quarta-feira, 24 de outubro de 2012
quarta-feira, 17 de outubro de 2012
Por uma nova velha Praça Pedro II: a que custo?
Por Bernardo Aurélio
Teresina/2008
Resumo:
A praça Pedro II já passou por muitas intervenções que sempre
alteraram sua estrutura física. Desde sua criação as mais
significativas foram as da década de 50, de 70 e de 90. A primeira
contribuiu para reforçar a imagem que ela já possuía, onde foram
plantadas árvores e colocados bancos. A segunda mudou completamente
seu visual, destruindo sua concepção original. A terceira buscou
corrigir a intervenção anterior, procurando reconstruir a antiga
praça Pedro II. As duas últimas grandes intervenções, que
buscavam sempre uma melhoria à cidade, acabaram apagando décadas de
memórias individuais e coletivas. Ao longo desses anos, quem mais
perdeu foi a memória da própria cidade, que busca,
desesperadamente, encontrar sua identidade desconstruída nos
patrimônios arquitetônicos da cidade.
Palavras
chave: lugares de memória, história, patrimônio, identidade e
poder.
Lembro-me muito pouco de como era a Praça Pedro II antes da última
reforma. Na verdade, sequer recordo ao certo quando foi que fizeram
isso. Sei que foi no mandato do Governador Mão Santa, no final da
década de 90. Mas tudo sobre o que pretendo discorrer aqui trata
exatamente de memória. Do que me lembro? Lembro que quando cheguei a
Teresina para terminar os estudos, vindo de Piripiri, uma coisa me
fascinou na Pedro II. E não foi o Cine Rex em sua decadência
majestosa nem o imponente prédio do Theatro 4 de Setembro, muito
menos o Centro de Artesanato do outro lado. O que me fascinou na
Pedro II era o sebo do Dentinho: uma mesa velha e suja, enferrujada,
que ficava próximo ali, entre o Rex e a drogaria num canto da praça.
Era uma mesa enorme que me levava várias vezes ao centro para
comprar e trocar revistas em quadrinhos antigas.
Lembro-me das sombras carinhosas das árvores que suavizava os
vários minutos na fila esperando para comprar vale transporte
estudantil que ficava à venda num cubículo de ferro azul. Ou era
amarelo? Lembro-me que ficavam dois vendedores ali, aliviando o calor
com um pequeno ventilador amarrado num canto. Lembro-me de um
chafariz de concreto azul que parecia nunca funcionar e vagamente me
vem à memória incerta um pequeno corredor de água com pequenos e
tristes peixes que se escondiam no lodo das paredes. Havia um
chafariz e peixes? Não é nada fantástico, mas é minha memória,
ou o que restou dela...
A Pedro II daqueles dias me parecia agradável e apenas descuidada. Mas a solução para aquele descuido era, na cabeça de alguns (ou da maioria), a mais drástica de todas: reconstrução!
Aquela praça moribunda deveria agora respeitar mais o ambiente onde ela estava, procurar um equilíbrio harmônico com a arquitetura a seu redor. A praça deveria voltar a ser como era a uns cinqüenta anos atrás, uma época que a maioria das pessoas que moram hoje em Teresina se lembram pouco ou nunca viveram. A questão aqui trata de tentar dar valores para as memórias. O que é mais importante para Teresina: preservar ou reconstruir a memória? A troco de quê? Para quem?
A praça tem uma história. As pessoas que viveram ou vivem ao redor
dela narram os fatos da maneira que lhes vem à memória. Esse narrar
sobre algo que aparentemente é tão impessoal, como uma construção
pública, fornece à praça o que chamamos de lugar de memória.
Este sentimento está repleto de sensações que nos sensibilizam à
possibilidade de acreditar, com mais verdade, que uma obra como
aquela pode ser entendida como patrimônio íntimo de algo ou de
alguém, acima dos interesses das autoridades e dos governos que se
sucedem.
São lugares, com efeito, nos
três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional,
simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de
aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é
lugar de memória se a imaginação o investe de uma áurea
simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de
aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só
entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de
silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação
simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade
temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada de
lembrança (NORA. 1981).
Pierre Nora nos informa deste mundo onde podemos nos reconhecer
através do tempo e do espaço. Pode ser que comprar vales estudantis
ou revistas em quadrinhos em um sebo não sejam grandes fatos
históricos ou patrimônios que devam ser preservados, mas estavam
revestidos de um ritual cotidiano que, muito provavelmente, outras
pessoas além de mim experimentavam. Dessa forma esse lugar de
memória torna-se um lugar comum também, torna-se uma memória
coletiva.
Permita-me utilizar, a partir de agora, uma longa citação na íntegra, cedida pelo arquivo da Fundação Cultural do Estado – FUNDAC, que me possibilitará ir além da memória. Um pequeno histórico da Pedro II, elaborado junto à exposição fotográfica por ocasião da reinauguração da praça:
A atual a atual Praça Pedro II,
que nasceu como Praça João Pessoa e foi rebatizada, sucessivamente,
com os nomes de Independência e Aquidabã, desde cedo demonstrou sua
vocação para centro artístico e cultural, quando se instalou o
teatro Concórdia nas meias águas do prédio do Quartel de Polícia,
em 1879. Essa tendência é confirmada pela construção do Theatro 4
de Setembro, em 1894; do Clube dos Diários, em 1927; e do Cine Rex,
em 1939. Todas essas obras estão localizadas no perímetro da praça
ou na sua vizinhança imediata.
Em 1936, um pouco antes do
início da construção do Cine Rex, quando dominava entre as
construções da época o estilo Art Decó, foi transformada por lei
em Praça Pedro II, ao tempo em que sofre uma reforma para a
implantação de um projeto paisagístico, cujas intervenções
arquitetônicas e o mobiliário são representantes desse estilo,
passando a se constituir na área principal de lazer da cidade. Entre
os serviços previstos pelo projeto destacam-se como identificadores
da obra realizada: a construção de um coreto, da escadaria de
acesso à parte alta, do revestimento dos pisos, do calçamento da
rua diagonal, da balaustrada de proteção entre os dois níveis da
praça, da fonte luminosa; a instalação de sistema de iluminação
com distribuição de postes por toda a área e de cinqüenta e seis
bancos de concreto; a transferência e instalação da estátua do
imperador, antes colocada na Praça João Luiz Ferreira; o plantio de
41 fícus.
Nova reforma sofrida no final da
década de 50 introduz algumas novidades. A mais marcante, sem
dúvida, e bastante documentada, consiste no pitoresco lago cortado
por uma imitação de tronco caído, construído em concreto, que se
transforma no cenário preferido dos fotógrafos para a confecção
de retratos dos teresinenses. É provável que seja também dessa
época uma representação do globo terrestre, construída em
estrutura de metal, bastante referenciada por pessoas que vivenciaram
os passeios na praça durante os anos 50 e 60. No entanto, essas
intervenções preservam as principais características da praça até
a década de 70, quando a última grande intervenção, de caráter
renovador, descaracteriza totalmente a proposta paisagística
anterior, inaugurada quatro décadas atrás, bem como os acréscimos
introduzidos com o decorrer do tempo (FIGUEIREDO. 1999).
Quando conheci Teresina, a minha praça Pedro II era essa, fruto da
gestão dos anos 70, governo Alberto Silva. Não cabe a mim julgar a
harmonia arquitetônica (ou a falta dela) da praça Pedro II em seu
entorno, mas o fato é que, por quase trinta anos, a nova praça
Pedro II (esta que eu conheci) viveu no cotidiano das pessoas durante
as décadas de 70, 80 e 90. Cabe a pessoas como Diva Figueiredo, hoje
Arquiteta e Diretora da 1ª SubRegional do IPHAN, questionar a praça
quanto à sua “proposta paisagística anterior” descaracterizada.
Quanto a mim, um professor de história, tento lidar de forma
particular com a memória. Defendo a minha memória e a praça com a
qual me identificava ou conheci inicialmente.
Provavelmente, convergimos, Diva e eu, à ideia de preservação material e imaterial dos patrimônios urbanos de Teresina. Parece-me que a questão é que esta “grande intervenção” nos anos 70 nunca deveria ter acontecido, mas se ela aconteceu, bem ou mal, quase trinta anos depois de realizada, ela deveria estar assimilada pela população de Teresina, pelas crianças que cresceram indo assistir às sessões dos filmes como os dos Trapalhões no Cine Rex. Para muitas pessoas aquela nova Pedro II era toda a referência que tinham da praça, e para outros era o que restara, por que “no meio de um terreno devastado, após uma catástrofe, começamos a organizar um espaço de sobrevivência e a reinventar ali, do nada, uma nova identidade” (JORGE. 2000). Diva prossegue, na continuação daquele mesmo texto citado anteriormente:
Em
30 de novembro de 1998, a execução de um novo projeto resgata esse
seu antigo desenho e os elementos arquitetônicos mais significativos
da década de 30. Assim, cumpre-se mais uma etapa do projeto de
recuperação do Sítio Histórico da Praça Pedro II, iniciado um
pouco antes, em 21
de novembro de
1996, com a obra de restauração do Clube dos Diários e da sua
integração ao Theatro 4 de Setembro, reformado e inaugurado, por
sua vez, em 26 de
abril de 1999.
A realização desse conjunto de obras, realizada ora pelo Governo do Estado, ora pela Sociedade de Amigos do Theatro 4 de Setembro, com o apoio da Fundação Estadual de Cultura e do Desporto do Piauí – FUNDEC, é uma realidade. Ela se tornou possível graças ao financiamento direto do Ministério da Cultura, através de recursos do Tesouro, a recursos alocados pelo Governo do Estado, bem como ao patrocínio da Empresa Brasileira de Telecomunicações – EMBRATEL, através do programa de financiamento da cultura - MECENATO – também do MINC.
A Praça Pedro II, reconstituída, desempenha um papel especial no contexto urbano do centro de Teresina: o caráter exemplar na consecução do objetivo maior do projeto de revitalizar toda a sua vizinhança, destacando a vocação natural da área para o desenvolvimento de atividades ligadas às artes, ao lazer e ao turismo. Para inaugurá-la, a presente exposição fotográfica foi organizada a partir de fotos inicialmente coligidas como fonte de informação para a reconstituição do antigo desenho. A qualidade e a quantidade do material recolhido entre os cidadãos teresinenses e as instituições públicas locais sugeriu a organização da presente mostra.
Os organizadores agradecem a estas pessoas que, gentilmente, cederam suas fotos de família e às instituições que facilitaram a reprodução de seus acervos fotográficos, verdadeiros responsáveis pelo resgate desta pequena parte da história de Teresina e de valores simbólicos, nos quais grupos da população ainda se reconhecem (FIGUEIREDO. 1999).
Como pudemos ler no texto da Diva, com o objetivo de “revitalizar toda a sua vizinhança, destacando a vocação natural da área para o desenvolvimento de atividades ligadas às artes, ao lazer e ao turismo”, no final dos anos 90 surge a proposta de reconstruir a Pedro II baseada no modelo que ela havia sido. Para isso, retoma-se o projeto original, buscam-se referências fotográficas e destroem completamente o que era a nova Pedro II, substituindo agora por uma nova “velha” praça. Do ponto de vista artístico, confesso que me agrada a harmonia da coisa. Do ponto de vista histórico, trabalhando com memória, não me foge o julgamento de que corremos ao mesmo erro, de novo.
A nova “velha” praça Pedro II, transporta o teresinense, principalmente a estes que não a conheceram na década de 1960, a um passado e até a um clima romântico que o estilo neo-clássico, ou neo-gótico, Art Decó, que existe naquele entorno, evoca. É o poder do patrimônio.
O patrimônio assim transformado
em monumento passou a ser considerado um mediador entre passado e
presente, uma âncora capaz de dar uma sensação de continuidade em
relação a um passado nacional, de ser um referencial capaz de
permitir a identificação com uma nação (BARRETTO. 2000).
Infelizmente, para pessoas como eu, neste caso da Praça Pedro II ou
noutros semelhantes (que desconheço), esta ancora está suspensa no
nada. A continuidade temporal foi varrida quando o espaço foi tão
gravemente afetado que é difícil enxergar reminiscências. Mas
reminiscências existem, porque o registro é cruel oferecendo
subsídios para questionar ideologias que tentaram justificar uma
operação tão delicada na aparência da cidade: a atual Praça
Pedro II não passa de um falso velho, de uma tentativa de resgate,
de conserto histórico, quando, sabe-se muito bem, que o passado pode
ser consultado, mas nunca, efetivamente, revivido ou reparado. Por
mais perfeita que esta reconstrução pudesse ter sido, ainda
trata-se de um totem idealizado que macula a memória de Teresina. É
muito simples: reconstruir não é restaurar. É possível
reconstruir uma memória? Do ponto de vista prático, afirmo que não.
Mas do ponto de vista ético (ou da falta dela), digo que é possível
sugerir uma falsa memória. Hoje, se construirmos prédios com
características antigas eles nos remeteriam a tempos antigos
imaginários. Destruir uma praça para depois reconstruir uma outra
praça como ela deveria ter sido antes daquela que nós destruímos,
nos oferece uma falsa memória que a preservação do patrimônio e a
própria História não deveriam permitir.
Não é necessário um olhar profissional para perceber que falta hoje na Pedro II o lago (Imagem 01) que a Diva citou que havia na praça e que era requisitado pelos fotógrafos como o preferido cenário da capital. Ou a falta de um “globo terrestre, construída em estrutura de metal, bastante referenciada (...) durante os anos 50 e 60”. Mas tudo bem, até aí, um pouco mais de intenções políticas com uma pitada bem nutrida de verbas poderão nos trazer de volta esta memória perdida.
Imagem 01. Lago da Praça Pedro II, com a imagem frontal
da fachada do Prédio que hoje é a Central de Artesanato. Fotografia
feita provavelmente da vista do Theatro 4 de Setembro. Acervo público
da Fundação Cultural do Piauí - FUNDAC
Observando esta imagem, percebe-se ainda outro ponto que falta à
reconstrução. Trata-se da decoração na calçada em forma de
“cruz”. Já que estamos falando destes detalhes, acredito que
cabe à discussão abordar outros pontos que observei. Atentem para
estas duas imagens (02 e 03):
Imagens 03
(Arquivo pessoal)
Da primeira imagem deduz-se (já que a foto não estava datada no arquivo digital encontrado) tratar da década de cinqüenta pelas vestes das meninas. A segunda imagem foi retirada por mim, em setembro de 2008, por ocasião deste artigo. É nítida a diferença de cuidado ao redor da estátua do Imperador Pedro II. Antes da intervenção da década de 70 a praça tinha um jardim diferente onde é possível até se ler “Pedro II” recortado no gramado. A própria base do busto é trabalhada e, aparentemente, mais bonita.
Imagem
04: Vista da Praça Pedro II, provavelmente retirada da fachada da
Central de Artesanato. Acervo da FUNDAC.
A imagem quatro fornece-nos informações muito úteis. Primeiro o próprio paisagismo da Praça, que é completamente diferente da atual, com praças mais e altas e folhosas Perceba que há canteiros triangulares e circulares ao redor dos postes de iluminação. A praça parecia mais verde de gramados e também pequenos arbustos. Diva Figueiredo informa-nos que em 1936 a praça recebe cinqüenta e seis bancos de concreto. Hoje contei apenas 30 e um deles estava depredado (imagem 05).
Imagem 05: Bancos depredados da
Praça Pedro II. Acervo pessoal.
Ainda citando a imagem 04, compare-a com estas fotos (imagem 06 e
07):
Imagem
07: Detalhe do coreto da praça Pedro II. Depredação de um dos
postes de iluminação. Destruição da memória. Acervo pessoal.
Além do óbvio descuido, que não é a principal questão do
presente artigo, o coreto da praça Pedro II não possui os três
degraus de acesso que deveria ter, quando se propõe reconstruir sua
memória. Importante lembrar que o descuido e a depredação da praça
também destroem a materialidade da memória contemporânea que
necessita de preservação constante.
Perceba que no canto direto da imagem 04 há um homem vestido de branco caminhando próximo a uma fileira de pequenas pedras. Trata-se de um segundo lago. O primeiro era aquele que vimos na imagem 01, em frente ao Theatro 4 de Setembro, que na imagem 04 é possível ser visto sua fachada no canto esquerdo da imagem 04. É possível observarmos o lago que Diva cita, aquele com um tronco que servia de cenário preferido para os fotógrafos de Teresina, na próxima foto (imagem 08).
Imagem 08: outro lago na praça Pedro II. Ao fundo, coreto e imagem lateral da fachada da Central de Artesanato.
A memória não pertence às grandes obras. Como já citamos, a
memória é seletiva, peneirada pelas próprias particularidades de
cada vivência. Entretanto, forças políticas e/ou outras ideologias
interferem diretamente nas memórias individuais ou coletivas.
Uma das advertências da
convenção de 1972 foi estar o patrimônio cultural cada vez mais
ameaçado de destruição, tanto pela deterioração normal,
decorrente de fatores naturais, como por mudanças nas condições
econômicas e sociais, que agravam a situação (...) Entre outros
fatores estão a (...) falta de reparações ou reparações
malfeitas, e o vandalismo.
Para proteger o patrimônio
dessas ameaças, são necessárias políticas de preservação. Essas
políticas não são neutras, espalham a ideologia de quem fazem as
leis. Determinar o que é digno de preservação é uma decisão
político-ideológica que reflete valores e opiniões sobre quais são
os símbolos que devem permanecer (...) Se há um patrimônio
reconhecido pelos vencedores há, ou houve, um patrimônio dos
vencidos. Quem zela por eles? (BARRETTO. 2000).
Barretto é cruel na pergunta: quem zela pelo patrimônio dos
vencidos? E, por ocasião da Praça Pedro II, os nomes que já a
batizaram são patrimônios que definem ideologias vencidas e que
mereceriam até serem mais profundamente estudados como um exemplo da
perda da memória e de como, de tempos em tempos, alguém precisa
reescrevê-la.
A princípio a praça era João Pessoa, depois Independência, seguida de Aquidabã e, por fim, Pedro II, rebatizada por lei em 1936 e que ninguém, desde então, teve intenção de mudar novamente. Nomes podem ser trocados facilmente, entretanto, para estruturas físicas, pesadas e caras, é bastante diferente. O fato é que existiram e existem grupos de pessoas com interesses e que determinaram o que era digno de preservação ou o que não deveria permanecer.
No lugar do caráter espontâneo
e natural, ressaltam-se os empreendimentos deliberados de
reconstrução empreendidos pela memória que responde por via de
regra a demandas e interesses políticos precisos (...) O que é aqui
colocado em primeiríssimo plano é, portanto, a relação entre
memória e (contra) poder, memória e política.
A memória é ativada visando,
de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente).
Retomar o passado em função do presente via gestão das memórias
significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a
memória expressa (das relíquias aos monumentos, aos arquivos,
símbolos, rituais, datas, comemorações...). Noção de que a
memória torna poderoso(s) aquele(s) que gere(m) e controla(m)
(SEIXAS).
Tudo o que aconteceu pode ser justificado de outras maneiras. Na
intervenção dos anos 70, uma busca por modernidade e nacionalidade
que se espalhou por todo o Brasil: ame-o ou deixe-o. É fácil de
entender, já que a arquitetura de Teresina e o próprio paisagismo
da década de 50, com pequenas árvores muito bem podadas em formas
circulares, que mal nos ofereciam sombras, eram, nitidamente,
projetadas para um lugar que não deveria ser aqui. Parecíamos
sofrer ainda as influencias francesas tão típicas do período
imperial brasileiro. Agora, depois dessa praça “moderna”, da
política ditatorial brasileira, os anos 90 nos proporcionam um olhar
nostálgico para o passado, como se Teresina tivesse perdido algo
essencial na sua existência. Seria preciso corrigir. São os anos da
redemocratização que crucificam os feitos do Brasil “maravilha”
setentista.
Patrimônio... palavra que nos
deixa uma sensação de desconforto ─ é um tema sobre o qual já
se disse tudo e, todavia, ainda parece que está tudo para dizer.
Talvez porque associemos à palavra algo que se esvai, que se esgota,
que se desvanece... e que queremos desesperadamente recuperar na sua
totalidade. Uma totalidade mítica, que é rigorosamente utópica,
porque o que queremos salvar como patrimônio nunca existiu (...)
(...)
Há uma sensação
desconfortável de estarmos falando de patrimônio, a fornecer ao
público uma “canção de embalar”, para o distrair do ruído dos
camartelos dos empreiteiros que, celeremente, se vão encarregando de
destruir tudo de quanto estamos a falar... Enfim, de sermos cúmplices
de uma monstruosa farsa (JORGE. 2000).
Vitor nos adverte de forma assustadora esta procura do algo perdido
que tentamos recuperar exatamente porque buscamos algo utópico, algo
que passou e que se transforma constantemente e que é idealizado de
forma que deveremos crer que, realmente, ele nunca existiu. Enquanto
buscávamos a beleza da harmonia, substituindo uma paisagem que não
nos agradava a todos, o que, para mim, não passa de pura percepção
artística, éramos cúmplices da “monstruosa farsa” que destruía
uma memória de quase trinta anos.
Patrimônio sempre teve a ver com identidade, com valores não materiais, simbólicos e com a memória dos indivíduos e dos grupos. Sem memória não há pessoa, não há projeto, não há sentido de comunidade ─ só máquinas delirantes e egoístas, monstros em que tememos transformar-nos (JORGE. 2000).
Não me entristece a percepção de um futuro onde vontades de
grupos mais fortes e bem representados possam estar constantemente
reescrevendo a história, por que é um mal que o subjetivismo deste
ofício não pode fugir. Entretanto, amarga-me a idéia de que a
memória, em nome de um projeto maior, seja ele qual for, possa ser
varrida, escondida e constantemente reconstruída. A memória não
poder ser vítima das vontades alheias porque acabaremos incorrendo
no perigo de nos tornarmos monstros sem identidades, ou de
identidades mais multifacetadas que o normal, sem referencias
materiais onde possamos nos agarrar. Preocupa-me a idéia da praça
Pedro II, descuidada como está, sofrer nova grande intervenção e,
pior, se alguém convencer à maioria de como era bonita a praça nos
anos 70: aquilo é que era praça e que deveria continuar sendo...
Preocupa-me a preservação da memória.
REFERÊNCIAS
NORA,
Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares.
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História. São Paulo, N.10, 1981.
JORGE,
Vìtor de Oliveira. Patrimônio (s). In: Arqueologia, Patrimônio e
Cultura. São Paulo: Instituto Piaget. 2000.
FIGUEIREDO,
Diva. Praça Pedro II, dos anos 30 à década de 90. Teresina:
FUNDAC. 1999
SEIXAS.
Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história:
problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella.
NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (res)sentimento:
indagações sobre uma questão sensível. São Paulo: Editora
UNICAMP.
BARRETO,
Margarita. Patrimônio: definição problemática. In: Turismo e
legado cultural. São Paulo: Papirus, 2000.
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