Por Bernardo Aurélio
Frank
Miller, autor que dispensa apresentações, lançou há 20 anos aquela que deve ser
sua última grande obra: Os 300 de Esparta. Foi um grande sucesso de crítica e
vendas, chegando a ganhar o Eisner (maior prêmio da indústria dos quadrinhos
americanos) de 1999, como a melhor minissérie lançada no ano anterior. Não é
para menos, afinal, o gibi é um clássico, merecidamente.
Miller
decidiu fazer a HQ por conta de um filme homônimo (de 1962) que viu quando era
criança e que o marcou fortemente. Para trabalhar com ele, esteve ao seu lado
sua esposa, Lynn Varlley, responsável por colorir o melhor trabalho que Miller
já fez: Batman - Cavaleiro das Trevas (1986) e Elektra Vive, que considero, visualmente,
o ápice na carreira destes autores, ou seja, os desenhos de Frank Miller e a
cor de Lynn Varlley nunca estiveram tão bons quanto na simbiose que ofereceram
em Elektra Vive, mas o assunto aqui é 300...
Lançada
no Brasil, originalmente, pela editora Abril como uma minissérie em 5 partes,
de maio a julho de 1999, o quadrinho conta a história dos 300 soldados
espartanos, liderados pelo rei Leônidas, contra os milhares de invasores Persas
do imperador Xerxes, naquele que é considerado o momento dos primeiros
confrontos entre oriente e ocidente do mundo antigo, no século V antes de
Cristo.
Posso
dar uma contextualização histórica? O mundo da Europa antiga vivia o auge do
que chamamos de período clássico, quando Esparta e Atenas eram os principais modelos
de cidade-estado do momento. Entretanto, já existiam grandes impérios no
oriente médio, como os assírios e os persas. As cidades-estados sempre lutaram
entre si, para manter o controle do mar mediterrâneo e suas consequentes
influencias sob as demais cidades gregas. Acontece que os Persas, desde Dario,
pai de Xerxes, era imperador de um exército como nunca se vira antes e seu
expansionismo era de causar espanto aos agrupamentos gregos, que, em comparação
aos orientais, poderiam ser considerados pequenos, afinal, a Europa nunca havia
conhecido um império.
Algo
que não é contado no livro de Miller, mas que é historicamente muito
importante, é que 10 anos antes de Xerxes, Dario tentou invadir a Grécia e foi
derrotado por Atenas, na famosa batalha que eternizou o nome “maratona”: Fidípides, correu centenas de quilômetros,
primeiro da cidade de Maratona até Esparta, para pedir ajuda a eles, que foi negada
porque os lacônios (habitantes da região de Esparta) estavam no meio de um
festival religioso e não poderiam batalhar naquele período, e segundo, correu de
Maratona até Atenas, para avisar da vitória que os atenienses infringiram aos
persas. Feito não menos impressionante que a batalha das Termópilas, da qual
trata 300.
É
curioso notar aqui que, 10 anos antes, Esparta ignora o pedido de ajuda ateniense
alegando a Carneia, o período das festividades religiosas, único momento em que
Esparta não poderia guerrear. E esse é o mesmo motivo que faz Leônidas partir
sozinho com seu batalhão contra o exército persa, causando uma crise política,
civil e religiosa, já essa atitude iria contra sua tradição, mas era necessário
ser feito.
Maratona
e Atenas foram tão importantes que o império Persa precisou de 10 anos para se reorganizar
internamente para um novo ataque, principalmente por causa da morte de Dario e
de todo o processo de transição do poder para Xerxes. Reforço isso porque a
obra de Miller, talvez pela vontade de representar a opinião espartana sobre os
atenienses, a quem consideravam efeminados ou glutões preguiçosos, endossa essa
opinião. O fato é que, esses 10 anos de espera entre Maratona e Termópilas,
permitiu ao mundo grego se organizar, criar certa ideia de nação que não havia
antes, investir como nunca em um exército marítimo e todos os elementos que
permitiram que a Europa ocidental não fosse subjugada ao poder de um império
oriental.
Muito
dos problemas enfrentados pelos gregos para organizarem a luta contra os persas
diz respeito à criação de um sentido de unidade, de perigo externo em comum, de
humildade e participação entre os povos, sempre muito altivos e orgulhosos em
seus isolacionismos e as Guerras Médicas, de certa forma, foi o princípio que proporcionou
isso à Europa. Digo só pra deixar claro, caso você seja um leitor de 300 super
empolgado com Esparta, saiba que, no plano geral, muito se deve à Atenas.
Mas
vamos voltar ao gibi...
Miller
soube ser fiel ao espírito espartano, adjetivo que designa a sobriedade, o
rigor e a severidade daquele povo que treinavam o tempo topo para a guerra. Assim
como Leônidas, todas as “crianças”, condição que não existia, pois eram
tratados como pequenos adultos, eram chicoteados até sangrarem e eram ensinados
a serem cruéis, caçando e matando. A disciplina militar era rígida e os jovens
só poderiam falar quando tinham permissão, e como falavam pouco, os espartanos eram
de grande precisão na hora de o fazer, o que se tornou conhecido como fala "lacônica",
caindo como uma luva à narrativa de Miller, sempre sisudo, econômico e certeiro
em suas expressões, desde as soturnas narrativas de Sin City.
Outra
característica que pode causar estranheza aos leitores do quadrinho, é o fato
dos espartanos andarem nus, entretanto, é histórico. Conforme cresciam, os
cidadãos eram obrigados a andar descalços e nus, de modo que adquiriam a
resistência de uma pele grossa, para melhor enfrentarem as intempéries da
natureza e as guerras, sempre constantes no mundo antigo.
A
história que Miller conta é muito pontual, não se aventurando no que aconteceu
10 anos antes, em Maratona, ou no que acontece depois da batalha das
Termópilas, onde Leônidas enfrentou o exército persa, mas nunca teria conhecido
Xerxes pessoalmente... Liberdades poéticas. Então, caso você ainda não saiba,
não darei spoiler, mas tente imaginar o resultado de 300 homens enfrentando um
exército milhares de vezes superior... Miller foca no legado espartano, o que
fica claro ao se observar os títulos de capa capítulo de sua história: honra,
dever, glória, combate e vitória. Que vitória seria essa senão aquela do
legado, que seria contada e recontada pela oralidade até chegar às grandes
mídias contemporâneas? É justamente a vitória da glória, do dever e da honra.
Por
ser pontual, 300 não mostra como os persas são, de fato, derrotados pela
organização dos povos gregos, da frota naval ateniense e da força espartana,
claro, insuflados pelo espírito de Leônidas e seu pequeno exército. Mas isso
não diminui a força da obra, balançada no pendão sedutor da arte e da história,
Miller sabe ser um bom orador.
E
pra contar uma história é preciso ir além do texto. O fato é que Miller e
Varlley conseguiram dar uma identidade visual incrível ao gibi. Contrastes
formais de claro e escuro que o autor já dominava bem desde seus trabalhos em
Sin City, domínio das diagonais nos planos criando efeitos dinâmicos de ritmo e
movimento, cores fortes de marrom e vermelho, tudo isso características
marcantes da arte barroca, que, inegavelmente inspiraram os autores, namorando
com um expressionismo forte apresentado pelos desenhos distorcidos de Miller
(obrigado pela aula, Drª Zozilina).
(ator ao lado de pintura de 1814)
A
arte de 300 impressiona. Principalmente se você tiver a edição em formato
horizontal, lançado posteriormente pela editora Devir. Impressiona tanto que,
ao ser adaptado para o cinema por Zack Snyder (2006), teve esse visual recriado
na telona. Quando digo “recriado” estou falando literalmente, pois Lynn Varlley
foi chamada para pintar alguns dos cenários utilizados no filme. Por essa
adaptação fiel, Zack Snyder ganhou o título de “visionário”, o que calçou o
caminho da sua história em produções futuras, como Watchmen e Batman v
Superman.
Atualmente,
Miller publica "Xerxes" nos Estados Unidos, que deve ser a continuação direta de “Os
300 de Esparta” (ou não, já que na capa há a frase "the fall of the house of Darius") e, como ainda não tive acesso, não posso traçar comentários.
Mas, avaliando os últimos trabalhos do autor a que fizemos leitura, como as
duas continuações de Cavaleiro das Trevas e Holy Terror, não criaremos nenhuma
expectativa. Infelizmente, terminamos esse texto como começamos: Os 300 de
Esparta deve ser a última grande obra de Miller e, por isso, deve ficar em
destaque na sua prateleira.
Obs: Este escritor ainda não assistiu ao filme "300: Rise of an Empire"... Desculpem.