NOLASCO, Sócrates.
De Tarzan a Homer Simpson: Banalização e violência
masculina em sociedades contemporâneas ocidentais. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001.
Bernardo Aurélio de
Andrade Oliveira
Sócrates Nolasco é professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, psicanalista e escritor preocupado com a questão da
banalização da violência nos dias de hoje. Interessado em entender
o
modo como a violência poderia ser contida na sociedade atual,
preocupou-se antes em estudar o porquê desta violência estar muito
ligada às questões de paixões e moralidade, mas particularmente no
mundo masculino, ou seja, porquê o homem tem mais predisposição à
violência cotidiana do que a mulher, atualmente.
Socrates Nolasco, autor
Para mediar essa
discussão em seus estudos, o autor quis, antes de tudo, entender o
quê significa ser homem, quais são os modelos e fatores que
determinam ou definem uma pessoa como homem ou mulher. Nolasco
entende que esse problema leva a uma vertigem de pensamento onde se
questiona as questões da construção da nossa identidade, onde se
pensa no “quem eu sou”. Para esse tipo de determinismo, o autor
entende que é importante observar a definição do outro sobre si
mesmo para poder fazer comparações, por isso lança mão de
citações de textos de literatura feminista, como os de Simone de
Beauvoir.
Simone de Beauvoir
Quando a mulher
constrói sua oportunidade, chega e diz o que é ser mulher pela
primeira vez nesse mundo moderno das feministas, o homem tem um novo
paradigma para si avaliar, Simone diz que “somente a mediação de
outrem pode constituir um sujeito como um outro”. E é com base no
pensamento dela que Nolasco afirma que não são fatores biológicos,
psíquicos ou econômicos que definem o que é ser homem ou mulher,
mas sim as questões socioculturais. Não é a genitália que define
o gênero, mas o comportamento, desnaturalizando nesse sentido essas
concepções e colocando a questão da identidade sexual como uma
construção do ser humano.
Para
o autor “o percurso de socialização pelo qual passam os homens
cria padrões de organização subjetiva que se relacionam com os
papéis sociais. Assim, cada sujeito está autorizado a pensar,
falar, sentir e expressar um conjunto de emoções que o identifique
socialmente como homem. Há uma linguagem mais ou menos
universalizante que dá ideia de consenso sobre o que é ser homem”
(2001. p. 145). A ideia de masculinidade está
ligada a um suporte de coletivização, onde para cada época é
construído um determinado tipo de homem. Esses padrões foram
elaborados no mundo antigo através dos heróis míticos como
Hércules e Ulisses, que são referências positivas de homem para
sua época, são heróis e modelos clássicos necessários dentro de
um contexto de mundo que se convencional chamar de tradicional. Esse
modelo tradicional estendeu-se até a idade média, mesmo com as
inovações do modelo cristão católico. Entretanto, o mundo moderno
trouxe novos problemas que teriam se iniciado com a formulação de
pensamentos como o de Descartes: “Penso, logo existo”. Partindo
deste pensamento, Descartes inaugura uma forma de pensar que arranca
o homem do mundo medieval quando ele expõe o “eu”, de certa
forma inaugurando a ideia de indivíduo dentro do cosmo coletivizante
daquele mundo tradicional. Descartes também coloca em evidência a
contradição do corpo e da alma existindo numa única forma humana,
diferente do que era antes concebido, porque substância/espírito e
matéria no modelo grego ou cristão existem numa inter-relação
desses dois parâmetros. Esse individualismo, que era uno
em
corpo e matéria, se opunha a essa forma tradicional de ver o mundo.
Nesse mundo de
contradição onde se permitia olhar para dentro e colocar o “eu”
em evidência foram surgindo novos conceitos de heróis, mitos e
modelos para a masculinidade, como o Dom Quixote, um herói falho que
foge aos modelos pré-estabelecidos.
Foi com a
modernidade, com a revolução industrial, com o desenvolvimento da
burguesia e do pensamento iluminista e com as reformas sociais
exigidas pelo pensamento marxista que se pode fugir desses modelos
coletivizantes, pois “a modernidade é essencialmente uma ordem
pós-tradicional, (…) da vida social fora do alcance de preceitos e
práticas preestabelecidas” (2001. p. 129). Nesse mundo moderno, a
ideia da identidade pode ser construída e legitimada pelo “eu
penso” e pela autonomia do homem tão semelhante a Deus que também
pode criar e ser iluminado. Mas nesse mundo de indivíduos
independentes, livres pra pensar e agir, onde a sociedade é regulada
pelo mercado, vai-se cada vez mais perdendo a relevância das
histórias de vida particulares.
O que acontece a
partir do início do século XX, exemplificado por Nolasco em Tarzan,
que é um modelo mítico do homem dessa época, é que cada vez mais
esse homem se afasta de sua vivência particular enquanto sujeito
próprio de si e compra esses modelos heroicos, deixando de si
imaginar e de si colocar sobre a sua própria experiencia, deixando
de criar seu próprio modo de se sentir homem. Ou seja, cada vez mais
o homem vai perdendo a reflexão de sua história particular de vida
e de sua vivência.
Esse modelo de
homem que pensa o indivíduo e de vida que diminui cada vez mais seu
sentido de conviver numa coletividade é um atenuante para a
violência, porque cada vez mais o homem perde um modelo positivo do
herói a seguir, o homem marca cada vez mais sua presença de maneira
invertida, violenta em suas atitudes propriamente masculinas,
causando cada vez mais crimes passionais e banais. A violência surge
como uma opção para substituir a falta de vigor, força e moral do
modelo que o Tarzan representava e cada vez mais vamos aceitando
modelos falhos para se seguir.
Hoje, o homem
branco heterossexual é um modelo a não ser seguido. Os movimentos
de minorias são as novas mitologias cotidianas. Paulatinamente, a
busca pela valorização de nossas próprias identidades e de cada um
falar por si, vai transformando o modelo do Tarzan em Homer Simpson,
pois vamos percebendo que não somos perfeitos como aquele herói e
nos identificamos muito mais com o personagem falho. Não que o Homer
seja o novo modelo ideal a ser seguido, mas ele se tornou o exemplo
do homem errado que é aceito socialmente, enquanto as mulheres são
muito mais centradas e racionais. Basta comparar a Margie e a Lisa
com o Homer e o Bart da série animada pra perceber que o modelo
feminino nesses desenhos são o novo bom modelo a ser seguido,
inclusive pelos próprios homens. É a força da minoria feminina
retratada na cultura de massa e assimilada ao redor do mundo, onde
quer que seja exibido desenhos como esse.
Quando o homem
perde esse modelo positivo, o que acontece no século XX é uma
ausência de um pódio onde o herói mítico e bom seja colocado e
esse novo homem independente, de certa forma, só consegue se colocar
como herói no mundo a partir de uma inversão de valores
tradicionais, buscando o aplauso na falha mesmo que surgindo através
de uma moral duvidosa, como, por exemplo, o homem que mata a mulher
em nome de sua honra. Uma mítica avessa do herói por falta de
vínculos pessoais.
No terceiro
capítulo do livro, intitulado “A cultura: modernidade e
subjetividade”, Nolasco fala que a identidade é construída a
partir de uma demanda social e, citando Hegel, afirma que “a ordem
da cultura se coloca contra a ordem da natureza” (2001. p. 154),
nesse contexto o homem moderno opõem-se à própria natureza e a
construção da identidade não é mais relegada a fatores
biológicos. Nolasco é feliz quando apresenta problemas que a falta
desse modelo ou do simples determinismo biológico podem acarretar.
Ele diz, citando Giddens, que a busca de uma nova identidade é “uma
forma patética de narcisismo”, que o discurso moderno fomenta “a
aspiração de se ultrapassar os limites impostos pela vida, abolem a
divisão masculino/feminino e tendem a um ideal andrógino” (2001.
p. 135), e deixa a entender que isso pode ser um problema ou mesmo
uma forma de violência contra o “eu” mesmo, “que sofre por
não aceitar suas qualidades acidentais, como sexo e raça, com o
objetivo de recriar um eu mais perfeito”(2001. p. 135).
É interessante ver
que Nolasco preocupa-se em colocar que repensar esses modelos
tradicionais dão liberdade para a valorização das identidades
autônomas e das minorias, mas mais curioso é encontrar em seu texto
que a modernidade “quebra o enquadramento protetor da pequena
comunidade e da tradição” (2001. p. 133) e que, cada vez mais, a
sociedade coletiva sente dificuldade para formar sua próxima
geração. Essa sociedade moderna gera crises de identidade que
precisam ser resolvidos cada vez mais com a ajuda de especialistas,
profissionais impessoais criados ou recriados pela demanda desse novo
mundo, que são os psicólogos, pediatras e educadores. Fica a
impressão de que o autor enxerga que a sociedade e sua forma de
pensar não parece estar simplesmente evoluindo em estágios
progressivos, mas se alterando e se adaptando sempre aos novos
tempos, resolvendo problemas e criando outros. Os homens e mulheres
estão mais livres e autônomos? As minorias são os novos modelos
contemporâneos a serem valorizados? Sim! Mas em compensação existe
uma certa crise de identidade masculina que acabou banalizando a
violência por causa da desconstrução do modelo tradicional.