segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
Esse cara, o Albert Piauí!!!
Albert Nunes de Carvalho é natural de Luzilândia. Nasceu em 24 de setembro de 1953. É libriano, “como a maioria dos artistas e jornalistas”, segundo o próprio Albert. Viveu à margem do rio Parnaíba. Os pais, Bernardo Uchoa de Carvalho e Maria José Nunes de Carvalho, são maranhenses de São Bernardo, do outro lado do rio Parnaíba, vizinha de Luzilândia.
Quando criança, Albert lembra-se muito que sua cidade natal era muito festeira, haviam os shows de variedades no Cine-Teatro São Domingos onde ia assistir aos ensaios das peças que os pais encenavam: os dramas. Nesses “dramas” aconteciam de haver a peça principal, mas também se apresentavam espetáculos de dança, piadas, músicas. Albert lembra-se que a cidade era muito católica e certa vez chegou a interpretar o menino Jesus. Outras atrações foram marcantes, como o Cassimiro Côco (Teatro de boneco) que se apresentava na periferia da cidade, os Violeiros, o Bumba-meu-boi, os terecôs (batiam tambor), forrós e sanfoneiros.
Algumas das lembranças mais importantes daquele período dizem respeito a quando as mulheres, suas primas, tias e amigas da família, se reuniam para ouvir novela de rádio. Nessas ocasiões havia troca de livros entre famílias e de revistas como Cruzeiro e Seleções, mas a influencia cultural mais forte de sua infância nestes primeiros anos de leitura foram as fotonovelas. Sua mãe tinha baús cheios delas, títulos como Capricho e Grande Hotel. Nestas publicações haviam notícias sobre cinema e artistas do rádio. A maioria de produção italiana. Entretanto “não era chic, não era direito um menino ler fotonovela, que era coisa de menina, mas isso não entrava na minha cabeça”. Albert leu escondido da mãe. Apenas anos depois, chega um primo com quadrinhos: tio patinhas, mickey, cavaleiro negro, Batman, Flash Gordon, Mandrake, Tex... Albert inicia uma coleção de revistas em quadrinhos, a maioria publicada pela editora Ebal, que dominava o mercado de quadrinhos no Brasil.
Albert lembra que o cinema que havia em Luzilândia era esporádico, que não teve um dono de cinema na cidade, era ambulante. Lembra também, que não houve a cultura do desenho. Diz que só foi conhecer uma obra original, uma tela, em Teresina.
Teve três irmãos, mas nenhum deles seguiu por trilhas da arte. Mauro foi jogador de futebol, Ezequiel tornou-se enfermeiro e Francisco virou jornalista e pastor, mas futebol era o que mais os impressionava, inclusive tiveram um time, o Luzilândia Clube, que, segundo o Albert, “nunca perdeu pra ninguém”. Entretanto, entre os irmãos e amigos, Albert se sentia o menino diferente...
Aos quatorze anos foi morar em Goiatuba, Goiás. Passou quatro meses por lá, mas não se adaptou, pois achou que falavam diferente, se vestiam diferente por causa do frio, comiam diferente. Disse que em Goiás só vai anoitecer às 8 da noite. Sem falar que, apesar de ser a música caipira de verdade, era muito chato ouvir os violeiros sertanejos o dia inteiro para quem se acostumou a ouvir baião. A maior influencia que teve nestes meses em Goiás foi conhecer a obra do Mazzaropi e ver os meninos ricos da cidade trabalharem com uma caixa de engraxate para ganhar dinheiro.
Segundo Albert, o primeiro contato com desenhos vieram através dos humoristas que publicavam nas revistas Cruzeiro, como Millor Fernandes e Péricles. A partir dali, e do contato com as histórias em quadrinhos, iniciou os primeiros traços:
A inclinação pro desenho foi exatamente na época em que eu tomei contato com as histórias em quadrinhos. Porque eu comecei a copiar, copiar mesmo. Olhava assim o cavaleiro Negro, eu desenhava igual. Naquela época, eu gostava muito de desenhar na calçada de Luzilândia, eu era menino, e eu pegava carvão e desenhava a calçada inteira da igreja. O padre, que era meu padrinho, ele ficava puto. Porque quando ele chegava assim de manhã na Igreja ela tava toda riscada, a calçada. Eu riscava inteiro, cara. Ainda hoje eu gostaria de tentar fazer isso de novo. Eu pegava a calçada aí eu fazia uma cidade de uma ponta a outra. Eu fazia um fio direto aí fazia as casinhas, entendeu? Então a calçada ficava toda riscada de carvão ou então ficava de giz (...) Então, a minha inclinação veio daí, entendeu?
Quando Albert chegou em Teresina, em 1968, depois de ficar quatro meses em Goiás, foi morar numa rua que, por acaso, tinha um maestro que morava ao lado e que tinha três filhos. Eles eram ligados à arte. Um era músico, outro gostava de ler “O Pasquim”. Foi quando Albert conheceu Jaguar, Fortuna, Claudios, Miguel Paiva e mais intimamente a obra de Ziraldo e Millor Fernandes, que já os lia em Pererê e na Cruzeiro.
O Grande time do humor brasileiro. Na verdade foi depois do Pasquim que eu comecei a me interessar por arte mesmo, de uma vez. Depois que eu conheci “O Pasquim” eu decidi o que eu queria ser, entendeu? Eu queria ser desenhista, jornalista...
Quando tinha 16 anos, Albert começa a si interessar por jornalismo. Em Teresina não tinha escola de jornalismo. Entrou no jornal “O Dia” quando era um jornal pequeno, apesar de procurar ser moderno, através de uma política editorial implementada pelo Feitosa Costa e pelo Coronel Miranda. Nesta equipe estavam jornalistas como Wilson Fernandes e Chico Viana.
Eu entrei (no O Dia) nessa época como um garoto que queria fazer charge (...) Agora o importante: o Arnaldo (Albuquerque) já tinha passado por lá, porque historicamente o Arnaldo é o primeiro chargista da história piauiense. De verdade, entendeu? Porque eu entrei lá pra substituir o Arnaldo. O Torquato Neto passou por aqui e levou a turma pro Rio de Janeiro aí ficou lá o espaço, aí eu “pá!”, entrei (...) Por que, na verdade, o Arnaldo fez charge no jornal O Dia, mas o primeiro chargista constante fui eu. Fui eu que consolidei a charge no jornalismo piauiense.
Entretanto, naqueles primeiros anos da década de 70, a inconstância parecia cotidiana entre os artistas daquela época e o Albert achou de ficar sempre indo e voltando de Teresina para o Rio de Janeiro. Quando esteve por lá, visitou algumas vezes a redação do jornal O Pasquim, e tentou algumas vezes ser publicado.
O meu desenho, eu não tinha capacidade naquela época de ficar no time do Pasquim. Eu conseguia publicar alguns desenhos no Pasquim, entendeu? Eu não tinha um trabalho sólido, um trabalho bem feito e maduro pra poder ser um cara constante no Pasquim, entendeu? Eu era aquele cara que de vez em tinha um desenho que publicava no Pasquim. Eu conheci o Ziraldo, fui na casa dele, ele me recebeu com muita amabilidade, foi muito amável comigo, mas eu não era um bom chargista na época.
Albert lembra que foi importante esta experiência, por menor que pudesse ter sido, no Pasquim. Ele desenhava no material errado. No Rio de Janeiro foi que conheceu o bico-de-pena. Aqui ele não tinha pessoas com quem interagir, pois o desenho de humor tava começando com pessoas como ele. O Arnaldo Albuquerque, que ele citou acima, pioneiro na charge e nos quadrinhos impressos no Piauí, desenhava com caneta de arquiteto, um material não recomendado entre artistas.
Um dia eu cheguei no Pasquim e vi o Ziraldo desenhando uma capa, aí ele tava com um bico de pena. Aí ele botava no... (nanquim) desenhando. Aí eu disse assim: “Porra! Que diabo é isso aqui? Tu desenha com isso?”. Ele disse: “É”. E eu desenhava com caneta de arquiteto, que é uniforme, porque o bico-de-pena você vai, quando você trabalha com bico-de-pena, quando você pressiona ele no papel, você dá várias espessuras e você inventa o que você quiser (...) Eu custei muito a aprender a desenhar, cara. Eu acho. Porque no Piauí não tinha escola, Bernardo. Você começar a desenhar numa cidade que não tem uma escola de artes plásticas, não tem um salão de espécie alguma, não tinha ninguém que desenhasse antes de você, que você conhecesse, não tinha ninguém pra trocar idéia com você. A única coisa que você tinha acesso era o trabalho dos outros humoristas que você via nos jornais. Olhando o jornal você não sabe a técnica que o cara usou, então era muito difícil nessa época você desenhar.
Entretanto, antes de ir ao Rio, o Piauí tinha um movimento artístico que Albert teve conhecimento, mas, a priore, não teve acesso.
Naquela época nós estávamos na ditadura muito forte e tava tendo um movimento contracultural no mundo inteiro, entendeu? E tinha um grupo de garotos, de jovens, muito inteligentes, que era o Edmar, o Galvão, o Pereira, o Marcos Igreja e tantos outros, aí eles fizeram um jornal chamado o Gramma. Eles realmente eram muito inteligentes. Eu acho que foram eles que abriram tudo pra cidade, entendeu? Pelo menos pra mim, foram eles (...) E nessa época eu tava chegando de Luzilândia e não tinha condição de ter acesso a eles. Eu era menino réi que tava chegando. Eu fui conhecer eles depois...
Ainda na primeira metade da década de 70, Albert e uma turma tiveram idéia de fazer um jornal. Batizaram-no de “Chapada do Corisco”.
A gente tinha a idéia de fazer o jornal. E naquela época éramos todos fodidos. Assim, naquela época não tinha mercado de trabalho pra nós. Nós todos éramos garotos que nos virávamos com muita dificuldade e os únicos que tinham uma posição assim mais organizada era o Dodô Macedo e o Cineas Santos. O Cineas era professor, dava muita aula, então ele tinha uma vida organizada, entendeu? E nós, não. Aí surgiu a idéia de fazer o jornal. Juntou eu, Cineas, Paulo Machado, Dodó Macedo, Assai Campelo, o Etim e o Arnaldo, do Gramma. Aí a gente começou a fazer o jornal que quem diagramava era eu, aliás, quando olho pro jornal hoje, porra! Mal diagramado pra porra! Que vergonha, aquele jornal. Eu diagramava e fazia ilustrações. Ruim pra porra, as ilustrações. Quando eu olho, é impressionante...
Durante as edições do Chapada do Corisco, um dos colaboradores foi o Antonio José Medeiros, hoje secretário de educação e cultura do Estado. Medeiros tinha uma posição política que incomodava de alguma forma os militares daqueles anos de ditadura.
A gente tava sobre a ditadura e o Antonio José tinha vindo do Canadá. Ele tinha se casado com a Rita Cavalcante. E a casa do Antonio José começou a ser um local de discussão de política, entendeu? Eu era de dentro da casa do Antonio José e das reuniões, e lá começou a se fazer um grupo de estudos onde a gente estudava Fernando Henrique Cardoso (risos). Rapaz, Fernando Henrique Cardoso naquela época era revolucionário! É Celso Furtado, alguns autores assim daquela época (...) Aí, o que é que acontece: eu andava no meio da rua, ainda hoje eu me lembro, eu estava com o José Leite e um amigo meu, e eu fui a vários bares de Teresina, fui num bar, aí eu vi que tinha um pessoal seguindo a gente. Aí, depois, a gente foi no Luxor Hotel pra um evento sobre arte, e tinha um grupo seguindo a gente. Aí ele me deixou na casa de Antonio José Medeiros. Eu fiquei lá. Conversei um pedacinho, quando eu saí pra ir pra casa, uns cinco quarteirões depois, aí vários homens armados saíram de um volks e me prenderam, rasgaram minha calça, eu era magrinho, aqueles homens fortes assim, superarmados, me puseram no carro e tcham! (gesticula com a mão, um carro saindo em disparada). Aí me levaram pra polícia federal. Quando eu cheguei lá eu tive a surpresa de ver vários amigos meus lá, sabe? Revolucionários de porra nenhuma! Como eles eram desinformados, sabe? Cada pessoa que tinha contato ali na casa de Antonio José Medeiros, começaram a ser presos. Aí começaram os interrogatórios, eu fui colocado num quarto escuro e ele era estreitim, sabe? Era estreitim assim, sujo! Porque acho que era uma dispensa. Sujo. Ainda hoje eu me lembro, que eu tava de roupa clara. Aí eu fiquei lá, em pé, no escuro. E eu tinha bebido a noite todinha e eu tava numa ressaca da porra. A minha vontade mesmo era dormir, sabe? Aí eu me sentei naquela porra daquela sala escura, aí pensei: “sabe de uma coisa, vou me deitar”. Mas me deitar significava que eu ia ficar todo sujo. Era essa exatamente a idéia: ficar sujo e você perder a auto-estima, sabe? Porque ninguém foi torturado. Eu sei que quando, foi assim, quatro horas da tarde, que eu fui dar meu depoimento, eu tava todo sujo e com fome, porque eu não consegui comer a comida que tava lá (...) Eles tavam com todos os desenhos que eu tinha publicado até então. Eu cheguei lá e tava toda minha coleção de desenhos e ele começou a folhear sem dizer nada, aí fechou. Aí eu disse assim: “Caramba! Eu mesmo não guardei! Agora eu já sei quando eu quiser fazer um livro eu venho aqui pedir emprestado”. Aí eles começaram a perguntar: “Você é comunista?”. Aí começaram a me fazer pergunta sobre o Antonio José Medeiros. “Você tava no dia tal, local tal?”, eu digo “tava”. Aí eles começaram a fazer pergunta sobre o Antonio José Medeiros: “Antonio José é comunista?”, aí eu disse que ele não era, porque ele nunca foi, cara (...) Todo mundo era de esquerda, claro! Todo mundo era contra o sistema, mas ninguém quis ser contra o sistema jogando bomba, matando gente, entendeu? (...) O grupo ali era pra estudar e eu nem estudava porque eu não tinha saco pra estudar os estudos que tinham na casa de Antônio José. Eu só era um freqüentador. Porque lá era freqüentado pela Helena e Helena, eu me interessava por ela, e depois eu me casei com ela.
Pouco anos depois disso, surge a idéia de se fazer o Salão de Humor do Piauí. Segundo o Albert, a idéia foi dele, mas Kenard Kruel, amigo que o ajudou muito na realização deste evento, tem outra versão para a história. Apegando-se apenas aos fatos colocados por Albert, ele não teria participado nem como jurado do 1º salão. Ele não foi sequer consultado para fazer o regulamento. No 2º evento, teria sido convidado apenas para ser jurado. Segundo o próprio, os três primeiros salões foram um fracasso: desorganizados, sem método.
Quando Jesualdo Cavalcante assumiu a Secretaria de Cultura, ele teria resolvido acabar com tudo que não estava dando certo na administração. Apesar de o salão desde o princípio agradar à cidade, ele não agradava a nova administração. Albert teria conversado com Kenard para trabalharem juntos com o intuito de não deixarem o salão acabar, por que ele podia ser mal feito, mas agradava à cidade. Kenard teria marcado uma reunião com o Jesualdo. Albert começa a propagar a idéia que poderia transformar o salão de humor em um dos maiores eventos do Piauí e do Brasil. Albert teria jogado umas idéias como feiras de livros e teatro. Pouco depois o secretário mandou chamar o Albert e lhe entregou duas passagens, uma para ir à Brasília e outra ao Rio de Janeiro. Por acaso, quem dirigia a Funart era o Ziraldo.
Fui conversar com o Ziraldo, lá na Funart. Aí o Ziraldo me disse uma coisa, cara, que norteou o Salão pro resto da vida. Ele disse: “eu não vou dar dinheiro pra porra de Salão, não”. Aí eu disse: “porque Ziraldo?”. “Porque todo salão que tem nesse país, só tem gente no dia do coquetel, depois fica abandonado”. Aí eu disse: “pois eu prometo pra você que o Salão de Humor não vai ser um salão desse tipo”. Aí foi a partir daí que a gente começou a colocar o salão na rua. O salão começou a ser popular, diferentemente de Piracicaba, sabe?
Foram vinte e cinco anos de Salão de Humor do Piauí até hoje. Há alguns anos atrás, quando o salão já estava devidamente consolidado como um dos mais importantes eventos culturais do Estado, “o mais importante”, segundo Albert, surge a necessidade de uma nova luta, além de realizá-lo todos os anos: a de construir a Fundação Nacional de Humor.
Todos os salões que se fazia no Brasil eram ligados ao Estado. E a gente percebeu que não havia autonomia de se colocar idéias. Tinha muita hierarquia no meio. A gente chegava e propunha uma idéia aí “não, a vai consultar o secretário” aí o secretário “não, a gente vai consultar o governador”. E a gente achava que tinha muito intermediário nas idéias. As idéias que a gente tinha eram amplas e não funcionavam. Por exemplo: essa idéia dos túneis (que expunham trabalhos nas praças) a gente teve e só conseguiu fazer dez anos depois.
A Fundação Nacional de Humor foi a primeira ONG cultural do Piauí, segundo o próprio Albert. Ainda hoje, depois de vários anos para conseguir o prédio que fica na praça Ocílio Lago como sede da instituição, Albert luta para tentar estruturá-lo para que possa servir da melhor maneira possível aos grandes propósitos da Fundação.
Albert ainda produz desenhos com muita intensidade e corre, a cada ano que passa, atrás de melhoramentos para um evento cada vez mais difícil de fazer, porque a Fundação quer cada vez mais e mais, com shows musicais, oficinas, palestras, teatro, dança, palcos simultâneos, exibição de filmes etc...
O salão tomou a cara do próprio Albert, entretanto ele lamenta as dificuldades de continuar fazendo isso. Observa uma necessidade artística de cuidar da própria arte, montar um ateliê. Coloca que, para o bem da Fundação Nacional de Humor e do próprio Salão, para que ele seja feito com mais facilidade, até abre mão de sua presidência.
Albert Piauí desenha em casa. Tem centenas de desenhos escondidos e esboços inacabados, um blog bastante movimentado na Internet (albertpiaui.180graus.com), quer morar em Água Branca e, quem sabe, na próxima encarnação, ser um cachorro daquela cidade, para comer e fazer a cesta debaixo de uma sombra de árvore, no meio de uma rua de calçamento e não ser incomodado por ninguém, como acontece por lá todos os dias, segundo ele...
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Nova Coisinha Pequena
Quando voltei e abri a porta de casa, vi seu corpo esquartejado sobre o sofá.
.
.
.
Que bom que fui eu quem foi comprar o pão
.
.
.
Que bom que fui eu quem foi comprar o pão
domingo, 7 de dezembro de 2008
O Fantástico Paradigma Indiciário e Previsão do Futuro nas Histórias em Quadrinhos
O Fantástico Paradigma Indiciário e Previsão do Futuro nas Histórias em Quadrinhos
Por Bernardo Aurélio
Resumo: Os quadrinhos a muito tempo apresentam-se de forma engajada no mundo político-econômico em que se vive devido a utilização dos paradigmas venatório e implícito para construção de uma realidade em seus textos. Neles são encontradas informações sobre a existência de uma concreta “Mão Invisível” que controla o mercado global e da atual construção de um instrumento de segurança para a perpetuação de seu poder, o Big Brother.
Palavras-chave: Quadrinhos, Paradigma Indiciário, Previsão do Futuro, Mão Invisível e Big Brother.
É bem verdade que com o movimento da escola novista e dos Annales o campo dos objetos de pesquisa para os historiadores se expandiu bastante. O recurso ignorado antes, de utilização das mentalidades e da produção da cultura de massa possibilitou o estudo, ainda que tímido, das Histórias em Quadrinhos (HQ’s) como fontes históricas. É somente devido a esta expansão que este trabalho pôde ser realizado.
Apesar da fantástica concepção de mundo encontrado na enorme maioria das HQ’s, as revistas de super-heróis, gênero mais consumido no mercado americano, com uma ciência mais próxima da magia que da razão, com super-seres voando em todos os cantos da Terra, há muito tempo elas apresentam-se de forma engajada em sua concepção da sociedade, da economia e da política. Este engajamento parte de um princípio básico de percepção da realidade. Essa percepção, claro, precisa ser aguçada e aprofundada. Desta necessidade, autores de quadrinhos, da mesma forma que historiadores, ou pesquisadores sociais, constroem um conhecimento embasado em fatos e não somente em suas percepções de mundo. Entretanto, existe uma capacidade de compreensão de uma realidade a partir de detalhes invisíveis aos olhos de leigos, isto devido, principalmente, a um fator conhecido pelos historiadores como paradigma venatório e paradigma implícito, ou indiciário, de acordo com Carlo Ginzburg: “Ambos (venatório e implícito) pressupõe o minucioso reconhecimento de uma realidade talvez ínfima, para descobrir pistas de eventos não diretamente experimentáveis pelo observador” (GINZBURG. 2003, p.152, 153). Este “reconhecimento” e “pistas” permitem ao pesquisador não apenas ter uma noção mais ampla da realidade como também pode chegar a prever acontecimentos possíveis ou perceber fatos esquecidos.
O paradigma indiciário baseia-se, de acordo com o estudo de Ginzburg, na capacidade do pesquisador concentrar-se em detalhes da mesma forma que um detetive estuda um crime, procurando pistas como fios de cabelo, ou quando um médico analisa os sintomas mais minuciosos para determinar qual doença atinge seu paciente. “O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente” (p. 152).
Muitos escritores de HQ’s possuem esta característica e, a partir dela, podem produzir estórias ambientada em um passado possível, um presente desconhecido ou um futuro provável. Um exemplo disto pode ser encontrado no personagem Flash Gordon, de Alex Raymond, que com suas aventuras espaciais, desde 1934, quando fora criado, serviu como antecipação no desing de futuro e serviu inclusive como estudo para a Nasa:
Ao folhear as páginas de A Conquista do Espaço, um livro editado pela NASA, encontro uma informação tão curiosa quanto surpreendente: os cientistas de Houston, velhos aficcionados dos comics, encontraram em Flash Gordon, a solução para meia dúzia de problemas sérios, em matéria de navegação espacial...
O melhor exemplo é a pistola que o primeiro astronauta americano usou para se locomover no espaço sob controle. A idéia surgiu da leitura de uma das primeiras aventuras de Flash Gordon, publicada muito antes da elaboração do projeto Apolo1 (MOYA. 1977).
Raymond não descobriu como contornar certos problemas de navegação espacial, afinal ele era especializado em desenhar quadrinhos, mas anteviu, mesmo em relação aos conceituados funcionários da NASA, quais seriam os melhores métodos e medidas para se locomover no espaço. Perguntar como ele chegou a esta conclusão remete a uma simples resposta: a construção de um paradigma indiciário voltado para a capacidade de prever o futuro. De alguma maneira, os mínimos detalhes da vida de Raymond, vivendo sua vida, experimentando determinados conhecimentos adquiridos diariamente, juntando informações e objetivando em seguida para criar seu Flash Gordon, tudo lhe possibilitou perceber algo ainda não notado pela maioria.
Falar de previsão do futuro pode parecer absurdo em qualquer ambiente acadêmico. Entretanto, o principal objeto de estudo da história, o passado, possui suas controvérsias. Segundo Marc Bloch:
(...) a própria idéia de que o passado, enquanto tal, possa ser objeto de ciência é absurda. Como, sem uma decantação prévia, poderíamos fazer, de fenômenos que não tem outra característica comum a não ser não terem sido contemporâneos, matéria de um conhecimento racional? (BLOCH).
Carlo Ginzburg também corrobora com esta dificuldade do fazer histórico:
Ora, é claro que o grupo de disciplinas que chamamos indiciárias (incluída a medicina) não entra absolutamente nos critérios de cientificidade deduzíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas, que tem por objetivo casos, situações e documentos individuais, enquanto individuas, e justamente por isso alcançam resultados que tem uma margem ineliminável de casualidade... A ciência galileana tinha uma natureza totalmente diversa, que poderia adotar o lema escatológico individuum est ineffabile, do que é individual não se pode falar...Tudo isso explica por que a história nunca conseguiu se tornar uma ciência galileana (GINZBURG. 156)
Como preferem usar os historiadores, a capacidade de “antevê” os fatos é seriamente discutida por autores consagrados do campo histórico, como Eric Hobsbawm:
(...) passado, presente e futuro constituem um continuum. Todos os seres humanos e sociedades estão enraizados no passado – o de suas famílias, comunidades, nações ou outros grupos de referencias, ou mesmo de memória pessoal – e todos definem sua posição em relação a ele, positiva ou negativamente. Tanto hoje como sempre: somos quase tentados a dizer “hoje mais que nunca”. E mais, a maior parte da ação humana consciente, baseada em aprendizado, memória e experiência, constitui um vasto mecanismo para comparar constantemente passado, presente e futuro. As pessoas não podem evitar a tentativa de antever o futuro mediante alguma forma de leitura do passado. Elas precisam fazer isto. Os processos comuns da vida humana consciente, para não falar das políticas públicas, assim o exigem. E é claro que as pessoas o fazem com base na suposição justificada de que, em geral, o futuro está sistematicamente vinculado ao passado, que, por sua vez, não é uma concatenação arbitrária de circunstancias e eventos. As estruturas das sociedades humanas, seus processos e mecanismos de reprodução, mudança e transformação, estão voltadas a restringir o numero de coisas passíveis de acontecer, determinar algumas das coisas que acontecerão e possibilitar a indicação de probabilidades maiores ou menores para grande parte das restantes (HOBSBAWM, 1998).
Hobsbawm nos confirma que a “memória pessoal” de Alex Raymond foi fator fundamental para que ele pudesse antever o futuro através da leitura de seu próprio passado, de suas experiências e processos comuns da vida consciente. Perceber que certos artistas, ao contarem uma estória, utiliza-se dessa bagagem social, dessa percepção de mundo para criarem um cenário plausível num tempo qualquer, é compreender que esse criador, ignorando ou não o fato, utiliza-se do poder desse paradigma indiciário e da capacidade de antevê o futuro que nos falam Ginzburg e Hobsbawm.
A invasão norte-americana ao Iraque em 2003, ou mesmo em 1991, é outro exemplo de que os quadrinhos, na construção de suas ficções, anteciparam-se sim, ao fatos do mundo real. Na estória intitulada Superpoder (Superman: Superpoder. nº 05. Ed. Abril. Dez, 2000. Pág. 99-162.), um novo super-herói chamado apenas de “Mark” alia-se a personagens clássicos como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha no grupo conhecido como Liga da Justiça (LJ). Desejando fazer mais que salvar algumas cidades de assaltos a bancos, ou outras atitudes heróicas do tipo, banais por assim dizer, decide realizar algo mais importante em relação ao mundo e, mesmo contra a opinião de todos seus aliados, invade um país fictício do Oriente Médio chamado Kirai com a intenção de depor um governador tirano do poder, salvando todo seu povo e levando-os à liberdade. Não é difícil encontrar fatos semelhantes em outras revistas (Liga da Justiça, O desenho da TV: Na Estrela Perdida, nº 03, Ed. Panini. Abril, 2003 (nos EUA, em maio de 2002).pg.15), mas o exemplo mais incrível é a de uma estória publicada originalmente em 1990 (Justice League Quarterly # 1), também em uma revista da Liga da Justiça (Publicado no Brasil apenas em agosto de 1992, na revista LJ nº 44. Editora Abril), onde, em uma reunião de representantes das maiores empresas do globo, “(d)as pessoas que movem nossa nação e o mundo”, são definidas metas para se produzir e patrocinar um grupo de super-seres denominado Conglomerado, que estaria sobre inteira tutela destes homens.
O Conglomerado seria utilizado como um grande empreendimento de relações públicas, pois a atual sociedade, que responde tão instintivamente a imagens, enxerga os heróis como símbolos da verdade e justiça. Nada melhor para limpar o nome de empresas capitalistas pintadas por muitos como “vilões do mundo”, responsáveis pelas desigualdades e misérias ao redor do globo. Pois bem, uma das tarefas que o grupo recebeu foi, com a desculpa de instaurar um governo democrático, intervir em uma pequena ilha da América Central, controlada por um ditador megalomaníaco, mas fica claro a existência de motivos econômicos. Em comparação ao Iraque, geograficamente é diferente, mas, ideologicamente, não. Tanto na realidade quanto na ficção se utilizaram de argumentos políticos de salvação e libertação nacional e de instauração da democracia para invadir militarmente determinados países que não agradavam aos EUA ou a certas facções de sua economia.
Não é exatamente com a intenção de buscar provas do paradigma indiciário e da capacidade de antevê o futuro dos escritores de quadrinhos que se pretende trabalhar aqui. Isso é apenas importante para que se dê credibilidade às futuras revelações. É a respeito deste grupo de empresários que se reunira para formar o Conglomerado que será discutido a partir de agora... É bem sabido que certas indústrias de base, como siderúrgicas e petrolíferas, detém um enorme poder no mundo simplesmente por serem fundamentais no estilo de vida contemporâneo. O final do século XX configurou-se com o surgimento de um novo tipo de indústria: a da informação, da comunicação, considerados por alguns como o quarto poder do Estado. Esses empresários, industriais, seja de qual forem suas áreas, representam uma enorme influência para a sociedade, principalmente devido ao fato de estarem no topo, em um nível global, da cadeia de consumo. Sobre este grupo, pode-se citar a minissérie em duas partes A Mão Invisível.
A respeito do título, pode-se dizer que “Mão Invisível” é o nome dado à tendência abstrata da produção e consumo mundial, ou seja, é algo intangível que empurra o mercado. Na minissérie (publicada em setembro e outubro de 1998, pela editora Abril) nos é apresenta um fantástico mundo incrivelmente real onde esta mão invisível realmente existe. Concretiza-se na figura de pessoas como as que foram apresentadas em Conglomerado, ou seja, o grupo dos mais ricos, poderosos e influentes empresários que, em reuniões comuns, como quaisquer outras que se conhece, decidem no que devem ou não investir, onde o planeta Terra representa um leque de variedades e determinam o que se irá produzir e consumir nos próximos anos. Ou seja, eles são a “tendência” concreta.
Tudo é bastante explicado, principalmente o fato da impossibilidade de um grupo como este ter surgido de maneira natural ou em pouco tempo. Muito pelo contrário, suas origens remontam o nascimento do sistema monetário, o que já conta cerca de 500 anos, e a centralização dos Estados Nacionais no século XVIII, com a eventual união da burguesia com nobreza. Fica claro que esta “mão” não é o Estado, mas se encontra acima dele (ver anexo, fig 5).
Nessa minissérie, em relação aos homens que secretamente armavam planos para dominar a nova economia liberal nascente, lê-se:
Para alcançar seus fins, nenhum meio, nem o mais odioso estava fora de cogitação. Mas sua mais poderosa arma veio de uma idéia, a noção do livre comércio, popularizada por seu mais ilustre divulgador, Adam Smith. A noção de que mercados poderiam ser automaticamente manipulados por uma ‘mão invisível’ foi o disfarce perfeito para seus projetos. Eles estavam tão tomados por esta idéia que adotaram a ‘Mão Invisível’ como seu nome oficial e assim são conhecidos desde então. (LABAN, 1998. n. 1, p. 8)
De uma forma ou de outra, abstrata ou não, a Mão Invisível existe e se a historia tradicional ignora o fato de que ela possa ser concreta ou intensamente atuante, não se deve simplesmente ignorá-la. É notório o saber de quê o que não se conhece, a informação entre linhas, o não revelado, são de fundamental importância para a compreensão do quadro histórico em todos os lugares no mundo. De certo que, como o título deste artigo coloca, o que se está estudando aqui sãos as possibilidades fantásticas que autores de quadrinho podem conceber através através de deduções lógicas e perceptíveis, mesmo que sejam incapazem de provar. Portanto, acreditemos na fantasia de que a Mão Invisível é concreta e presente a todo instante.
A Mão Invisível detém, então, um grande poder de controle e ordem global, e para se manter nesta posição privilegiada é preciso que se construa artifícios de perpetuação do poder. Não é preciso, entretanto, muito estudo para se perceber que o mundo atual configura-se na procura da segurança e manutenção do status quo partindo do simples exercício da observação. Quando se entra em ônibus, supermercados, postos de gasolina e até mesmo, bancas de revista, é comum se encontrar cartazes vistosos com a frase: “Sorria! Você esta sendo filmado”. Até mesmo ruas movimentadas, avenidas ou campos de futebol, áreas de grande aglomeração de gente, são hoje vigiadas por lentes de câmeras de vídeo.
“Se queres uma imagem do futuro, pense numa bota pisando um rosto humano – para sempre” (O’Brien, in 1984, de George Orwell). Esta frase, de conhecida obra, nos remete a um mundo onde sua sociedade é, a todo instante, observada e controlada pelo olho do Big Brother (BB). O Estado subjuga seu povo e, vigiando-lhes a todo momento, consegue manipulá-los e manter-se no poder, impedindo qualquer manifestação ou rebelião ainda em suas mais primárias origens. Desta forma, os que estão em cima nunca cairão.
O que se observa na contemporaneidade é um estágio inicial na construção do BB, onde o poder se encontra dividido em vários interesses privados, mas com as mesmas metas colocadas no livro de George Orwell, de observação, segurança e perpetuação do privilégio. Ou seja, ainda não existe um ponto para onde convergiriam todas estas informações captadas pelas lentes em inúmeros pontos das cidades. Ainda não existe o Grande Irmão.
Desta forma pode-se chegar à conclusão de que o Big Brother, como o já se vivencia hoje, em seu processo de instalação, é um instrumento que a Mão Invisível, ou pequenos empresários, utilizam para manter-se em sua posição, sem eventuais perigos, pois ele impede, inibe o homem de qualquer atividade fora-da-lei.
Numa pequena estória, de apenas 8 (oito) páginas, intitulada Vigilante, publicada pela editora Opera Graphica, na revista DC Comics Vertigo nº 10, em maio de 2003, é apresentado um mundo catastrófico em um futuro bastante próximo onde a sociedade observa-se a si própria e esquece do mundo a sua volta, não se dando conta que, acima deles, um grupo os observa observando (ver anexo, fig 6).
Numa cena em que o protagonista conversa com uma garota através de um monitor de televisão (interessante que eles são vizinhos, moram no mesmo prédio, mas não tem contato carnal, preferem o vídeo), é colocado o seguinte diálogo:
– Você andou saindo? Todos estão ocupados observando uns aos outros. O que é mais incrível é que alguém ainda esteja tentando se relacionar. Quer dizer, quem se importa com isso?
– Já faz um mês que não saio. Tem muita coisa acontecendo por aqui. Quase fiquei sem comida.
(...)
Já te falei da Jane, a mulher que me observa? Ela tem me olhado desde antes da revogação do direito da privacidade. Nos tempos em que ele era legal, ela viu umas portas muito esquisitas. Uma vez ela estava navegando ao acaso e começou a observar um homem estranho (...) Numa outra vez acabou observando uma sala que ficava sempre escura, um breu total, exceto por um vão de porta que deixava passar uma luz Branca e intensa. Havia uma figura na porta, apenas uma silhueta (...) Não teve como dar um close. A única coisa que acontecia era que, de vez em quando, a figura saia e fechava a porta (...) Ela se sentia como se estivesse olhando para algo muito grande e estranho para ser realmente visto.
(SHEPARD. 2003, p. 4-5)
O protagonista conclui a conversa dizendo que:
...[a figura era] o destilado irredutível do universo, o impulso básico do cosmos de observar a si próprio, de se definir no fim das contas e se consumir no processo. Quando todos estiverem, finalmente observando a todos, tudo irá desaparecer. Esse é o sentido de toda a falta de sentido (SHEPARD. 2003, p. 6).
Dessa forma, a estória mostra um retrato caricatural de nossa sociedade. E o que é uma caricatura, senão o exagero de uma realidade? É apresentado um mundo em que as pessoas observam-se uns aos outros e que existe algo acima delas, discreto e misterioso, o que poderia ser a própria Mão Invisível. Nas gravuras das páginas e nos diálogos encontra-se transfigurada a alienação do povo, que, tão preocupado em suas individualidades de observar e ser observado, esquece-se da condição do mundo. As ruas em volta do prédio onde moram os protagonistas está um caos e eles não ligam (ver anexo).
Um outro exemplo mais conhecido da utilização do Big Brother nos quadrinhos é “V de Vingança”, escrita pelo inglês Alan Moore e desenhada por David Lloyd. Esta obra foi originalmente criada no início da década de oitenta e teve uma recente adaptação para o cinema, em 2006. Em V de Vingança a Inglaterra é governada por um poder ditatorial que usa a mídia de várias maneiras para controlar e vigiar a população. Interessante observar que o governo é dividido em várias seções, existe, por exemplo, os “agentes dedos”, que são policiais. De certa forma, é possível notar a presença do conceito da Mão Invisível no governo utilizando seus dedos para policiar a população.
Pode-se afirmar, com toda certeza, que a mão invisível existe, talvez da forma que a revista demonstre, talvez apenas como uma tendência abstrata, mas é por isso que se reafirma que a realidade dos quadrinhos é fantástica, surpreendente e, acredite, crível. É importante que fique claro que não se deve relacionar a produção dos quadrinhos com a futurologia, até mesmo porque as ciências humanas não aceitam este conhecimento como válido. O que as HQ’s fazem são representação de um tempo passado ou presente e previsões fictícias com embasamento no real para o futuro, utilizando-se dos paradigmas venatório e implícito. Ao mesmo tempo que também não se deve esquecer que os quadrinhos se propõe unicamente a ser um veículo de comunicação de massa e arte, consubstanciando-se como literatura iconográfica. De certo que, sabendo de tudo isto, o texto colocado nos balões e os desenhos dos quadrinhos são totalmente suscetíveis a erros, simplesmente pelo fato de serem produções humanas.
Assim sendo, a mão invisível e o Big Brother podem, perfeitamente, não se apresentarem como as HQ’s os abordam, mas isso, sobre maneira, não diminui o significado da produção quadrinhística a respeito deles. O simples fato de se encontrarem informações ou indícios, “pistas”, como diria Ginzburg, de suas existências nos quadrinhos é, por demais suficiente para considera-las a uma análise mais detalhada.
Bibliografia:
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. IN Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HOBSBAWM. Eric. Sobre história: ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1998
BLOCH, Marc. Apologia da História ou Oficio de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2001.
MOYA. Álvaro. Shazam!. São Paulo: Perspectiva, 1977. 3ªed. p. 48.
Fontes:
ARCUDI. Jonh; EATON. Scott. Superman, nº 5. São Paulo: Abril, 2000.
NICIEZA. Fabian; DELANEY. Jonh. Liga da Justiça, nº 3. São Paulo: Panini, 2003.
GIFFEN. Keith; MATTEIS. JM de. Liga da Justiça, nº 44. São Paulo: Abril, 1992.
LABAN. Terry; ILYA. A Mão Invisível, nº 1 e 2. São Paulo: Abril, 1998.
SHEPARD. Lucius; WESTON. Chis. DC Comics Vertigo, nº 10. São Paulo: Opera Graphica, 2003.
Por Bernardo Aurélio
Resumo: Os quadrinhos a muito tempo apresentam-se de forma engajada no mundo político-econômico em que se vive devido a utilização dos paradigmas venatório e implícito para construção de uma realidade em seus textos. Neles são encontradas informações sobre a existência de uma concreta “Mão Invisível” que controla o mercado global e da atual construção de um instrumento de segurança para a perpetuação de seu poder, o Big Brother.
Palavras-chave: Quadrinhos, Paradigma Indiciário, Previsão do Futuro, Mão Invisível e Big Brother.
É bem verdade que com o movimento da escola novista e dos Annales o campo dos objetos de pesquisa para os historiadores se expandiu bastante. O recurso ignorado antes, de utilização das mentalidades e da produção da cultura de massa possibilitou o estudo, ainda que tímido, das Histórias em Quadrinhos (HQ’s) como fontes históricas. É somente devido a esta expansão que este trabalho pôde ser realizado.
Apesar da fantástica concepção de mundo encontrado na enorme maioria das HQ’s, as revistas de super-heróis, gênero mais consumido no mercado americano, com uma ciência mais próxima da magia que da razão, com super-seres voando em todos os cantos da Terra, há muito tempo elas apresentam-se de forma engajada em sua concepção da sociedade, da economia e da política. Este engajamento parte de um princípio básico de percepção da realidade. Essa percepção, claro, precisa ser aguçada e aprofundada. Desta necessidade, autores de quadrinhos, da mesma forma que historiadores, ou pesquisadores sociais, constroem um conhecimento embasado em fatos e não somente em suas percepções de mundo. Entretanto, existe uma capacidade de compreensão de uma realidade a partir de detalhes invisíveis aos olhos de leigos, isto devido, principalmente, a um fator conhecido pelos historiadores como paradigma venatório e paradigma implícito, ou indiciário, de acordo com Carlo Ginzburg: “Ambos (venatório e implícito) pressupõe o minucioso reconhecimento de uma realidade talvez ínfima, para descobrir pistas de eventos não diretamente experimentáveis pelo observador” (GINZBURG. 2003, p.152, 153). Este “reconhecimento” e “pistas” permitem ao pesquisador não apenas ter uma noção mais ampla da realidade como também pode chegar a prever acontecimentos possíveis ou perceber fatos esquecidos.
O paradigma indiciário baseia-se, de acordo com o estudo de Ginzburg, na capacidade do pesquisador concentrar-se em detalhes da mesma forma que um detetive estuda um crime, procurando pistas como fios de cabelo, ou quando um médico analisa os sintomas mais minuciosos para determinar qual doença atinge seu paciente. “O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente” (p. 152).
Muitos escritores de HQ’s possuem esta característica e, a partir dela, podem produzir estórias ambientada em um passado possível, um presente desconhecido ou um futuro provável. Um exemplo disto pode ser encontrado no personagem Flash Gordon, de Alex Raymond, que com suas aventuras espaciais, desde 1934, quando fora criado, serviu como antecipação no desing de futuro e serviu inclusive como estudo para a Nasa:
Ao folhear as páginas de A Conquista do Espaço, um livro editado pela NASA, encontro uma informação tão curiosa quanto surpreendente: os cientistas de Houston, velhos aficcionados dos comics, encontraram em Flash Gordon, a solução para meia dúzia de problemas sérios, em matéria de navegação espacial...
O melhor exemplo é a pistola que o primeiro astronauta americano usou para se locomover no espaço sob controle. A idéia surgiu da leitura de uma das primeiras aventuras de Flash Gordon, publicada muito antes da elaboração do projeto Apolo1 (MOYA. 1977).
Raymond não descobriu como contornar certos problemas de navegação espacial, afinal ele era especializado em desenhar quadrinhos, mas anteviu, mesmo em relação aos conceituados funcionários da NASA, quais seriam os melhores métodos e medidas para se locomover no espaço. Perguntar como ele chegou a esta conclusão remete a uma simples resposta: a construção de um paradigma indiciário voltado para a capacidade de prever o futuro. De alguma maneira, os mínimos detalhes da vida de Raymond, vivendo sua vida, experimentando determinados conhecimentos adquiridos diariamente, juntando informações e objetivando em seguida para criar seu Flash Gordon, tudo lhe possibilitou perceber algo ainda não notado pela maioria.
Falar de previsão do futuro pode parecer absurdo em qualquer ambiente acadêmico. Entretanto, o principal objeto de estudo da história, o passado, possui suas controvérsias. Segundo Marc Bloch:
(...) a própria idéia de que o passado, enquanto tal, possa ser objeto de ciência é absurda. Como, sem uma decantação prévia, poderíamos fazer, de fenômenos que não tem outra característica comum a não ser não terem sido contemporâneos, matéria de um conhecimento racional? (BLOCH).
Carlo Ginzburg também corrobora com esta dificuldade do fazer histórico:
Ora, é claro que o grupo de disciplinas que chamamos indiciárias (incluída a medicina) não entra absolutamente nos critérios de cientificidade deduzíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas, que tem por objetivo casos, situações e documentos individuais, enquanto individuas, e justamente por isso alcançam resultados que tem uma margem ineliminável de casualidade... A ciência galileana tinha uma natureza totalmente diversa, que poderia adotar o lema escatológico individuum est ineffabile, do que é individual não se pode falar...Tudo isso explica por que a história nunca conseguiu se tornar uma ciência galileana (GINZBURG. 156)
Como preferem usar os historiadores, a capacidade de “antevê” os fatos é seriamente discutida por autores consagrados do campo histórico, como Eric Hobsbawm:
(...) passado, presente e futuro constituem um continuum. Todos os seres humanos e sociedades estão enraizados no passado – o de suas famílias, comunidades, nações ou outros grupos de referencias, ou mesmo de memória pessoal – e todos definem sua posição em relação a ele, positiva ou negativamente. Tanto hoje como sempre: somos quase tentados a dizer “hoje mais que nunca”. E mais, a maior parte da ação humana consciente, baseada em aprendizado, memória e experiência, constitui um vasto mecanismo para comparar constantemente passado, presente e futuro. As pessoas não podem evitar a tentativa de antever o futuro mediante alguma forma de leitura do passado. Elas precisam fazer isto. Os processos comuns da vida humana consciente, para não falar das políticas públicas, assim o exigem. E é claro que as pessoas o fazem com base na suposição justificada de que, em geral, o futuro está sistematicamente vinculado ao passado, que, por sua vez, não é uma concatenação arbitrária de circunstancias e eventos. As estruturas das sociedades humanas, seus processos e mecanismos de reprodução, mudança e transformação, estão voltadas a restringir o numero de coisas passíveis de acontecer, determinar algumas das coisas que acontecerão e possibilitar a indicação de probabilidades maiores ou menores para grande parte das restantes (HOBSBAWM, 1998).
Hobsbawm nos confirma que a “memória pessoal” de Alex Raymond foi fator fundamental para que ele pudesse antever o futuro através da leitura de seu próprio passado, de suas experiências e processos comuns da vida consciente. Perceber que certos artistas, ao contarem uma estória, utiliza-se dessa bagagem social, dessa percepção de mundo para criarem um cenário plausível num tempo qualquer, é compreender que esse criador, ignorando ou não o fato, utiliza-se do poder desse paradigma indiciário e da capacidade de antevê o futuro que nos falam Ginzburg e Hobsbawm.
A invasão norte-americana ao Iraque em 2003, ou mesmo em 1991, é outro exemplo de que os quadrinhos, na construção de suas ficções, anteciparam-se sim, ao fatos do mundo real. Na estória intitulada Superpoder (Superman: Superpoder. nº 05. Ed. Abril. Dez, 2000. Pág. 99-162.), um novo super-herói chamado apenas de “Mark” alia-se a personagens clássicos como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha no grupo conhecido como Liga da Justiça (LJ). Desejando fazer mais que salvar algumas cidades de assaltos a bancos, ou outras atitudes heróicas do tipo, banais por assim dizer, decide realizar algo mais importante em relação ao mundo e, mesmo contra a opinião de todos seus aliados, invade um país fictício do Oriente Médio chamado Kirai com a intenção de depor um governador tirano do poder, salvando todo seu povo e levando-os à liberdade. Não é difícil encontrar fatos semelhantes em outras revistas (Liga da Justiça, O desenho da TV: Na Estrela Perdida, nº 03, Ed. Panini. Abril, 2003 (nos EUA, em maio de 2002).pg.15), mas o exemplo mais incrível é a de uma estória publicada originalmente em 1990 (Justice League Quarterly # 1), também em uma revista da Liga da Justiça (Publicado no Brasil apenas em agosto de 1992, na revista LJ nº 44. Editora Abril), onde, em uma reunião de representantes das maiores empresas do globo, “(d)as pessoas que movem nossa nação e o mundo”, são definidas metas para se produzir e patrocinar um grupo de super-seres denominado Conglomerado, que estaria sobre inteira tutela destes homens.
O Conglomerado seria utilizado como um grande empreendimento de relações públicas, pois a atual sociedade, que responde tão instintivamente a imagens, enxerga os heróis como símbolos da verdade e justiça. Nada melhor para limpar o nome de empresas capitalistas pintadas por muitos como “vilões do mundo”, responsáveis pelas desigualdades e misérias ao redor do globo. Pois bem, uma das tarefas que o grupo recebeu foi, com a desculpa de instaurar um governo democrático, intervir em uma pequena ilha da América Central, controlada por um ditador megalomaníaco, mas fica claro a existência de motivos econômicos. Em comparação ao Iraque, geograficamente é diferente, mas, ideologicamente, não. Tanto na realidade quanto na ficção se utilizaram de argumentos políticos de salvação e libertação nacional e de instauração da democracia para invadir militarmente determinados países que não agradavam aos EUA ou a certas facções de sua economia.
Não é exatamente com a intenção de buscar provas do paradigma indiciário e da capacidade de antevê o futuro dos escritores de quadrinhos que se pretende trabalhar aqui. Isso é apenas importante para que se dê credibilidade às futuras revelações. É a respeito deste grupo de empresários que se reunira para formar o Conglomerado que será discutido a partir de agora... É bem sabido que certas indústrias de base, como siderúrgicas e petrolíferas, detém um enorme poder no mundo simplesmente por serem fundamentais no estilo de vida contemporâneo. O final do século XX configurou-se com o surgimento de um novo tipo de indústria: a da informação, da comunicação, considerados por alguns como o quarto poder do Estado. Esses empresários, industriais, seja de qual forem suas áreas, representam uma enorme influência para a sociedade, principalmente devido ao fato de estarem no topo, em um nível global, da cadeia de consumo. Sobre este grupo, pode-se citar a minissérie em duas partes A Mão Invisível.
A respeito do título, pode-se dizer que “Mão Invisível” é o nome dado à tendência abstrata da produção e consumo mundial, ou seja, é algo intangível que empurra o mercado. Na minissérie (publicada em setembro e outubro de 1998, pela editora Abril) nos é apresenta um fantástico mundo incrivelmente real onde esta mão invisível realmente existe. Concretiza-se na figura de pessoas como as que foram apresentadas em Conglomerado, ou seja, o grupo dos mais ricos, poderosos e influentes empresários que, em reuniões comuns, como quaisquer outras que se conhece, decidem no que devem ou não investir, onde o planeta Terra representa um leque de variedades e determinam o que se irá produzir e consumir nos próximos anos. Ou seja, eles são a “tendência” concreta.
Tudo é bastante explicado, principalmente o fato da impossibilidade de um grupo como este ter surgido de maneira natural ou em pouco tempo. Muito pelo contrário, suas origens remontam o nascimento do sistema monetário, o que já conta cerca de 500 anos, e a centralização dos Estados Nacionais no século XVIII, com a eventual união da burguesia com nobreza. Fica claro que esta “mão” não é o Estado, mas se encontra acima dele (ver anexo, fig 5).
Nessa minissérie, em relação aos homens que secretamente armavam planos para dominar a nova economia liberal nascente, lê-se:
Para alcançar seus fins, nenhum meio, nem o mais odioso estava fora de cogitação. Mas sua mais poderosa arma veio de uma idéia, a noção do livre comércio, popularizada por seu mais ilustre divulgador, Adam Smith. A noção de que mercados poderiam ser automaticamente manipulados por uma ‘mão invisível’ foi o disfarce perfeito para seus projetos. Eles estavam tão tomados por esta idéia que adotaram a ‘Mão Invisível’ como seu nome oficial e assim são conhecidos desde então. (LABAN, 1998. n. 1, p. 8)
De uma forma ou de outra, abstrata ou não, a Mão Invisível existe e se a historia tradicional ignora o fato de que ela possa ser concreta ou intensamente atuante, não se deve simplesmente ignorá-la. É notório o saber de quê o que não se conhece, a informação entre linhas, o não revelado, são de fundamental importância para a compreensão do quadro histórico em todos os lugares no mundo. De certo que, como o título deste artigo coloca, o que se está estudando aqui sãos as possibilidades fantásticas que autores de quadrinho podem conceber através através de deduções lógicas e perceptíveis, mesmo que sejam incapazem de provar. Portanto, acreditemos na fantasia de que a Mão Invisível é concreta e presente a todo instante.
A Mão Invisível detém, então, um grande poder de controle e ordem global, e para se manter nesta posição privilegiada é preciso que se construa artifícios de perpetuação do poder. Não é preciso, entretanto, muito estudo para se perceber que o mundo atual configura-se na procura da segurança e manutenção do status quo partindo do simples exercício da observação. Quando se entra em ônibus, supermercados, postos de gasolina e até mesmo, bancas de revista, é comum se encontrar cartazes vistosos com a frase: “Sorria! Você esta sendo filmado”. Até mesmo ruas movimentadas, avenidas ou campos de futebol, áreas de grande aglomeração de gente, são hoje vigiadas por lentes de câmeras de vídeo.
“Se queres uma imagem do futuro, pense numa bota pisando um rosto humano – para sempre” (O’Brien, in 1984, de George Orwell). Esta frase, de conhecida obra, nos remete a um mundo onde sua sociedade é, a todo instante, observada e controlada pelo olho do Big Brother (BB). O Estado subjuga seu povo e, vigiando-lhes a todo momento, consegue manipulá-los e manter-se no poder, impedindo qualquer manifestação ou rebelião ainda em suas mais primárias origens. Desta forma, os que estão em cima nunca cairão.
O que se observa na contemporaneidade é um estágio inicial na construção do BB, onde o poder se encontra dividido em vários interesses privados, mas com as mesmas metas colocadas no livro de George Orwell, de observação, segurança e perpetuação do privilégio. Ou seja, ainda não existe um ponto para onde convergiriam todas estas informações captadas pelas lentes em inúmeros pontos das cidades. Ainda não existe o Grande Irmão.
Desta forma pode-se chegar à conclusão de que o Big Brother, como o já se vivencia hoje, em seu processo de instalação, é um instrumento que a Mão Invisível, ou pequenos empresários, utilizam para manter-se em sua posição, sem eventuais perigos, pois ele impede, inibe o homem de qualquer atividade fora-da-lei.
Numa pequena estória, de apenas 8 (oito) páginas, intitulada Vigilante, publicada pela editora Opera Graphica, na revista DC Comics Vertigo nº 10, em maio de 2003, é apresentado um mundo catastrófico em um futuro bastante próximo onde a sociedade observa-se a si própria e esquece do mundo a sua volta, não se dando conta que, acima deles, um grupo os observa observando (ver anexo, fig 6).
Numa cena em que o protagonista conversa com uma garota através de um monitor de televisão (interessante que eles são vizinhos, moram no mesmo prédio, mas não tem contato carnal, preferem o vídeo), é colocado o seguinte diálogo:
– Você andou saindo? Todos estão ocupados observando uns aos outros. O que é mais incrível é que alguém ainda esteja tentando se relacionar. Quer dizer, quem se importa com isso?
– Já faz um mês que não saio. Tem muita coisa acontecendo por aqui. Quase fiquei sem comida.
(...)
Já te falei da Jane, a mulher que me observa? Ela tem me olhado desde antes da revogação do direito da privacidade. Nos tempos em que ele era legal, ela viu umas portas muito esquisitas. Uma vez ela estava navegando ao acaso e começou a observar um homem estranho (...) Numa outra vez acabou observando uma sala que ficava sempre escura, um breu total, exceto por um vão de porta que deixava passar uma luz Branca e intensa. Havia uma figura na porta, apenas uma silhueta (...) Não teve como dar um close. A única coisa que acontecia era que, de vez em quando, a figura saia e fechava a porta (...) Ela se sentia como se estivesse olhando para algo muito grande e estranho para ser realmente visto.
(SHEPARD. 2003, p. 4-5)
O protagonista conclui a conversa dizendo que:
...[a figura era] o destilado irredutível do universo, o impulso básico do cosmos de observar a si próprio, de se definir no fim das contas e se consumir no processo. Quando todos estiverem, finalmente observando a todos, tudo irá desaparecer. Esse é o sentido de toda a falta de sentido (SHEPARD. 2003, p. 6).
Dessa forma, a estória mostra um retrato caricatural de nossa sociedade. E o que é uma caricatura, senão o exagero de uma realidade? É apresentado um mundo em que as pessoas observam-se uns aos outros e que existe algo acima delas, discreto e misterioso, o que poderia ser a própria Mão Invisível. Nas gravuras das páginas e nos diálogos encontra-se transfigurada a alienação do povo, que, tão preocupado em suas individualidades de observar e ser observado, esquece-se da condição do mundo. As ruas em volta do prédio onde moram os protagonistas está um caos e eles não ligam (ver anexo).
Um outro exemplo mais conhecido da utilização do Big Brother nos quadrinhos é “V de Vingança”, escrita pelo inglês Alan Moore e desenhada por David Lloyd. Esta obra foi originalmente criada no início da década de oitenta e teve uma recente adaptação para o cinema, em 2006. Em V de Vingança a Inglaterra é governada por um poder ditatorial que usa a mídia de várias maneiras para controlar e vigiar a população. Interessante observar que o governo é dividido em várias seções, existe, por exemplo, os “agentes dedos”, que são policiais. De certa forma, é possível notar a presença do conceito da Mão Invisível no governo utilizando seus dedos para policiar a população.
Pode-se afirmar, com toda certeza, que a mão invisível existe, talvez da forma que a revista demonstre, talvez apenas como uma tendência abstrata, mas é por isso que se reafirma que a realidade dos quadrinhos é fantástica, surpreendente e, acredite, crível. É importante que fique claro que não se deve relacionar a produção dos quadrinhos com a futurologia, até mesmo porque as ciências humanas não aceitam este conhecimento como válido. O que as HQ’s fazem são representação de um tempo passado ou presente e previsões fictícias com embasamento no real para o futuro, utilizando-se dos paradigmas venatório e implícito. Ao mesmo tempo que também não se deve esquecer que os quadrinhos se propõe unicamente a ser um veículo de comunicação de massa e arte, consubstanciando-se como literatura iconográfica. De certo que, sabendo de tudo isto, o texto colocado nos balões e os desenhos dos quadrinhos são totalmente suscetíveis a erros, simplesmente pelo fato de serem produções humanas.
Assim sendo, a mão invisível e o Big Brother podem, perfeitamente, não se apresentarem como as HQ’s os abordam, mas isso, sobre maneira, não diminui o significado da produção quadrinhística a respeito deles. O simples fato de se encontrarem informações ou indícios, “pistas”, como diria Ginzburg, de suas existências nos quadrinhos é, por demais suficiente para considera-las a uma análise mais detalhada.
Bibliografia:
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. IN Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HOBSBAWM. Eric. Sobre história: ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1998
BLOCH, Marc. Apologia da História ou Oficio de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2001.
MOYA. Álvaro. Shazam!. São Paulo: Perspectiva, 1977. 3ªed. p. 48.
Fontes:
ARCUDI. Jonh; EATON. Scott. Superman, nº 5. São Paulo: Abril, 2000.
NICIEZA. Fabian; DELANEY. Jonh. Liga da Justiça, nº 3. São Paulo: Panini, 2003.
GIFFEN. Keith; MATTEIS. JM de. Liga da Justiça, nº 44. São Paulo: Abril, 1992.
LABAN. Terry; ILYA. A Mão Invisível, nº 1 e 2. São Paulo: Abril, 1998.
SHEPARD. Lucius; WESTON. Chis. DC Comics Vertigo, nº 10. São Paulo: Opera Graphica, 2003.
Assinar:
Postagens (Atom)