sexta-feira, 25 de maio de 2012

Histórias Cruzadas





Por Bernardo Aurélio 

O filme Histórias Cruzadas (The Help) conta a história das empregadas domésticas negras norte americanas durante a primeira metade da década de 1960. Escrito e dirigido por Tate Taylor, baseado na novela de Kathryn Stockett, o filme se passa na cidade de Jackson, Mississipi, região sulista dos Estados Unidos, historicamente reconhecida por defender a política escravocrata durante a guerra de secessão no século XIX. Mesmo tendo perdido a guerra, a herança da segregação racial continuou forte nos EUA até o momento quando se passa a história do filme, onde os negros deveriam ter livros, escolas, hospitais e até banheiros diferenciados e não compartilhados com os brancos.

A história é contada sob dois pontos de vistas: a de Eugenia Pheelen, conhecida como Skeeter, uma jovem mulher branca, de 23 anos, que sonha em ser escritora e que foi criada desde bebê por uma empregada negra, chamada Constantine, por quem nutria grande afeto. Skeeter decide escrever um livro de entrevistas onde essas mulheres negras contariam suas experiências nas casas dos brancos ao perceber-se inserida num grupo social onde todas suas “amigas” foram criadas por mulheres negras, mas que, quando cresciam, discriminavam-nas, considerando-as inferiores e possuidoras de doenças diferentes das pessoas brancas. O outro ponto de vista é o da empregada Aibileen, que trabalha na casa de uma amiga de Skeeter e que se torna a primeira mulher disposta a lhe dar entrevistas, narrando todas as situações horríveis pelas quais tem que passar cotidianamente.

Fazer um livro de entrevistas com essas empregadas domésticas era um trabalho muito difícil por que havia medo muito grande por parte dessas mulheres que teriam de contar suas histórias. O Estado do Mississipi proibia qualquer tipo de manifesto, livro ou panfleto que pregasse igualdade racial ou mesmo defesa dos direitos dessas pessoas, de forma que esse livro era contra a lei e as pessoas envolvidas na produção dele, sujeitas às mais duras agressões baseadas no preconceito oficializado e praticado ali. A parte mais difícil seria conseguir mais depoimentos para puder tornar o livro publicável. As mulheres negras só se tornam confiantes e corajosas para falar abertamente suas histórias devido à morte de Medgar Wiley Evers, conhecido ativista negro, por homens da KKK, e por causa da injusta prisão de uma de suas colegas, Yule Mae, acusada de roubo na casa de Hilly, umas das “amigas” de Skeeter.

O livro escrito por Skeeter, narra as histórias dessas mulheres negras e o filme conta a história da produção desse livro, e vai além, mostrando a reação das pessoas envolvidas diretamente nas histórias ali narradas depois que a publicação é distribuída para venda.

A produção do livro nesse filme tem uma ligação muito forte com o ofício do pesquisador ligado à história oral e sua relação com a memória. Primeiro de tudo, precisamos nos firmar na certeza de que a lembrança não é necessariamente uma verdade, como nos adverte Beatriz Sarlo. Então, Skeeter nos apresenta narrativas individuais de pessoas que estão sujeitas a uma memória seletiva que pressupõe também o esquecimento de muitos fatos. As narrativas individuais das empregadas nos apresentam uma história, uma versão. Maurice Holbwachs nos fala dessas que mesmo essas memórias individuais sendo autobiográficas, os grupos sociais, como o das empregadas negras apresentados nesse filme, determinam o que deve ser lembrado, o que é memorável, ou não.

O livro também nos remete à história do cotidiano, trabalhado por Certeau. As empregadas negras são protagonistas sociais de sua própria cultura inseridas nas casas brancas. O hábito alimentar dos negros e a educação que eles dão aos filhos dos brancos diariamente.

No filme, a verdade está no dia a dia da cozinha. Lá, as empregadas são confidentes entre si e falam sobre como odeiam suas patroas e como fazem escondidas o que é proibido fazer nas casas delas, como quando Minny Jackson, que é proibida de usar o banheiro da patroa, diz para a amiga Aibileen que leva papel higiênico de sua própria casa para que a patroa Hilly não perceba que tem uma negra usando seu banheiro. Na cozinha, elas falam de uma história subterrânea, que não deve surgir à tona. Minny ironiza: “Sou surda e muda”. Aibileen responde: “Faz como eu faço?”. Skeeter pretende levar essas histórias da cozinha para todo seu público leitor.

Em determinado momento, Aibileen pergunta: “Srta. Skeeter, e se não gostar do que eu tenho a dizer?” Skeeter responde: “Isso não se trata de mim. Não importa como eu me sinto.” Só então Aibileen fica mais à vontade e começam a conversa. O local é em sua própria casa e Skeeter faz tudo que Aibileen exige para poder dar a entrevista: estacionar o seu carro bem distante de sua casa, pegar um taxi e ainda descer a duas quadras da casa de Aibileen e alterar todos os nomes dos envolvidos. Era uma história subterrânea, oculta e, por seguro de vida, deveria permanecer assim. O historiador que trabalha com objetos de pesquisa como Aibileen, precisa se submeter às suas vontades para deixá-lo o mais à vontade possível, para que a narrativa discorra da forma mais natural possível.

Quando Skeeter pergunta “como se sente criando crianças brancas, quando seus próprios filhos estão em casa sendo cuidados por outras pessoas?”, Aibileen muda a expressão, fica pensativa e olha para a foto de seu filho na parede. Skeeter, como entrevistadora, fica atenta a essas reações e pergunta sobre a foto. Aibileen pede pela próxima pergunta. Skeeter faz várias perguntas que pareciam não funcionar. Aibileen não estava em sintonia com elas. Não era exatamente sobre aquilo, ou daquela forma, que ela queria falar, então propõe dizer, de outra maneira, o que está sentindo: Aibileen pede pra ler as memórias que havia escrito sobre tudo aquilo. Skeeter aceita prontamente. O entrevistador deve se adaptar a essas formas nas quais o entrevistado se sente mais à vontade em sua fala. Aibileen começa a ler e a entrevista segue, pela primeira vez, agradavelmente.

Havia um banco, no quintal da casa de Skeeter, que funcionava como um apoio para a memória, um lugar que levava a protagonista a uma visita ao passado: um flashback. Esses lugares de memória são matérias, funcionais e simbólicos. Em dois momentos do filme, Skeeter usa lugares como esse para se lembrar de Constantine, sua empregada. Uma vez no banco, onde Constantine surge aconselhando uma Skeeter adolescente, numa cena que carrega aquele espaço de sentimento. Outra cena é na varanda da casa de Constantine, onde vemos a empregada fazer tranças na protagonista, ainda criança.

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