou eu, Cineas, Dodó Macedo, Paulo Machado, Assai Campelo...
36BA:
Eu vi que teve participação do Torquato...
AP:
Não! Torquato não teve nada a ver com essa coisa do jornal. Ele já tinha
morrido. E o Arnaldo tava no Rio de Janeiro. O Etim, que publicou, morava no
Ceará, que era do Gramma. Aí a gente começou a fazer o jornal que quem
diagramava era eu, aliás, quando olho pro jornal hoje, porra! Mal diagramado
pra porra! Que vergonha, aquele jornal. Eu diagramava e fazia ilustrações. Ruim
pra porra, as ilustrações. Quando eu olho, é impressionante.
37BA:
Tinha uma linha editorial? Tinha uma proposta, o jornal?
AP:
Tinha não. Eram as preocupações que a gente tinha naquela época. Era época da
ditadura militar, então a gente tentava colocar no jornal aquilo que a gente
tava sentindo, mas que não tinha filosofia não, assim definida, uma linha
editorial. Era um jornal muito “ruinzinho”, eu acho. Era mal diagramado, a
tipologia... Até porque ele não tinha recursos. Era feito em máquina de
datilografar, a gente colava os textos no papel, mas ali desenhava o Arnaldo, o
Dodó, o Fernando Costa. Ali escreveu Carlos Zé Cunha, o Etim, o Cineas,
Alberone Lemos. E ele durou enquanto foi possível fazer, sabe? Ele se acabou
porque nós fizemos uma reunião como Antônio José Medeiros e o Manoel Domingos e
as pessoas que estavam envolvidas com o Chapada resolveram fazer uma livraria
chamada Corisco. Aí as pessoas que tinham dinheiro entraram como sócio e as que
não tinham dinheiro... Quem tinha dinheiro era o Cineas, Antônio José Medeiros,
Manoel Domingos e outras pessoas. Aí quando eles começaram a fazer a livraria,
deixaram de fazer o jornal, viraram capitalista. Depois, o Antônio José sai da
Corisco e o Cineas chama o cara do grupo de ensino “Andreas”.
38BA:
O Antônio José Medeiros participava como do jornal?
AP: O
Antônio José Medeiros morava no Canadá, ele foi estudar lá um tempo, se
auto-exilou. Quando ele voltou pro Piauí, ainda hoje me lembro, teve uma
reunião na casa do Santana e Silva, que era um cara que fazia teatro, pra
reapresentar o Antonio José pra sociedade. Ainda hoje me lembro que o Antonio
José fez um discurso na casa do Santana, onde ele dizia que tinha de fazer a
revolução burguesa no Piauí, que no Piauí não adiantava! Tinha que ser feito a
revolução burguesa antes de fazer a revolução de qualquer tipo. Só que ele tava
certo, naquela época. Não sei se ele admite isso hoje. E ele se entrosou com a gente
e começou a escrever artigo no Chapada, mas aí eles decidiram rever o jornal e
nessa discussão eles decidiram abrir a livraria e não fizeram mais o jornal.
39BA:
Era um jornal de “esquerda”, o Chapada?
AP:
Rapaz, o Chapada não era porra nenhuma. Ele nunca atingiu ninguém, o público
que ele atingia era mínimo. Ele nunca arranhou nada, não contribuiu com nada.
Mil exemplares! O que eram mil exemplares para um jornal? Colocava na banca e
ninguém comprava. A gente dava pras pessoas. Eu acho que ele não teve
importância nenhuma dentro da cultura piauiense, sabe? A não ser o fato de que
nós nos esforçamos em fazer.
40BA:
Vocês tiveram algum problema com a polícia, durante a ditadura?
AP:
Eu, quando fazia o jornal O Dia, fui chamado algumas vezes na polícia federal,
por causa das charges que eu fazia. E uma vez eu tava em Luzilândia e eu fui
chamado pra depor, porque alguém tinha visto eu falar uma coisa que era contra
o sistema. E a gente recebia muita advertência, no jornal. Eu cheguei a ser
preso. Eu, o Antonio José Medeiros, Jorge Riso, que é baiano, nós fomos presos
pela ditadura.
41BA:
Como foi essa história? Pode contar?
AP:
Pode, cara! A gente conta qualquer hora. A gente tava sobre a ditadura e o
Antonio José tinha vindo do Canadá, ele tinha se casado com a Rita, “Ritinha”,
Cavalcante. E a casa do Antonio José começou a ser um local de discussão de
política, entendeu? Eu era de dentro da casa do Antonio José e das reuniões, e
lá começou a se fazer um grupo de estudos onde a gente estudava Fernando Henrique
Cardoso (risos). Rapaz, Fernando Henrique Cardoso naquela época era
revolucionário! É Celso Furtado, Otaviane, alguns autores assim daquela época
que estudavam a sociedade brasileira. Aí um dia chegou um cara do Ceará, veio
passar uns dias aqui e participou do grupo com a gente. Aí, o que é que
acontece? Eu andava no meio da rua, ainda hoje eu me lembro, eu estava com o
José Leite e um amigo meu, e eu fui a vários bares de Teresina, fui num bar, aí
eu vi que tinha um pessoal seguindo a gente. Aí, depois, a gente foi no Luxor
Hotel pra um evento sobre arte, e tinha um grupo seguindo a gente. Aí ele me
deixou na casa de Antonio José Medeiros. Eu fiquei lá. Conversei um pedacinho,
quando eu saí pra ir pra casa, uns cinco quarteirões depois, aí vários homens
armados saíram de um volks e me prenderam, rasgaram minha calça, eu era
magrinho, aqueles homens fortes assim, super-armados, me puseram no carro e tcham!
(gesticula com a mão, um carro saindo em disparada). Aí me levaram pra polícia
federal. Quando eu cheguei lá eu tive a surpresa de ver vários amigos meus lá,
sabe? Revolucionários de porra nenhuma! Como eles eram desinformados, sabe? Aí
tinham vários amigos meus lá presos. Cada pessoa que tinha contato ali na casa
de Antonio José Medeiros, começaram a ser presos. Aí começaram os
interrogatórios, eu fui colocado num quarto escuro e ele era “estreitim”, sabe?
Era “estreitim” assim, sujo! Porque acho que era uma dispensa. Sujo. Ainda hoje
eu me lembro, que eu tava de roupa clara. Aí eu fiquei lá, em pé, no escuro. E
eu tinha bebido a noite todinha e eu tava numa ressaca da porra. A minha
vontade mesmo era dormir, sabe? Aí eu me sentei naquela porra daquela sala
escura, aí pensei: “sabe de uma coisa, vou me deitar”. Mas me deitar
significava que eu ia ficar todo sujo. Era essa exatamente a ideia: ficar sujo
e você perder a auto-estima, sabe? Porque ninguém foi torturado. Eu sei que
quando, foi assim, quatro horas da tarde, que eu fui dar meu depoimento, eu
tava todo sujo e com fome, porque eu não consegui comer a comida que tava lá.
Eu sei que depois que eu fui libertado o Antonio José ainda foi levado pra
Fortaleza, pra ser interrogado lá. A notícia saiu no Estado de São Paulo. Você
pode olhar o Estado de São Paulo que tá lá a notícia da gente. E a coisa interessante, é que quando eu fui
interrogado na polícia federal, eles estavam com todos os desenhos que eu tinha
publicado até então.
42BA:
Como foi o interrogatório? Eles mostravam o desenho e perguntavam?
AP:
Não foi desse tipo, não! Eu cheguei lá e tava toda minha coleção de desenhos e
ele começou a folhear sem dizer nada, aí fechou. Aí eu disse assim: “Caramba!
Eu mesmo não guardei! Agora eu já sei quando eu quiser fazer um livro eu venho
aqui pedir emprestado”. Aí eles começaram a perguntar: “Você é comunista? Você
tá participando de alguma cela?”. Aí começaram a me fazer pergunta sobre o
Antonio José Medeiros. “Você tava no dia tal, local tal?”, eu digo “tava”. Eles
sabiam onde eu tava no dia que o Antonio José tava. Aí eles começaram a fazer
pergunta sobre o Antonio José Medeiros: “Antonio José é comunista?”, aí eu
disse que ele não era, porque ele nunca foi, cara. Antonio José nunca foi
comunista. Sempre foi de direita, ou melhor: não de direita, mas nunca foi de
esquerda, entendeu? Quando o Antonio José foi pra reunião de Biuna, que ele era
da Igreja, ele era um cara conservador. Ele nunca quis fazer a revolução. Aí eu
disse assim: “eu me lembro que o Antonio José Medeiros tava na casa do Santana
e ele disse que era preciso fazer a revolução burguesa no Piauí”. É diferente
comunista, entendeu? Aí eles faziam pergunta assim: “E fulano de tal?”, eu
dizia: “Coisa nenhuma!”, “Baiano? E a mulher do Antonio José?”, “coisa
nenhuma!”. E aí eles começaram a fazer perguntas desse tipo e é claro que eu
respondia com toda seriedade. Todo mundo era de esquerda, claro! Todo mundo era
contra o sistema, mas ninguém quis ser contra o sistema jogando bomba, matando
gente, entendeu? O grupo ali era pra estudar e eu nem estudava porque eu não
tinha saco pra estudar os estudos que tinham na casa de Antônio José. Eu só era
um frequentador. Porque lá era frequentado pela Helena e Helena, eu me
interessava por ela, e depois eu casei com ela. Mas todo mundo naquela época,
era envolvido com cultura e todo mundo fazia muita coisa naquela época: um era
poeta, outro era cenógrafo, outro pintor, outro era músico. A gente se reunia e
fazia as coisas juntos. Havia muita interação. Então, acho que era uma coisa
muito importante para a cultura piauiense. Todo mundo que hoje faz cultura no
Piauí de maneira sólida, começou ali.
43BA:
Agora eu volto lá para a pergunta: como foi que surgiu a ideia de editar a
Humor Sangrento?
AP: O
Arnaldo mandava as histórias do Rio de Janeiro pra cá, as histórias que ele
fazia deitado. E a gente queria fazer algo pelo Arnaldo. Era o único cara que
desenhava quadrinhos no Piauí e fazia um quadrinhos inteligente. E a gente
achou que aquelas histórias mereciam revista. E ele tinha um irmão que tinha
uma gráfica, que era uma da maiores do nordeste.
44BA:
Era a Gráfica do Povo?
AP:
Não, era a gráfica do povo não. Ficava lá no centro industrial, vou já me
lembrar o nome dela. Mas ele era dono da gráfica, mas não queria fazer de
graça, não. Se não arrumasse um patrocinador... Aí o irmão dele era
perfeccionista e o Arnaldo queria fazer as pranchas de vários tamanhos, sabe?
Aí na hora de fazer a revista o irmão dele disse assim: “Vamos cortar e vamos
juntar.” Ele me obrigou a cortar as histórias do Arnaldo. Ele dizia assim:
“Enquanto os quadrinhos não ficarem todos iguais, eu não publico.” Aí naquela época não tinha essa coisa da
fotocópia, eu sei que eu tive de refazer todas as histórias do Arnaldo,
remontar os quadrinhos. E eu fiz isso com o irmão dele. Então nós fizemos a revista
Humor Sangrento. Ele mandou tudo do Rio de Janeiro pra cá. A revista foi feita
aqui sem a presença do Arnaldo.
45BA:
Teve alguma repercussão importante que você colocaria, sobre a publicação dessa
revista?
AP: A
revista teve importância no Brasil inteiro, cara. Foi muito importante porque foi
a primeira revista em quadrinhos publicada assim, que eu saiba, não é? De um
autor local, com desenho autoral, por um cara que sabia o que tava fazendo, que
gostava de quadrinhos, que era o Arnaldo.
46BA:
Chegamos aqui no Salão de Humor. Como foi que tu iniciou tua participação no
Salão?
AP:
Rapaz, eu vou te contar a minha história, que é a verdadeira. Tem a história do
Kenard, mas quem quiser acreditar no Kenard, que acredite! É o seguinte: Eu era
amigo do José Elias e do Kenard e ambos trabalhavam na Fundação Cultural do
Piauí. Arnaldo Albuquerque, José Elias... Nessa mesma época, você pode ir fazer
a pesquisa, a secretária de finanças da prefeitura, a Veroca Conde, que era
“assim” com o Zé Elias, amiga de infância e amiga da gente. Aí eu disse: “Zé Elias,
porque é que a gente não aproveita e faz o Salão de Humor do Piauí,
aproveitando que a Veroca Conde é secretária de finanças da prefeitura? Que ela
pode financiar, cara”. Foi uma ideia minha. Aí disseram: “Aaah! Mas não dá
certo. Não sei o que, não sei o que, não sei o que...”. E eu fiquei insistindo,
entendeu? Aí, quando foi um dia eu abro o jornal e tá lá o regulamento do
primeiro Salão de Humor do Piauí. Aí eu disse: “Porra! Essa ideia é minha. Eu
não fui nem convidado”. Sabe o que foi que o Zé Elias e o Kenard fizeram?
Levaram a ideia pro professor XXX Mourão. E ele topou. Agora tu imagina!
Bernardo, eu não entendo de quadrinhos, agora tu imagina eu fazer um
regulamento de história em quadrinhos. Entendeu? Eu que não entendo de
quadrinhos? Mas naquela época, só quem entendia de desenho de humor no Piauí
era eu e o Dodó. Aí eu disse assim: “Porra Zé Elias e Kenard! Vocês não me
chamaram pra discutir o regulamento”. Eles disseram: “Não, o regulamento já tá
aí. A gente já mandou pro Brasil”. “Legal”. Aí, quando os desenhos começaram a
chegar, tinha desenho desse tamanho, tinha desenho desse tamanho (gesticula
tamanhos diversos com as mãos). Porque o regulamento não constava regras
básicas. Aí quando eles foram montar, colaram tudo num estande aí botaram um
plástico por cima. Só pra você ver como foi amador. E naquela época eu briguei
muito com eles e eu fiquei muito puto porque nem pra ser jurado eu fui
convidado. Pô, quem mais entendia de desenho de humor naquela época, era eu e
mais duas pessoas. Nenhum foi convidado pra ser jurado. Foi convidado um
fotógrafo, gente que não tem nada a ver com humor: “personalidade”, entendeu?
No
segundo Salão foi a mesma coisa. Só que no segundo eu fui convidado pra ser
jurado. Eles não me chamaram pra discutir o Salão ainda. Eles ainda fizeram um
terceiro e foi um fracasso.
47BA:
De participação?
AP:
De tudo! Foi tão ruim os três Salões, assim desorganizado, sem método. Aí o
Jesualdo Cavalcante assume a Fundação Cultural do Piauí, pra secretário de
cultura. Aí o Jesualdo resolveu acabar com tudo que não dava certo. E tava o
Salão de Humor na lista. Aí eu disse: “Kenard, não vamos deixar o Salão de
Humor acabar. Ele pode ser um Salão mal feito, mas ele agrada a cidade”. Porque
desde o começo ele agradou, sabia? Ele é uma coisa que agra a cidade. “O que a
gente tem que fazer é organizar o Salão “direitim”, colocar regras e fazer
outras coisas paralelas”. Aí o Kenard marcou reunião com o Jesualdo, ele disse:
“Eu soube que você não quer que acabe o Salão”. Eu disse: “Secretário, o Salão
de Humor, ele é feito de maneira desorganizada. Dá confusão todo ano”, porque
os artistas piauienses tentavam colocar os desenhos deles e não eram
classificados, sabe? “Mas nós podemos transformar o Salão de Humor num dos
melhores eventos do Piauí e do Brasil, desde que a gente estabeleça um
regulamento compatível e a gente fazer vários eventos paralelos a ele”. Aí eu
expliquei todas as ideias, sabe. O que eu achava. A gente tinha que fazer feira
de livro, música, teatro... Aí ele disse “eu vou pensar”. Eu fui pra casa.
Quando foi no outro dia, de manhã, chegou um carro da secretaria. “O secretário
mandou lhe chamar”. Rapaz! Só um cara
desses! Só-um-cara-desses, rapaz! Ele mandou me chamar. Ele disse: “T'áqui duas
passagens, pra você ir a Brasília e Rio de Janeiro. A Brasília pra você
conversar com o Ministério da Cultura e a outra pra você ir na Funart e
conversar com os cartunistas do Rio de Janeiro”. Por acaso, quem dirigia a
Funart era o Ziraldo. Aí eu disse: “Pô! Esse cara é do caralho!”. Aí eu viajei,
quando cheguei lá no MinC, eu conversei sobre o Salão, ninguém deu atenção. O
MinC era uma coisa pequenininha assim. O MinC, ele veio se abrir agora. Era
fechado pra porra. Aí de lá eu rumei pro Rio de Janeiro aí fui conversar com o
Ziraldo, lá na Funart. Aí o Ziraldo me disse uma coisa, cara, que norteou o
Salão pro resto da vida. Ele disse: “eu não vou dar dinheiro pra porra de
Salão, não”. Aí eu disse: “porque Ziraldo?”. “Porque todo salão que tem nesse
país, só tem gente no dia do coquetel, depois fica abandonado. No coquetel todo
mundo vai. Não vou dá dinheiro, não”. Aí eu disse: “pois eu prometo pra você
que o Salão de Humor não vai ser um salão desse tipo”. Aí foi a partir daí que
a gente começou a colocar o salão na rua. O salão começou a ser popular,
diferentemente de Piracicaba, sabe? E a partir daí o Salão de Humor começou a
se desenvolver de tal maneira, que ele chegou ao estágio que nós temos hoje,
que o Governador Wellington Dias não tá nem aí pra ele, sabe? (risos) Eu tou
desde o começo do ano tentando liberar R$ 20 mil só pra começar o Salão e não
consigo.
48BA:
Acho que aqui cabe a pergunta: porque fazer a Fundação Nacional de Humor?
AP: A
Fundação a gente tentou fazer porque é o seguinte, a gente viaja pro Rio de
Janeiro e São Paulo e a gente percebeu que todos os salões que se fazia no
Brasil eram ligados ao Estado, ou órgão ligado à esfera municipal, estadual ou
federal. E a gente percebeu que não havia autonomia de se colocar ideias.
Então, no Piauí era muito difícil de se fazer o Salão, porquê? Porque naquela
época era o Zé Elias era não sei quem, porque o Jesualdo já tinha saído, que
era um cara muito aberto. A gente
conseguia convencer ele. Tinha muita hierarquia no meio. A gente chegava e
propunha uma ideia aí “não, a vai consultar o secretário” aí o secretário “não,
a gente vai consultar o governador”. E a gente achava que tinha muito
intermediário nas ideias. As ideias que a gente tinha eram amplas e não
funcionavam. Por exemplo: essa ideia dos túneis (que expunham trabalhos nas
praças) a gente teve e só conseguiu fazer dez anos depois. A ideia de fazer os
túneis, a gente não conseguiu implantar.
A Fundação foi a primeira ONG
cultural do Piauí. A gente queria uma instituição onde nós mesmos
planejássemos, fizéssemos e fossemos atrás. E que a gente enfrentasse nossas
dificuldades. Tudo isso que tem aí, de dificuldades que a gente tem, tem ano
que a gente não consegue fazer direito, já tava previsto. Aí eu comecei, a
gente começou uma fundação que não tinha prédio. E eu consegui esse prédio com
o Firmino. E eu venho tentando há mais de 10 anos terminar ele. Porque não
consigo sensibilizar o governo, nem municipal, nem estadual, nem federal que é
importante terminar aquele prédio ali. Aquele prédio funcionando a gente pode fazer
muitos projetos ali dentro.
O importante
é que a gente pense por nós mesmos. No ano que não dê certo, é porque não
conseguimos sensibilizar ninguém. Como esse ano não conseguimos, ano passado
não conseguimos porque eu caí numa armadilha do Wellington Dias, sabia? Quero
registrar aqui. Porque antes nós fazíamos o Salão com facilidade. Ele era
dentro do período eleitoral. Aí o Wellington disse assim: “Olha, nós queremos
que você faça sempre o Salão fora do mês eleitoral”. “Tá bom, governador.” Só
que é o seguinte: toda vez que a gente faz o Salão de Humor, depois do mês
eleitoral, ele não recebe ninguém porque sabe que o Salão é carta fora do
baralho. Então a gente tá na discussão agora: ou a gente faz o Salão em
setembro, ou faz em maio ou em junho. Porque em maio é antes do processo
eleitoral. Ninguém consegue conversar com nenhuma autoridade na época
eleitoral. Porque como o Salão vai ser feito depois da eleição...
49BA: Pelo menos antes tá...
AP: É! Aí o Wellington Dias, ele pediu isso e eu deixei fazer,
só que agora... Ele é sabido demais, cara, aquele governador. Esse ano, por
exemplo, eu fiquei o tempo todo assim: “Governador, me dê uma audiência.” Ele
disse: “Na hora que você quiser. Vá lá no palácio marcar”. Aí quando eu cheguei
lá um cara disse assim: “Não adianta que o governador só vai receber depois da
eleição. Porque ele tá andando no interior. Aí você não consegue, porque uma
parte do dinheiro do Salão de Humor vem do Governo e você não consegue.
Agora, eu posso dizer uma coisa aqui, cara? Eu acho que a
Fundação do Humor ela tem que ser rediscutida e eu acho que várias pessoas que
fazem a cultura piauiense, que fazem o humor, todos nós, sabe? E a gente dar um
novo direcionamento pra ela. Porra! Nós temos um prédio maravilhoso. Nós temos
um acervo maravilhoso. Nós temos um acervo de exposição que ninguém tem no
Piauí. E eu acho que nós temos que ter uma diretoria que funcione. Nós temos
que ter um grupo que bote a Fundação pra frente. Não só interessado no dinheiro
do Salão. Porque na época que o Salão de Humor tem dinheiro, todo mundo vai pra
Fundação. É bom poder elaborar projetos, eventos. A interiorização do Salão do
Humor. Nós temos um acervo fantástico. Ninguém tem mais condição de ir pro
interior do que nós. Eu acho que a Fundação deve passar por um novo
direcionamento. Eu até saio da presidência.
50BA: Tenho mais algumas perguntas aqui que são mais
genéricas. Qual é o seu conceito de arte? Como você definiria?
AP: Tem coisas assim como arte, amor, que a gente quer definir
e eu acho que não tem uma definição específica, sabe? Eu não acredito em arte
que não seja transformadora. Eu vejo a arte assim: primeiro tem a arte que ela
já foi feita, que é o patrimônio da humanidade. Eu acho que a história da
humanidade é contada pela arte que o homem fez ao longo do tempo. Seja a arte
utilitária, seja aquela arte que o homem que o homem tentou fazer representação
de alguma coisa. Eu acho que a maior parte desse patrimônio cultural da
humanidade ligada a arte ainda tá debaixo da terra. É precisa escavar pelos
geógrafos, pelos antropólogos, pelos arqueólogos. Eu vejo a arte como a grande
oportunidade que a humanidade tem de fazer reflexão sobre a realidade em volta
dela. É essa a função do artista, ele fez um trabalho pessoal, isolado, mas
depois que aquele trabalho é feito, já não é mais dele. Ele já é de outra
pessoa. Aí quando você olha, ele tem que provocar alguma reflexão em você.
Então a arte que não provoca uma transformação e quer ser obra de arte, ela não
serve. É verdade que você pode fazer uma obra de arte que seja bonita, mas
mesmo ele sendo só bonita ela já agrada quem olha, provoca uma felicidade, mas
eu acho que tem que ser uma coisa transformadora.
Uma das coisas mais importantes que eu acho na minha vida é
que nós devemos fazer com que a arte seja ensinada para as pessoas nas escolas.
Olha, o Salão de Humor é um evento, onde você chega e olha os desenhos, mas uma
coisa é você ir pra dentro da escola e ensinar arte, mostrar arte. E nós tamos
perdendo um grande espaço no Brasil, porque a arte da humanidade já tá feita.
Toda a arte já tá aí! A humanidade acumulou durante todos esses milênios e isso
estão guardados dentro de museus, dentro das bibliotecas, na cinemateca, todo
essa patrimônio cultural. E como você vai divulgar todo esse patrimônio? O
melhor lugar é dentro das escolas públicas. É a gente fazer projetos em que
dentro da escola pública a gente possa chegar e difundir a arte. Porque a arte
sem difusão, ela não provoca nada. Você faz um evento de quadrinhos aqui,
Bernardo, você sabe que só vão os aficionados. Quer dizer, qual a revolução que
provoca? Nenhuma! A não ser as pessoas que já gostam e vão lá! Quando você bota
na cidade, na rua, o desenho, aí muita gente vê. E eles já veem o Salão há 25
anos. Aí você trabalha com um público que você não tem noção quem é. Quando
você leva todo esse acervo pras escolas e você discute ele dentro da rede
escolar aí você começa a fazer uma revolução, porque o menino que tá ali ele tá
vendo aquilo ali dentro da escola dele, do bairro dele. Então eu acho assim, eu
não tenho um conceito pra arte, mas eu acho que a arte que não transforma a
humanidade, ela não serve.
51BA: Dentro da tua produção, tu enxerga uma evolução
temática, conceitual, dentro do que tu fez, do que tu faz?
AP: Eu não me acho importante dentro da arte piauiense não.
BA: (risos) Era a próxima pergunta...
AP: Eu não me acho, não. Mas eu vou dizer, porque o
seguinte... Repete a pergunta!
52BA: Houve uma evolução temática e conceitual dentro do
teu processo criativo?
AP: Mas é claro. O meu desenho ele super evoluiu. É porque eu
tenho meus desenhos secretos, que ninguém conhece. Eu, por exemplo, deixei de
fazer aquela piadinha, de quando eu comecei a desenhar humor, aquela piadinha
que você faz a pergunta aí o boneco responde e faz a piadinha. Que é esse o
desenho de humor que se faz no Brasil: a piadinha engraçada. E há muito tempo
que eu peguei meu desenho e coloquei para o lado filosófico, entendeu? Durante
muito tempo eu desenvolvi esse desenho filosófico que questiona o ser humano
enquanto ser humano, só que eu irresponsavelmente não continuei. Eu tenho em
casa assim, dezenas de esboços pra poder passar a limpo e eu não passo. E eu
acho que meu desenho evoluiu. Ele saiu da piadinha, eu não gosto de fazer
piadinha... De vez em quando eu faço uma porque eu sou gente também, sabe? Mas
o meu desenho de humor hoje em dia é um desenho filosófico, então ele é
plástico. Ele é formal. Se você for no meu blog, você vai ver desenhos que são
formais assim. Eu desenho um pássaro, a revolução nele, com relação ao meu
desenho anterior, ele é formal. Ou então você vê desenho que é filosófico, onde
eu faço uma montagem, que eu ponho o pensador. Então ele tá querendo dizer uma
coisa que que vai dizer é o leitor. Então eu acho que no Piauí, com relação ao
desenho de humor, eu acho que quem mais avançou fui eu, até hoje. Sério. Só que
a maioria dos meus desenhos eu não botei pra fora, ele não é publicado e você
pode ver alguns no blog, no meu myspace. É myspace que fala?
53BA: Qual a grande contribuição que tu acho que ofereceu
pra cultura piauiense? Seria aquela última pergunta.
AP: O meu desenho não contribuiu em nada pra cultura do Piauí,
porque eu passei 20 anos sem desenhar. Aí eu comecei a fazer desenhos pra mim
mesmo, que eu vou guardando em casa e eu acho que meu desenho não tem
influencia sobre a arte nem sobre a sociedade piauiense, sabe? Até porque
ninguém conhece meu trabalho, porque depois que eu deixei de ser chargista, que
eu deixei de publicar no jornal, eu deixei de ser personalidade da arte. As
pessoas me procuram mais pelo Salão e nem conhecem meu desenho, sabe? Elas não
conhecem e nem querem, mas elas me adoram (risos). Então é mais por causa das
coisas que eu faço, mas não por causa do meu desenho.
Eu tenho um material imenso pra puder fazer. Eu quero botar
meu ateliê e quero voltar a ser desenhista. Vou retomar minha linha de
trabalho, agora é um tipo de desenho que ainda não se faz no Piauí. Porque a
charge que se faz no Brasil hoje é uma droga. Você pode olhar os jornais do
país. São maus desenhistas, os caras não sabem desenhar. E no Piauí mesmo, eu
vou lhe dizer uma coisa que pode ser chocante pra você, mas no Piauí, na
imprensa piauiense, o humor que se faz, no mínimo é nota 2. É sério. Eu acho
legal quando o Jota A ganhar prêmio nacional com cartum, mas o trabalho que ele
faz no jornal O Dia, não tem uma sequencia de boas charges. Até porque ele quer
caricaturá os personagens e ele não é bom caricaturista. O Moisés é
fraquíssimo, porque ele é um cartunista municipal e o Amauri faz um desenho tão
bem feito no computador que não tem graça. Eu me lembro de um tempo que eu
fazia uns desenhos de charge, que era tão bem feito que não tinha graça, sabia?
E é o caso do Amauri.
Ninguém consegue ser gênio todo dia. Aí pro Jota A ser gênio ele
tinha que fazer uma charge por semana. O Chico Caruso, no jornal O Globo, ele
se repete o tempo inteiro.
A geração que inventou a charge no Piauí, e o cartum: primeiro
lugar o Arnaldo, aí depois sou eu. Aí teve uns caras assim que é bom você
botar: o Neri, não sei se cabe...
54BA: A princípio seria um trabalho biográfico. Mas aqui
tem muita matéria-prima pra depois. Meu trabalho será sobre sua via, sobre suas
influencias...
AP: Você não perguntou sobre as minhas influencias não, cara?
BA: Eu imaginei que seria o Pasquim...
AP: Não!
55BA: (risos) Tinha uma pergunta aqui, mas eu achei que já
tava respondida. Mas tem aqui: quais as mais fortes influencias que teve e por
que?
AP: As maiores influencias que eu tive na minha vida, é o
seguinte: o Pasquim não foi o desenhista nacional, não. Porque depois da
geração do J. Carlos começa a surgir uma geração com o Jaguar, Fortuna,
Claudios, Millor e Ziraldo. Aí eles começam a dar uma qualidade artística mesmo
para o desenho. Então você olha e são bem desenhados. Então essa foi a primeira
influencia que eu tive. Depois, eles começaram a perder essa qualidade. O
Jaguar hoje em dia faz um desenho de qualquer jeito. E o Jaguar é o mais genial
cartunista do Brasil. Então o desenhista que mais viria me influenciar, e influenciou
uma geração de cartunistas no Brasil inteiro... Por que o Jornal do Brasil, ele
tinha um caderno chamado Caderno Especial e as matérias eram matérias sobre
economia, ecologia, sobre vários assuntos e eles eram ilustrados pelos grandes
ilustradores do mundo. Aí tinha um cara lá chamado Rolland Toppor, Eugene
Milaresko, Milton Glayse, Saul Stenberg, Half Stidman. Todos tem na internet.
Todos eles. Essas pessoas todas influenciavam a gente. Não que a gente fizesse
igual a eles, mas essas pessoas colocaram o desenho de humor no suporte da
arte. Então, a partir dessas pessoas, eu comecei a fazer desenhos sem palavras.
Desenho de humor, que não tivesse palavra e que o leitor é que desse o
significado do desenho, entendeu.
Quer dizer, os grandes desenhistas que o mundo já teve, assim
como você tem os caras que são importantes pros quadrinhos, esses caras são
impantes para o desenho de humor. Ilustradores fantásticos. Os desenhos deles
são mais importantes que o texto.
56BA: Eu lembro que seus desenhos publicados num álbum, tem
muitas “setas”. Tem alguma influencia direta de algum deles?
AP: Não porque a seta é do mundo moderno, mas o
seguinte: é que eles foram geniais e ninguém conhece, na arte. Quando a gente
fala de desenho de humor, ninguém conhece esses caras. E outra coisa... (e a
bateria acabou).