Por
Bernardo Aurélio
Parte
1: mito, herói e super-herói
Certa vez fui convidado
a pensar sobre isso: o que é si tornar um herói e como essa jornada pode ser
compreendida em um personagem como o Batman? Para focar os argumentos em um
recorte específico, a escolha mais óbvia me pareceu Batman Ano Um, escrita por
Frank Miller e desenhada por David Mazzucchelli[1],
obra originalmente publicada em 1986 e que narra, justamente, os primeiros
passos do multibilionário Bruce Wayne rumo ao mundo encapuzado os super-heróis.
A princípio, vamos
falar de termos. Existe um motivo para a distinção entre “herói” e
“super-herói” e a mera superlativação não se justifica plenamente. De acordo
com artigo escrito por Jeph Loeb e Tom Morris, somos apresentados a conceitos
antigos do que significa ser herói: “homem com qualidades magnânimas;
semideus”, “homem extraordinário por seus feitos guerreiros” ou ainda “homem
admirável por feitos e qualidades nobres” (2005, p.24-25).
Pode-se perceber que algumas
dessas representações são construídas para dialogar com conceitos de narrativas
épicas da antiguidade, com uma era mítica de aventuras atemporais, como os
feitos de Hércules ou Prometeu, afinal, o conceito de herói era aplicado a
esses autores de grandes façanhas e seus atos serviam de referência para o
homem comum, ordinários, que se influenciavam nesses heróis em busca de se
tornarem pessoas mais magnânimas, melhores guerreiros ou, simplesmente, mais
nobres.
De acordo com M.I.
Finley, em seu “Uso e Abuso da História”, a era mítica tratava-se de uma forma
artística para se narrar os grandes feitos da humanidade, ou de semideuses,
para um público curioso e afeito às suas crenças:
Édipo, Agamenon e Teseu eram mais
reais para os atenienses do século V que qualquer figura histórica anterior a
esse século salvo Solon, e este foi elevado à categoria daqueles ao ser
transformado em figura mítica. As tragédias e odes corais apresentadas
anualmente nas grandes festividades religiosas faziam ressurgir os heróis
míticos, e estes, recuando pelas gerações de homens até chegarem aos deuses,
recriavam a trama contínua da vida para o público, pois os heróis do passado, e
mesmo muitos heróis do presente, tinham ascendência divina. Tudo isso era sério
e verdadeiro, literalmente verdadeiro (...) Os gregos, todavia, amavam os
épicos e as tragédias não só porque precisavam ser lembrados das origens de
seus ritos, embora essa função fosse muito importante para o indivíduo – e
ainda mais para a comunidade, que era arraigada a seus padroeiros e ancestrais
divinos. O mito era o grande mestre dos gregos em todas as questões de
espírito. Com ele, aprendiam moralidade e conduta (FINLEY, 1989, p. 5 - 6).
Os
épicos, as poesias, o teatro eram a forma dos antigos de rememorar seu passado
e preservar sua história e seus valores. Essas narrativas eram protagonizadas
por grandes personagens, heróis, que, de tão espetaculares, tornavam-se
verdadeiras lendas, mitos. É necessário falar disso agora, porque,
inevitavelmente, o personagem Batman (como muitos outros super-heróis dos
quadrinhos) é carregado de ares míticos, quer dizer, ele pode representar
modelos de moralidade e conduta tanto quanto os modelos antigos.
É importante,
entretanto, pautar uma diferença entre os mitos antigos e os que permeiam os quadrinhos
hoje. Em Batman, mesmo em algumas histórias em quadrinhos, existe certa dúvida
sobre sua existência e ele é tratado como um mito urbano. Quer dizer, na
antiguidade, os mitos eram reais na crença das pessoas, interpretados até mesmo
como personagens históricos, permeando suas narrativas épicas, como Aquiles na
guerra de Tróia. Entretanto, quando, dentro ou fora do universo da ficção,
diz-se que o Batman é um mito, se fala sobre o modo como ele pode ter sido
“inventado”, que não condiz à realidade, uma lenda simbólica, que não é
“literalmente verdadeiro”, para usar as palavras de Finley. Para entendermos
melhor a diferença entre mito e realidade, Mircea Eliade nos é bastante útil:
Há mais de meio século, os
especialistas ocidentais situaram o estudo do mito numa perspectiva que contrastava
sensivelmente com a do século XIX. Em vez de, como os seus antecessores,
tratarem o mito na acepção usual do termo, ou seja, enquanto
"fábula", "invenção", "ficção", aceitaram-no tal
como ele era entendido nas sociedades arcaicas, nas quais, pelo contrário, o
mito designa uma "história verdadeira" e, sobretudo, altamente
preciosa, porque sagrada, exemplar e significativa. Mas este novo valor
semântico atribuído à palavra "mito" torna o seu emprego na linguagem
corrente bastante equívoco. Com efeito, este termo é hoje utilizado tanto no
sentido de "ficção" ou de "ilusão" como no sentido,
familiar sobretudo para os etnólogos, sociólogos e historiadores das religiões,
de "tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar" (ELIADE.
1989. p. 9).
Hoje, podemos
compreender que “o épico não era história (...) Ele podia conter inclusive
algumas sementes encobertas do fato histórico – mas não era história. Como todo
mito, era atemporal” (FINLEY. 1989. p. 7) e trazia uma narrativa que falava de
questões universais, respondendo aos mais variados anseios e curiosidades
humanas e, entendendo o que Mircea Eliade nos acrescenta, o mito traz a
característica fundamental de uma revelação primordial, de um modelo exemplar.
Portanto, cientes de que os mitos dos quadrinhos sejam “ilusão”, e que sequer
possuem a pretensão mitológica de misturarem-se aos fatos históricos como
proposta de verdade, como Aquiles em Tróia, eles não deixam de falar
diretamente a todos nós, de serem universais e atemporais.
Entretanto,
mesmo sendo ilusão, o mito só fala daquilo que aconteceu, que acontece e que
nos é reconhecível:
É sempre, portanto, a narração de
uma "criação": descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou
a existir. O mito só fala daquilo que realmente aconteceu, daquilo que se
manifestou plenamente (...) O mito cosmológico é "verdadeiro" porque
a existência do mundo está aí para o provar; o mito da origem da morte é também
"verdadeiro" porque a mortalidade do homem prova-o, e assim por
diante (ELIADE. 1989. p. 13).
Portanto, o mito do
Batman é verdadeiro porque, evidentemente, crimes acontecem na cidade, porque
pais são assassinados, porque o sistema é corrupto e falho e porque,
eventualmente, vítimas desse tipo de cenário acabam tomando a justiça pelas
próprias mãos e procuram corrigi-las em busca, não apenas de satisfação
pessoal, mas procurando fazer o que consideram o certo: estou falando de
milícias que se formam para caçar bandidos, de civis que espancam e prendem elementos
que praticam furto ou assassinato e os acorrentam em postes, de pessoas que
procuram corrigir falhas no sistema e punir pessoas que, provavelmente, merecem
mas que não haviam sido devidamente corrigidas por ele. É isso que heróis como
Batman fazem, e muitas vezes são chamados de fascistas, da mesma forma como são
chamados os homens que cometem ações como essas no mundo real, fora das
histórias em quadrinhos.
Entre o que é verdade e
o que é verdadeiro existe sensível diferença. E apenas o que é verdadeiro pode
falar e tocar diretamente a nós, ouvintes, leitores. Mitos são verdadeiros. Ainda
sobre esta questão, história e mito misturam-se na antiguidade e os povos daquela
época eram enamorados por sua poesia, escolhendo-a como principal recurso
narrativo, em detrimento à outras formas de escrita. De acordo com Aristóteles,
a poesia era:
“(...) mais filosófica e séria do
que a história, pois aquela fala principalmente do universal e a história do
particular. Por ‘universal’ entendo que determinado indivíduo dirá ou fará
determinadas coisas segundo a verossimilhança ou a necessidade; esse é o
propósito da poesia, acrescentar os devidos nomes às suas personagens. Por
‘particular’ refiro-me ao que Alcebíades fez e pelo que passou” (apud FINLEY,
1989, p.3).
Na
antiguidade, a disciplina história não existia ou era reconhecida como é hoje.
Ao longo do seu texto, Finley aborda questões sobre as possíveis verdades
envolvendo as poesias épicas como a Odisseia, de Homero, ou até que ponto a
Guerra de Troia pode ter assumido todos aqueles contornos. O que nos importa
aqui, entretanto, não é buscar a verdade por trás dos feitos do herói mítico
Aquiles, nem mesmo cogitar a existência real de Bruce Wayne e sua luta contra o
crime, não se trata “de saber se essa poesia era ou não historicamente
confiável, mas sim entender a questão mais profunda da universalidade” (FINLEY,
1989, p.5), quer dizer, até que ponto essas narrativas podem falar a cada um de
nós indistinta e universalmente.
Sim, de fato, uma
característica dos mitos é justamente abstrair-se de um recorte temporal e poder
guardar seu significado ao longo das eras, de maneira que essas narrativas dos
heróis antigos eram entendidas como fatos que aconteceram muito tempo atrás,
numa data indefinida e, praticamente impossível de ser inserida numa cronologia
lógica pelos historiadores da época, mas que ganhava significado porque estava
constantemente presente e vívida.
Mas não vamos nos
demorar nisto, afinal não é nosso objetivo a distinção da verdade, o que nos
importa é saber da função universal do mito e que a era heroica da antiguidade
era costurada por esses personagens que falavam diretamente com seus
interlocutores por meio de suas ações bravas e nobres.
Este era o herói
antigo: um semideus capaz de atos sobre-humanos. Entretanto, talvez pela
própria apropriação histórica enquanto ciência que narra os fatos ao longo dos
séculos, subjugando a poesia épica como principal meio narrativo, os heróis
míticos foram relegados à sua posição fictícia[2] e
o conceito de herói tornou-se cada vez mais humano e hoje são atribuídos
àqueles “que vivem e trabalham à nossa volta todos os dias [que] incluem
bombeiros, policiais, médicos enfermeiros e professores” (LOEB, MORRIS, 2005,
p.25). Evidentemente, a profissão não faz o herói, mas a qualidade de seus atos
é o que o define, e são essas as mesmas qualidades que definiam os antigos: a
nobreza. E entre os atos nobres destaca-se o altruísmo, ou seja, ajudar sem
esperar nada em troca.
E aqui entra novamente
o termo “super-herói”. Porque Batman é um super-herói e não um “herói”? Ele não
é exatamente um herói como eram os da antiguidade, não se trata de um semideus,
nem tem as qualidades físicas do Superman. Mas o Batman também não é um herói
comum como os rotineiros do cotidiano de hoje. Para responder essa pergunta é
necessário entender que o prefixo “super” é justamente para elevar a qualidade
destes personagens, coloca-los em um patamar acima destes heróis comuns, como o
bombeiro ou a mãe-dona-de-casa. Mas, como disse antes, não é a simples
superlativação do termo. Explico: não é raro encontrarmos autores que situam os
super-heróis de hoje como os mitos modernos, porque, de fato, eles são:
As personagens dos comic strips
(bandas desenhadas) apresentam a versão moderna dos heróis mitológicos ou
folclóricos. Encarnam a tal ponto o ideal de uma grande parte da sociedade, que
eventuais correções ao seu comportamento ou, pior ainda, a sua morte, provocam
verdadeiras crises entre os leitores (...) Superman vive na Terra sob a modesta
aparência de um jornalista, Clark Kent; mostra-se tímido, apagado, dominado
pela colega Lois Lane. Esta camuflagem humilhante de um herói cujos poderes são
literalmente ilimitados retoma um tema mítico bem conhecido. Se aprofundarmos a
questão, o mito do Super-homem satisfaz as nostalgias secretas do homem moderno
que, sabendo-se condenado e limitado, sonha revelar-se um dia como uma
"personagem excepcional", um "herói" (ELIADE. 1989. p. 154).
Mircea Eliade é um
desses autores, assim como Humberto Eco, que pode ser citado entre os que
afirmam que os super-heróis são os mitos modernos. A citação, autoexplicativa,
exemplifica o caso do Superman. Mas estávamos tratando de porquê usar o prefixo
“super”, se os mitos antes eram tidos apenas como “herói”. A necessidade se justifica justamente para
qualificar lhes como capazes de fazer atos sobre humanos, é o termo necessário
que lhes devolve um poder superior como os antigos possuíam, é o retorno dos semideuses,
dos grandes feitos, do mítico sendo popularmente narrado através das histórias
em quadrinhos e do cinema, como antes fora feito pela poesia e pelo teatro,
porém, sem diminuir os heróis comuns. Os super-heróis são míticos e falam para
nós de forma universal, abordando os mais diversos e profundos desejos e
ambições humanas há quase um século.
Entretanto, você pode
afirmar que o Batman, como disse antes, não tem super-força, não é o Superman,
ele é um homem comum usando uma fantasia! É verdade, porém, os valorosos
grandes feitos de hoje em dia permanecem os mesmos de antigamente, ou seja,
Bruce Wayne pode não ter super força, mas é tão nobre e altruísta quanto
qualquer outro mítico herói. Talvez, o fato de ser mais vulnerável aos perigos
dos seus atos o torne ainda mais heroico que os demais.
Outra justificativa
para o termo “super-herói” que deve ser levado em consideração pode ser
encontrada dentro dos conceitos dos gêneros narrativos. “Super-herói” como um gênero
surgiu a partir de uma variação dos quadrinhos Pulps, que normalmente tratavam-se de aventuras de investigação, de
polícia contra bandido, muito populares na década de 1930, nos Estados Unidos.
O Superman, que originou o termo em 1938, e o Batman, criado no ano seguinte,
são personagens que lutavam contra o mau, assim como os policiais que impediam
assaltos à banco. O que os definiu como gênero dos outros quadrinhos da época
eram detalhes: no Superman, uma origem fantástica e extraterrestre que lhe
conferia superpoderes; em Batman, o uniforme e os meios para lutar[3],
seus “bat-trecos”.
Pode parecer bobo, mas
o simples uso de capa, máscara, de usar um uniforme com um símbolo que
represente sua luta, ou a preservação de sua identidade, tudo são elementos que
reforçam o conceito do super-herói e o diferenciam de outros heróis. A capa,
artigo em desuso tanto na sociedade de hoje quanto há décadas atrás, quando
esses personagens foram criados, lhes confere ares magnânimos, reforçando o
significado da mensagem que o personagem quer transmitir. A máscara esconde a
identidade do super-herói e isto está intrinsicamente ligado à sua luta
altruísta pelo bem maior sem buscar privilégios oriundos de seus atos. Quase
sempre, no uniforme está presente um símbolo, como o “S” do Superman, ou o raio
do Flash, ou a aranha do Homem-Aranha que reforça um poder, por vezes totêmico,
do elemento que o define e isso aproxima-o de uma interpretação mais mítica de
suas ações, pois o mito é repleto de símbolos.
Máscara, capa e símbolo
podem não estar presentes em todos os personagens. Não é uma regra inviolável. Não
é segredo, por exemplo, que a identidade do Homem de Ferro é Tony Stark ou que
o Homem Aranha não use capa. Entretanto, os elementos readaptam-se e procuram
criar certa unidade, afinal, Tony Stark não possui uma identidade secreta, mas
não se pode negar que o gerador Ark em seu peito simboliza sua genialidade
criativa e reafirma sua superioridade intelectual em relação aos homens comuns
e, mesmo possuindo suas fraquezas, como grande ego ou problemas com alcoolismo,
o Homem de Ferro não deixa de ser uma fonte de inspiração quando se avalia suas
atitudes.
No caso do Batman, a
máscara esconde sua identidade e a capa e o morcego no peito contribuem com a
aura teatral e toda a carga dramática que o personagem deseja passar. Mas não
vamos nos adiantar, tudo será melhor entendido quando nos debruçarmos sobre a
jornada do herói e na leitura da HQ Batman Ano Um.
Parte 2 – Jornada do
Herói
Antes de qualquer
abordagem de Batman Ano Um, faz-se necessário uma introdução ao poder do mito e
do que significa a jornada do herói, de que nos fala tão bem o autor Joseph
Campbell.
Os mitos e os heróis
são conceitos intimamente próximos, desde tempos imemoriais. Aquiles, Prometeu,
Ulisses e tantos outros protagonistas de grandes feitos da era heroica, todos
representam mitos. Joseph Campbell diz que o Herói de Mil Faces[4] “é,
em essência, um único gesto feito por muitas pessoas diferentes”[5],
quer dizer, de certa maneira, todos os heróis passam por um mesmo processo, agem
de maneira similar, mesmo protagonizando ações em eras e cenários diferentes. É
como se todos dividissem um mesmo tipo de arquétipo narrativo, nem por isso
suas histórias são menos dramáticas e envolventes, muito pelo contrário. Joseph
Campbell afirma que os mitos falam diretamente a língua universal “porque é
sobre isso que vale à pena escrever”. Diz ainda que o tema de todos os mitos é:
(...) a maturação do indivíduo, o
caminho gradual e pedagógico a seguir, desde a dependência até a vida adulta, a
maturidade e depois até a saída, e como fazer isso. Então, como se relacionar
com esta sociedade e como relacionar esta sociedade com o mundo da natureza e
do cosmos. É disso que falam todos os mitos (CAMPBELL, 1987).
E que caminho gradual
seria este? Estamos falando justamente da jornada do herói, onde o protagonista
precisa “abandonar uma condição, encontrar a fonte da vida e chegar a uma
condição diferente, mais rica ou mais madura” (CAMPBELL, 1987), em síntese, é
apenas isso. As histórias, as narrativas artísticas ou mesmo nossa vida
cotidiana pode ser escrita desta forma, em vários ciclos de jornadas diferentes,
o que também podem ser observadas em todos os mitos.
Mas em que consiste,
exatamente, esta jornada do herói? Para Campbell (1987) “existe uma certa
sequência de ações heroicas, típica, que pode ser detectada em histórias
provenientes de todas as partes do mundo, de vários períodos da história”. Trata-se
de uma linha narrativa que pode ser seguida à risca em todas as suas etapas, ou
não, mas que normalmente começa em determinado ponto comum, ordinário, onde o
herói (ou ainda, simplesmente, nosso provável protagonista) encontra-se vivendo
normalmente. A jornada pode ser dividida em 12 etapas:
1) mundo comum; 2) chamado à
aventura (incidente provocador); 3) recusa do chamado; 4) encontro com o
mentor; 5) travessia do primeiro limiar; 6) provas, aliados e inimigos; 7)
aproximação da caverna secreta; 8) provação central (ponto central, morte e
renascimento); 9) recompensa; 10) o caminho de volta; 11) ressurreição (clímax)
e 12) retorno com o elixir (desfecho) (VOGLER, p. 46).
Como estávamos
descrevendo, existe um “mudo comum”, em seguida, alguma coisa acontece que
interrompe este cenário e o personagem se vê diante de um dilema, de um
problema ou de um novo cenário, numa situação que incomoda aquilo que deveria
ser sua zona de conforto. O personagem encontra-se diante do chamamento para a
aventura. Ele pode recusá-la e viver conforme este novo cenário que se
apresentou, mas se fizer isto, não seria o nosso protagonista, muito menos
nosso herói, pois não aceitaria o convite para os desafios da aventura que irão
transformá-lo indefinidamente.
Quando o personagem aceita
o convite, ele parte para a aventura. Estre momento é muito marcante na
narrativa. Às vezes, a recusa faz parte faz parte da jornada, afinal, aceitar
mudar é difícil[6].
Para não nos alongarmos
tanto nesta questão, a jornada então significa o processo pelo qual o
protagonista passa ao longo da narrativa, enfrentando os problemas, os
monstros, os “dragões” (para Joseph Campbell “você tem seus medos, isso é matar
o dragão”), se sacrificando porque “o herói propriamente dito é alguém que deu
a sua vida por algo maior ou diferente dele mesmo” (CAMPBELL, 1987). Às vezes o
sacrifício leva o herói, literalmente, à morte, mas na maioria das vezes essa
morte é simbólica. O que acontece é que quando o herói sai de um estágio
inicial de luz e vai até a beirada da escuridão, onde encontra o monstro, ele
pode cair em fragmentos, ser derrotado, mas depois ele ressuscita (CAMPBELL,
1987). Essa ressureição também pode ser apenas simbólica e representa o retorno
do herói, que aprendeu com sua falha revelada quando enfrentara o monstro,
anteriormente.
Por vezes, existe a
figura de um mentor, um personagem que ensina ao herói onde ele estava errando
e o que precisa fazer, recebendo dele elementos que o ajudarão na jornada.
Esses elementos podem ser objetos, armas ou, simplesmente, ideias, uma maneira
diferente de ver as coisas. Infelizmente, você não recebe nada sem dar algo em
troca: “não há recompensa sem renúncia” (CAMPBELL, 1987) e é nesta renúncia
onde está o abandono daquilo que é essencial para se derrotar o monstro.
Quando nosso herói
derrota o monstro ele precisa voltar ao ponto de partida e viver um novo
cotidiano agora sob o ponto de vista alterado, modificado pelo que aprendeu na
aventura anterior e está preparado para uma nova jornada, um novo ciclo
inevitável pelos acontecimentos da vida que deve se iniciar a partir de um novo
chamamento, de outra aventura.
E é neste ciclo de 12
etapas que se estabelece praticamente todo tipo de narrativa, desde os mitos
pré-históricos que antecedem à escrita até a história e as artes. A Jornada,
entretanto, não é tão simples como parece. Narradores que conhecem bem o
caminho, por vezes, esforçam-se para burlá-lo[7] e
parecerem, assim, que escreveram uma história menos óbvia. Entretanto, esses estágios, quando bem
escritos, transparecem o frescor de uma nova história, não apenas porque pode
parecer inédita, mas importante porque fala ao leitor guardando aquilo que há de
mais importante numa história mítica: seu caráter universal e atemporal.
Joseph Campbell, nos
adverte, contudo, que “é preciso distinguir entre mitos que têm a ver com a
seriedade da vida, vivida em termos da ordem social ou natural, e simples
histórias, que lidam com alguns motivos semelhantes, mas se destinam apenas a
entreter” (1987. p.151). Muitas histórias do Batman não se preocupam com a
“seriedade da vida” e não passam de puro entretenimento. É esperado um tipo de
qualidade diferente de histórias quando se tem um personagem publicado
mensalmente durante décadas, quase um século. Felizmente, não é o que acontece
com Batman Ano Um, verdadeiramente, uma história que pode acrescentar algo
substancioso para a vida que não apenas simples entretenimento[8].
Parte 03: Batman Ano Um
A HQ começa com dois
personagens chegando à Gotham: Jim Gordon e Bruce Wayne, nesta sequência. É
curioso porque Gordon é tão ou mais protagonista nesta história que o próprio
Bruce e nós vamos nos estender melhor sobre isso mais adiante.
A princípio, os
personagens parecem estar em momentos distintos de suas jornadas pessoais:
Gordon foi transferido para Gotham e isso não aconteceu por vontade própria.
Bruce Wayne está voltando de uma viagem que durou mais de 10 anos ao redor do
mundo, viagem que decidiu fazer. Joseph Campbell nos diz que há dois tipos de
herói: 1º) aquele que acidentalmente cai na aventura e 2º) aquele que
intencionalmente procura aventurar-se na jornada. Numa primeira análise
poderíamos supor que Gordon e Bruce seriam exemplos desses dois tipos
diferentes de herói, mas vamos olhar com calma.
Podemos afirmar que
Gordon e Bruce são do primeiro tipo. O assassinato dos pais de Bruce foi o
chamamento para ele de sua aventura, entretanto, um crime deste tipo não é exatamente
um acidente, já que o criminoso sabia o que estava fazendo quando puxou o
gatinho naquela fatídica noite, no beco do crime. Porém, ele se torna um herói
acidental quando não teve escolha, foi, literalmente, uma vítima da situação
que o fez querer lutar contra aquele “monstro” que assassinou sua família. Joseph
Campbell, para ilustrar essa situação cita que, “por exemplo, quando você é convocado
para o exército, você não queria, mas aconteceu. E está num processo de
transformação. Passou por uma morte e uma ressurreição. Vestiu um uniforme e se
tornou outra criatura” (1987). Bruce não queria o crime, mas aconteceu e foi o
fato que o retirou de uma zona de conforto e o fez partir, de fato, para uma
jornada em busca de aperfeiçoamento que o transformaria profundamente, em corpo
e espírito, abandonando sua infância e iniciando sua jornada para tornar-se o
homem que viria a ser.
Quando Bruce Wayne
retorna para Gotham, aparentemente, está completando um ciclo que iniciou
quando decidiu deixar Gotham e começar uma jornada de treinamentos, testes,
mestres e preparação que duraram anos, dezoito, para ser preciso. Período que a
HQ apenas sugere que aconteceu, não mostra. Quando ele volta para sua mansão é
como se já tivesse voltado para um novo ponto de partida, mudado, transformado,
com uma nova perspectiva. Ele está em Gotham, preparado para o que quer fazer,
ou, pelo menos, aparentemente: “Eu não estou pronto. Tenho os meios, a
habilidade... Mas não o método. Não. Não é verdade. Eu tenho centenas de
métodos. Mas alguma coisa está faltando. Algo não está certo. Tenho de esperar.
Tenho de esperar” (MILLER, 2011. p.17). Então, Bruce Wayne precisa esperar por
algo novo que faz falta e este “algo” é justamente a prova de que o ciclo de
uma jornada maior ainda não foi concluído: ele precisa testar estas novas
habilidades, essas novas “recompensas”, ele precisa enfrentar e derrotar o
“monstro” de Gotham que matou seus pais. Só assim, a jornada que teve iniciou
com a morte de seus pais pode ser considerada completa.
Gordon também não foi
para Gotham tornar-se um herói naquela cidade por vontade própria. Foi
transferido contra sua vontade, porque cometeu algum erro[9] em
sua carreira como policial e sua transferência é quase como uma punição:
“Talvez seja isso que eu mereça... passar um tempo no inferno” (MILLER, 2011,
p. 12). Então ele está, literalmente, iniciando um novo ciclo, foi jogado nessa
aventura, nesse novo cenário para viver uma nova experiência e aprender com ela,
para o bem ou para o mau. Observem esse diálogo do tenente Gordon com o, então,
comissário de polícia de Gotham, Gillian B. Loeb:
− Bom, eu sei que cometi erros,
mas estou grato por esta chance de provar meu...
− Os erros que cometeu você
conseguiu esconder da imprensa, tenente. Isso e o que importa. Não é?
− Com uma coisa o senhor não vai
ter de se preocupar, comissário... a minha honestidade.
− Isso nem me passou pela cabeça.
(MILLER. 2011. p. 14)
Neste diálogo, o
roteirista sugere que o comissário está interessado em Gordon justamente porque
ele cometeu esses erros e os conseguiu esconder da imprensa. Antes disso, diz
ainda que “sua ficha mostra que você tem o que é necessário para trabalhar
conosco” (MILLER. 2011. p. 14). Gordon foi chamado para se tornar corrupto em
Gotham, uma cidade capaz de revelar o que tem de pior nas pessoas. Ele está no
início de uma nova jornada iniciada justamente por seu passado de erros. É um
personagem perfeito em busca de redenção, que quer uma chance naquele inferno
de cidade para provar seu valor.
É interessante quando
Gordon diz que merece estar no inferno. Gotham é o inferno. Uma cidade cheia de
tentações. É a descida até o precipício onde você encontra o monstro de que nos
fala Joseph Campbell. Gotham é um símbolo da decrepitude das cidades modernas. É
Sodoma e Gomorra e a corrupção que pode se manifestar em todos os níveis da
administração pública da cidade e mesmo do espírito humano. Gordon e Batman são
os heróis que habitam neste cenário e a cidade surge, assim, tão mítica quanto
eles, e, podendo ser entendida como um personagem, passa por um longo e
contínuo processo de transformação que só esses heróis podem se revelar como
mentores e indicar o caminho da redenção.
Joseph Campbell disse
que “os mitos e os sonhos vêm do mesmo lugar. Eles vêm de certas percepções que
precisam se expressar de uma forma simbólica” (1987). Gotham não é Nova Iorque
ou São Paulo, mas poderia ser. O que isso significa? Que Gotham não é um
cenário qualquer e que sua simbologia gótica e deturpada é um mito para a
cidade moderna: suja, feia e sem esperança.
Até aqui você já deve
ter percebido que Batman Ano Um não tem apenas uma jornada do herói: Bruce
Wayne e Jim Gordon sabem que precisam lidar com Gotham. Os dois personagens
passam por sua jornada, entretanto, eles são heróis ligeiramente diferentes em
seus objetivos. Bruce Wayne está iniciando uma batalha para, ao tempo em que se
torna um homem espiritualmente melhor, um homem altruísta e mascarado, ajuda a
melhorar Gotham. Tornando-se o Batman, ele pode se tornar um símbolo de luz
para essa cidade de trevas.
A aparente sutil
diferença é que Gordon trava esse embate internamente. Ele precisa provar para
si mesmo que é melhor que os erros que o jogaram naquele inferno de cidade.
Enquanto Bruce tem sua jornada que inicia dentro dele e irradia para fora, na
cidade, lutando contra os monstros e tornando-se um símbolo, Gordon recebe as
influências externas e se prova, internamente, buscando tornar-se um homem
melhor. Entretanto, a diferença é apenas aparente, porque Gordon, no instante
em que salva-se, salva também Gotham:
Mas, ao fazer isso, você salva o
mundo. Uma pessoa vitalista sempre traz uma influência vitalizadora, não tenha
dúvidas a respeito disso. O mundo sem espírito é uma terra devastada. As
pessoas têm a ilusão de salvar o mundo trocando as coisas ao redor, mudando as
regras, quem está no comando e assim por diante. Nada disso! Qualquer mundo é
um mundo válido se estiver vivo. A coisa a fazer é trazer vida a ele, e a única
maneira de fazer isso é descobrir, em você mesmo, onde está a vida e manter-se
vivo (CAMPBELL. 1987. P. 164).
Gordon,
da mesma forma que Bruce Wayne, torna-se um herói e um símbolo não só para a
cidade, mas para todos aqueles que conhecerem sua jornada: nós, leitores. A
história de Gordon em Batman Ano Um é justamente a luta de um homem tentando
manter seu espírito vivo e a principal maneira de fazer isso é mantendo valores
nobres firmes e acima das provações que enfrentará ao longo da história.
Inevitavelmente, isso não será fácil e é algo que mostraremos a seguir, mas
antes, é preciso alguns parágrafos sobre uma terceira personagem que também
passa por uma jornada em Batman Ano Um e que não se pode deixar de citar:
Selina Kyle, mais conhecida como Mulher Gato.
O
surgimento da Mulher Gato está intimamente ligado ao surgimento de Batman.
Vejamos: Quando Bruce Wayne retorna a Gotham e percebe que “algo está faltando”
(MILLER. 2011. p. 17), é justamente esta falta que o impele a procurar, a se
jogar na zona leste de Gotham, o inferno do inferno (MILLER. 2011. p.20). Ali,
um local onde a promiscuidade salta aos olhos, ele coloca seu treinamento à
teste: arruma um disfarce qualquer, para que as pessoas não reconheçam o
bilionário playboy Bruce Wayne e possa enfrentar o primeiro “monstro” de
Gotham: um cafetão que coloca uma criança na rua para si prostituir. Bruce
enfrenta a figura e o derrota facilmente, entretanto as coisas perdem o
controle e as próprias prostitutas começam a enfrenta-lo. Antes de toda essa
confusão, Selina Kyle, também uma prostituta, do alto de uma janela, observa
Gotham à sua frente e conversa com seu cliente, perguntando a ele: “Sabe porque
eu odeio tanto os homens, canalha? Nunca conheci um” (MILLER. 2011. p. 21).
Neste momento, ela percebe a movimentação abaixo, iniciada pela luta de Bruce
com o cafetão, e, no meio do tumulto, Bruce machuca Holly, a criança que havia
se oferecido para ele. Holly havia atacado Bruce com uma faca e, ao desarmá-la,
Bruce, desajeitamente, machuca o pulso dela. Este é o chamado para Selina. Ela
salta o prédio, dizendo: “Ninguém machuca a Holly” e percebemos que ela é sua
protegida. Selina luta contra Bruce. “Está tudo arruinado. Não tem desculpa.
Não me controlei” (MILLER. 2011. p. 23), reclama Bruce, maldizendo-se e a
situação só complica mais ainda com a chegada da polícia. Mas, antes de
continuarmos a jornada de Bruce, vamos nos concentrar um pouco mais em Selina
Kyle.
A
verdade é que a jornada da Selina nesta HQ não é bem trabalhada. Trata-se de
uma personagem secundária na trama, mas ela justifica sua participação, como
veremos a seguir. No capítulo 3 da história, Selina vê o Batman em ação pela
primeira vez, não apenas um Bruce Wayne desajeitado, mas, de fato, o Batman.
Ele precisava sobreviver estando encurralado no meio de um tiroteio e ainda
consegue salvar um inocente gatinho. De alguma forma, isso parece ter afetado
Selina, uma mulher apaixonada por esses animais. Em cena, infelizmente, mal
aprofundada adiante, ela resolve tirar Holy da vida de prostituição e espanca o
mesmo cafetão antes surrado por Bruce e decide dedicar-se a outra vida: a de
gatuna. Arruma uma fantasia e decide roubar dos ricos e criminosos[10].
De alguma maneira, Batman foi uma inspiração para ela e uma resposta para o que
deveria fazer. Batman foi o primeiro “homem” de verdade que ela conheceu e
admirou e isso a faz passar por um processo íntimo de mudança. É para isso que
servem os mitos, para nos inspirarmos ou mesmo nos antagonizarmos a eles e esta
é a constante história entre Batman e Mulher Gato: amantes e inimigos.
Após
esse breve parênteses que se fazia necessário, vamos voltar àquele teste de
Bruce Wayne no “inferno do inferno”, onde Selina o vê pela primeira vez e
quando ele machuca Holy. Tudo sai do controle e Bruce se entrega para os
policiais, corruptos que são, um deles atira em Bruce. “Pô... O cara tava
parado...”, diz um deles ao que o outro responde: “mas queria atacar” (MILLER.
2011. p. 24). Para preservar sua vida e sua identidade, Bruce não consegue
evitar de ser atingido por uma bala policial antes de ser preso e tem de causar
um acidente de trânsito para escapar da viatura que o estava conduzindo. Ainda
arruma tempo para salvar os policiais corruptos da morte eminente que se
aproximava pela previsível explosão do carro onde estavam os dois oficiais,
desacordados. “Fogo. Em segundos vai alcançar o tanque de gasolina (...) Esses
homens... na certa, tem família” (MILLER. 2011. p.25), pensa Bruce. Correndo o
risco de explodir junto com eles, Bruce salva seus algozes. “O herói se
sacrifica por algo, essa é a moralidade”, diz Campbell. Ele não os salva por si
próprios, mas decide salvá-los pela família que eles devem ter e pelo
sofrimento que esses terceiros poderiam ter. Essa é uma motivação muito nobre:
a família. Algo que Bruce perdeu para um criminoso qualquer.
Infelizmente,
salvar os policiais não foi o suficiente para manter sua autoestima. Bruce
fracassou naquele teste. Enfrentou o monstro e foi derrotado por ele. Podemos
dizer que esta é a oitava etapa da jornada: a provação central, morte e
renascimento. Ele se tornou Jonas na barriga da baleia:
A barriga é o lugar escuro onde
acontece a digestão e uma nova energia é criada. A história de Jonas na barriga
da baleia é um exemplo de tema mítico praticamente universal: o herói é
engolido por um peixe e volta, depois, transformado (...) É uma descida às
trevas. Psicologicamente, a baleia representa o poder de vida contido no
inconsciente. Metaforicamente, a água é o inconsciente, e a criatura na água é
a vida ou energia do inconsciente, que dominou a personalidade consciente e
precisa ser desempossada, superada e controlada.
No primeiro estágio dessa espécie
de aventura, o herói abandona o ambiente familiar, sobre o qual tem algum
controle, e chega a um limiar, a margem de um lago, ou do mar, digamos, onde um
monstro do abismo vem ao seu encontro. Aí há duas possibilidades. Numa história
do tipo daquela de Jonas, o herói é engolido e levado ao abismo, para depois
ressuscitar; é uma variante do tema da morte e ressurreição. A personalidade
consciente entra em contato com uma carga de energia inconsciente que ela não é
capaz de controlar, precisando então passar por toda uma série de provações e
revelações de uma jornada de terror no mar noturno, enquanto aprende a lidar
com esse poder sombrio, para finalmente emergir, rumo a uma nova vida (CAMPBELL.
1987. 161).
Bruce perdeu o
controle, foi baleado, voltou para sua mansão escura e silenciosa, afundou-se numa
poltrona qualquer. Desistiu do que vinha tentando fazer. Decidiu parar de lutar
e sangraria até a morte se não encontrasse o que estava faltando. Cansou de
esperar. É o herói no fundo do precipício, ou no estomago da baleia, derrotado,
simbolicamente morto... Até que um morcego estilhaça a janela da sala onde
estava e o fita do alto de um busto de Thomas Wayne. “Já vi essa criatura
antes... em algum lugar. Ela me aterrorizou quando criança... me aterrorizou.
Sim, pai. Eu me tornarei um morcego” (MILLER. 2011. p. 32). A personalidade
consciente de Bruce encontra sua carga de energia inconsciente e ele aprende a
lidar com esse poder sombrio da derrota e pode finalmente emergir rumo a uma
nova vida: nasce o Batman.
Então, Bruce decide
tornar-se um morcego e surge o Batman, com todas aquelas características
teatrais necessárias para infligir medo aos criminosos e a capa, a máscara e o
símbolo do morcego completam a mensagem. Essa necessidade de infligir medo em
seus adversários faz parte do combate, para permitir a ele ter o controle da
situação. Depois de vestir o uniforme pela primeira vez, Batman enfrenta um
pequeno grupo de ladrões e narra assim sua estreia: “O uniforme funciona melhor
do que eu esperava. Eles ficam estarrecidos e me dão todo o tempo do mundo. Eu
caio perto do que parece mais forte e rosno para ele” (MILLER. 2011. p.41). O
medo causa inércia no adversário. Batman torna-se ele próprio um “monstro”, um
“dragão” (em termos de Campbell), um problema a ser superado pelos bandidos que
enfrenta, e nessa batalha, torna-se um mito, algo ainda maior do que realmente
é, isso fica claro na página 43 da HQ, quando vemos ao fundo do tenente Gordon,
imagens de testemunhas que representam a descrição do personagem que a polícia
de Gotham começa a caçar: a primeira delas é um morcego gigante, aterrador, o
que é corroborado pela descrição de um policial corrupto, o detetive Flass:
“Daí, ouvi barulho de asa batendo. Quando olhei pro alto vi o monstro voando
pra cima da gente (...) O bicho devia ter uns dez metros e rosnava como... sei
lá! Nunca vi nada igual” (MILLER. 2011. p. 44). Outra passagem que demonstra
claramente o poder simbólico do terror que o personagem impele é quando invade
a casa e o jantar de um grupo de corruptos de Gotham. Batman preocupa-se de
organizar tudo, como se arrumando o cenário de um palco. Corta a energia,
ajusta a luz correta ligando um holofote, prepara uma nuvem de fumaça e ouvimos
um estrondoso estouro de granada que derruba uma parece. Batman entra em cena,
com sua silhueta recortada por uma luz delineadora, que tão cuidadosamente
havia preparado, escondido na penumbra da fumaça que havia jogado dentro da
sala, e nós quase podemos ouvir sua propositada voz grave e cavernosa enquanto
seu rosto é levemente preenchido pela luz das chamas do fogo sobre a mesa:
“Senhoras e senhores, vocês comeram bem. Comeram a riqueza de Gotham... seu
espírito. O banquete acabou. De hoje em diante, nenhum de vocês estará a salvo”
(MILLER. 2011. p. 48). Batman interrompe o jantar e ameaça todos eles. Promete
devolver o espírito de Gotham, pois ele havia sido devorado, destruído, e como
nos lembrou Campbell “o mundo sem espírito é uma terra devastada” e o que se
deve fazer é “trazer vida a ele, e a única maneira de fazer isso é descobrir,
em você mesmo, onde está a vida e manter-se vivo” (CAMPBELL. 1987. P. 164).
Com essa passagem, o
mito da origem de Batman está criado, ele completou um ciclo. Vamos tentar,
entretanto, numerar as etapas de acordo com a jornada do herói. 1) mundo comum:
seria sua vida de criança, antes da morte dos pais. 2) Chamado à aventura
(incidente provocador): é o assassinato dos pais. A aventura é decidir se
lutará ou não para mudar o mundo que permitiu tamanha barbárie. 3) Recusa do
chamado: a recusa não é mostrada em Batman Ano Um, entretanto, o luto pela
morte dos pais, o próprio trauma que isso causou e que nunca superado, poderia
ser entendido como uma recusa, uma negação da morte e, consequentemente, uma
recusa ao chamado. Entretanto, nem todas as etapas da jornada são fundamentais
para ela existir e a recusa é uma das que podem se fazer ausente. 4) O encontro
com o mentor é novamente uma etapa que não é mostrada em Batman Ano Um,
entretanto, outras HQs mostram que o próprio Alfred faz às vezes de mestre para
o Bruce, indicando-o o caminho e proferindo ensinamentos. A HQ sugere que Bruce
passou muitos anos preparando-se para se tornar o Batman, que só veio surgir 18
anos após a morte de seus pais e que durante este tempo ele treinou inúmeros estilos
de arte marcial. Inevitavelmente, estes mestres foram seus mentores. Outras
versões da sua origem, sugerem inclusive que Gordon foi este mentor de Bruce,
quando ele ainda era criança, após a morte dos pais, como vimos na série de TV
“Gotham” ou no primeiro filme do personagem dirigido por Christopher Nolan.
Acredito que a 5)
travessia do primeiro limiar também é uma etapa que encontra-se fora da HQ
analisada, sendo justamente a superação da primeira etapa de transformação do
personagem, é quando ele cruza o portal do mundo ordinário, de sua zona de
conforto, e começa a desbravar um mundo desconhecido. No caso de Bruce Wayne,
essa travessia dura praticamente os 18 anos que se seguem após a morte dos
pais, quando ele decide preparar-se para enfrentar os “monstros” de Gotham. Em
seguida, temos as primeiras 6) provas, aliados e inimigos, que é quando Bruce
testa pela primeira vez suas novas habilidades e começa a conhecer seus aliados
e inimigos: aqui é, basicamente, onde encontramos Bruce Wayne retornando a
Gotham. Ele reencontra Alfred, tem a ajuda do promotor Harvey Dent e conhece o
tenente Gordon, entre outros policiais, como o corrupto Flass. Ele precisa
compreender quem são seus aliados e inimigos.
Aparentemente, as
etapas não aparecem em uma sequência lógica ao lermos Batman Ano Um, isso
porque ele só reconhece seus aliados depois que já transformou-se em Batman.
Quer dizer, a 7) aproximação da caverna é justamente quando Bruce decide ir ao
“inferno do inferno”, à zona leste de Gotham, quando perde todo o controle.
Joseph Campbell disse que é na “caverna em que você tem medo de entrar onde está
o tesouro que você procura”, quer dizer, é na caverna onde está o monstro, e
apenas ao derrota-lo você terá sua recompensa e, na história em questão,
inicialmente, é um cafetão que prostitui, inclusive, crianças.
A etapa 8) provação
central é aquela quando o personagem morre e renasce, a qual já nos debruçamos
antes e sua 9) recompensa é justamente encontrar o que estava buscando: o
símbolo do morcego que completaria a figura mitológica que iniciou a construir
18 anos antes; 10) o caminho de volta, às vezes é uma etapa que nem é mostrada,
e também não é difícil deduzir do que se trata: é quando o herói decide
retornar ao ponto de origem, mas transformado. Em Batman Ano Um, é quando Bruce
já se estabeleceu como herói e seu mundo comum já é combater o crime,
diariamente. A 11) ressurreição (clímax) é um segundo ponto de tensão para a
narrativa, onde o herói enfrenta a morte novamente, desta vez utilizando todos
os conhecimentos adquiridos e em nossa história avaliada é quando,
curiosamente, Bruce Wayne e não o Batman, precisa salvar o filho do tenente
Gordon. Nas últimas páginas da HQ, Bruce Wayne é baleado pelo próprio Gordon,
que não sabia se tratar de Bruce, pois estava usando um capacete normal ao
aparecer numa moto. Gordon atinge-o pensando que se tratava de um dos
sequestradores. Nesta sequência, Bruce corre, escala prédios, salta sobre
carros em movimentos e pula de cima de uma ponte, para agarrar o bebê de Gordon
que encontraria a morte se não fosse sua intervenção.
O 12) retorno com o
elixir, ou o desfecho, é quando Bruce Wayne, escondido pela penumbra da luz de
um dia que vai desaparecendo e pela lama do leito do rio, logo após saltar para
salvar a filha de Gordon, encontra-se frente à frente com o tenente de polícia
que o estava caçando antes, pois Batman era um vigilante fora da lei que
utilizava seus próprios meios para enfrentar o crime. O desfecho é justamente
aquilo que fica subentendido, a “vista grossa” que Gordon faz para Bruce Wayne
e diz: “Sabe... Eu sou praticamente cego sem óculos. Estou ouvindo sirenes.
Melhor você ir” (MILLER. 2011. p. 105). Quer dizer, Jim Gordon, sabe que aquele
é o homem que veste-se de Batman, o “criminoso” que ele e a polícia estavam
caçando, mas por uma questão moral que paira acima da lei, Gordon decide que
ele deve partir o quanto antes. A polícia aceita o herói fora da lei. E não
apenas isso, na página seguinte, quando, semanas depois e do alto de um prédio,
Gordon pensa: “Alguém ameaçou envenenar o reservatório de Gotham. O nome do
louco é Coringa. Logo vai chegar aqui um amigo que pode me ajudar”. Batman
torna-se um elixir para Gotham, que pode lutar pelo seu espírito, lhe devolver
esperança e Gordon é parte fundamental nesta luta, ambos se ajudam mutualmente.
Parte 04: Outra jornada
de Jim Gordon
Mas, como já havia
mencionado antes, Batman Ano Um não possui apenas a jornada de Bruce Wayne, Gordon
também é um personagem que passa por grandes transformações e precisa enfrentar
pelo menos dois grandes “monstros”. É importante não deixarmos isso em branco.
Pouco atrás, citamos
Campbell falando sobre dois resultados que podem ocorrer quando o herói está na
oitava etapa de sua jornada, enfrentando o “monstro”. A primeira opção é a que
acontece com Bruce Wayne e o que descremos antes: a derrota e a morte seguida
da ressureição.
Outra possibilidade é o herói, ao
defrontar-se com o poder das trevas, vencê-lo e matá-lo, como Siegfried e São
Jorge fizeram quando enfrentaram o dragão. Mas, como Siegfried aprendeu, é
preciso provar o sangue do dragão para incorporar alguma coisa do seu poder.
Quando matou o dragão e provou do
seu sangue, Siegfried ouviu a música da natureza. Ele transcendeu sua
humanidade e uniu-se novamente aos poderes da natureza, que são os poderes da
vida, dos quais somos afastados por nossas mentes (CAMPBELL. 1987. 161).
É
o que acontece com Jim Gordon: policial de Chicago que cometeu erros e foi
punido com sua ida para Gotham, o tenente precisa provar seu valor, diariamente
sob as provações de ter de conviver com policiais corruptos como Flass ou o
próprio comissário Gillian B. Loeb. Percebendo que o
tenente não se dobraria à corrupção dos colegas de trabalho, Flass e Loeb
decidem quebrar Gordon, amedrontando-o ao ameaçar sua mulher e o bebê que ela
esperava. Pouco antes disso, Gordon é pego de surpresa e espancado por homens
encapuzados. Neste primeiro confronto, ele é pego desprevenido e derrotado.
Antes de irem embora, Gordon escuta a risada familiar de Flass. Naquela mesma
noite de transformação, Gordon decidiu enfrentar o “monstro” com o qual estava
obrigado a conviver. O que vemos a seguir é a continuação daquela luta. Gordon espreita a casa dos comparsas de Flass
durante a madrugada e aguarda sua saída, seguindo-o de carro. Provoca um
acidente. Flass sai de seu veículo e recomeçam a luta. Flass é o “monstro”, entretanto,
derrotado, é também um “mentor”. “Obrigado, Flass. Você me mostrou o que é
preciso pra ser policial em Gotham City”, pensa Gordon, tal qual Siegfried,
provando o sangue do dragão e incorporando alguma coisa do seu poder. Essa
“coisa” é justamente perceber que é preciso, às vezes, correr à margem da lei e
tomar à justiça pelas próprias mãos, já que a própria lei, ou o sistema que é
sustentado por ela, é corrupta e falha. Gordon atinge o mesmo nível de
percepção de Bruce Wayne e estava agora preparado para a futura aliança que
firmaria com Batman.
Mas
Gordon passa por uma segunda jornada pessoal em Batman Ano Um. Sua mulher,
Bárbara está grávida. “Como deixei isso acontecer? Como pude ser tão
irresponsável? Permitir o nascimento de um inocente numa cidade sem esperança?”
(MILLER. 2011, p. 40), pensa Gordon. Diante dessa situação, vivendo numa cidade
estranha, fazendo um trabalho que odeia, ele não pode parar. Entretanto, Batman
surge e as coisas se complicam. Ele fica cada vez menos em casa, cada vez menos
dividindo seu tempo com sua esposa, então surge a detetive Essen, uma mulher inteligente
e bonita com quem trabalha diariamente e que torna seu cotidiano menos
infernal. Ela está sempre presente. “Posso sentir o batom dela no cigarro”,
pensa Gordon. Ambos acabam se entregando. Viram amantes. “Outra briga. Bárbara
e eu temos brigado demais. Ela me diz que ando muito tempo ausente (...) Estava
tomando café com Sarah... Meu Deus! Estou chamando Essen de Sarah. Está tudo
errado! E Bárbara está certa como sempre” (MILLER. 2011. p.79).
Gordon
chega ao fundo do poço, termina com Essen, faz o certo, o que deveria fazer,
mas estava apaixonado e encontra-se com ela mais uma vez antes dela pedir
transferência e deixar sua vida. Entretanto, a maior provação ainda precisa ser
enfrentada: a verdade. Os policiais corruptos descobrem o caso de Gordon com
Essen e ameaçam destruir seu casamento. Antes que isso pudesse acontecer, ele
precisa falar com ela. Gordon enfrenta seu medo, revelando o segredo do caso
que tivera. Foi homem o bastante para isso. Quando ligam para Bárbara, ela diz:
“Sim, eu já sei sobre a sargento Essen. Por favor, não me incomode mais”.
Gordon escuta a triste mulher falando ao telefone, do fundo de um quarto
escuro. Este é o momento onde a verdade é revelada e nada pode os ferir mais do
que já estão feridos e a reconstrução de suas vidas reinicia. Gordon torna-se
um herói, o homem que fez o que era preciso para preservar seu casamento,
tornou-se um modelo de nobreza, ainda que cheio de rachaduras. Mas Barbara, ela
sim, foi mais forte que tudo isso.
O
bebê nasce e temos a sequência final que citamos anteriormente, quando o
sequestram. Bruce aparece, desmascarado mas escondido nas sombras. Tudo é
resolvido. Nada mais pode machucar Gordon e sua família. Tem sua recompensa e
ainda ganha um amigo no combate ao crime de Gotham City, uma esperança para
salvar o espírito daquela cidade imunda.
[1]
Sempre que me referir a obra Batman Ano Um daqui pra frente, utilizarei como
referência o autor dos roteiros Frank Miller por uma questão prática. Não
pretendo diminuir a importância do desenhista David Mazzucchelli, que também
figura como autor da obra, apenas vou limitar minha discussão em torno de um
aspecto e não de outro.
[2]
Vale lembrar, como aponta Roger Chartier, que o poder da representação fictícia
assegura seu parentesco com o relato histórico a partir do princípio da
verossimilhança.
[3] É
importante lembrar que mesmo antes dos super-heróis criados a partir de 1938,
haviam heróis semelhantes a eles, como o Zorro, criado em 1919 pelo escritor
norte-americano Johnston McCulley, o Flash Gordon, em 1934 por Alex Raymond, o
Fantasma e o Mandrake, em 1936 e 1934, respectivamente, ambos criados por Lee
Falk. Zorro, em particular, serviu de inspiração para Bob Kane e Bill Finger
criarem seu Batman. Falaremos mais sobre essa inspiração no decorrer deste
texto.
[4]
Título do livro deste autor que aborda a Jornada do Herói.
[5]
Algumas citações de Joseph Campbell neste texto foram tiradas da entrevista
cedida por ele a Bill Moyers no especial para tv de apenas 50 minutos chamado
“O Poder do Mito” e é facilmente encontrado na internet. Recomendo que os curiosos
assistam na íntegra.
[6] Lembram
de Bilbo Bolseiro gritado que está partindo para uma aventura e de como foi
difícil para os anões conseguirem persuadi-lo para participar da viagem, em O
Hobbit? É exatamente isso!
[7]
Para exemplificar, sugiro assistir ao filme Adaptação, interpretado por Nicolas
Cage, que conta a história de um dramático escritor que sofre em busca da
criação de um roteiro original para cinema.
[8]
Sem querer desmerecer a importância do puro entretenimento para a vida.
[9]
O erro de Gordon que causou sua transferência para Gotham não é explicado na
HQ. Fica apenas sugerido que está arrependido e pretende provar seu valor, tentando
ser um policial correto em Gotham.
[10]
Curiosamente, existe um personagem chamado Romano, um bandido que é atacado por
Batman e que tem seu carro roubado por ele e atirado no cais do porto. Romano
grita, chamando Batman de Robin Hood. Talvez esse personagem que rouba dos
ricos tenha sido uma inspiração para o Batman, talvez tenha, indiretamente,
inspirado a própria Mulher Gato. Outro fato curioso é que Robin Hood não é o
primeiro personagem mítico citado nesta origem do Batman: é notório o
conhecimento de que os pais de Wayne, antes de serem assassinados, estavam
assistindo a um filme do “Zorro”. Diogo De La Vega, um homem rico que usa de
seus artifícios para lutar contra a injustiça, que possui uma mansão cheia de
passagens secretas e se mascara para proteger sua identidade: não dá para negar
as semelhanças. Mitos que influenciam mito.