sexta-feira, 28 de novembro de 2008
O Quadrinhista Caio "Zed" Thiago
Caio Thiago de Andrade Oliveira nasceu em 1979. É natural de Piripiri – Piauí, segundo filho do bancário Simplício Mário e da professora e funcionária pública, Maria dos Remédios. Desde criança sempre leu quadrinhos, antes mesmo se alfabetizar. Seu pai presenteava a ele e a seus dois irmãos (Isaac Bruno e Bernardo Aurélio) com várias revistas, principalmente de super-heróis: Homem-Aranha, Hulk, Super-Homem, entre outros. Incentivado pela leitura e pelo ambiente em que foi criado, se tornou um expoente da arte seqüencial no Estado. Thiago defende a participação do pai na construção desta sua personalidade artística:
Normalmente os pais acham que o filho tem que ser um médico, um advogado, como minha mãe acha. Meu pai sempre achou bacana esse lance de eu querer viver da minha arte. Os pais esperam que os filhos façam o que não fizeram. “Meu filho quer viver de arte”. Isso é muito pra ele. Pelo menos eu acho... (THIAGO. 2008).
O pai sempre foi envolvido com o meio cultural de Piripiri, participou de um grupo chamado “Balaio”, onde se escrevia, lia e atuava. A casa em Piripiri, hora ou outra, hospedava pintores, atores e músicos que visitavam a cidade. Sempre houve uma aproximação artística dos filhos com estes representantes da cultura local. O pai envolvia-se: pintou, escreveu e atuou, mas pôde continuar tentando.
A mãe, quando percebeu o profundo envolvimento do filho com a arte das histórias em quadrinhos, como toda boa mãe, preocupou-se com o futuro do filho, já que o cenário profissional de artistas na área do desenho, mas especificamente para os quadrinhos, não é muito promissor. Então, a mãe sempre incentivou que o filho realizasse outros trabalhos e estudos. Em 1996, Thiago participou de um concurso no qual foi premiado. Na ocasião, a mãe, que sempre fora preocupada, mandou uma carta para o jornal O DIA1:
"Segunda-feira, dia 26 / 08, lendo “O Dia”, na página 19 do “Torquato”, vi algo super interessante. Um jovem médico, Dr. Willdaves, fã de quadrinhos, desenha e escreve as emoções de uma coisa que até então achava “anormal e infantil” para meu filho, Caio Thiago, de 17 anos (pois ele faz o mesmo que o Dr. Will). Caio Thiago concorreu com os leitores da revista Comics Generation de todo o Brasil e ganhou o 1º lugar com a promoção “Batmix”. Maria.
Ok. D. Maria. Achamos o trabalho de seu filho legal e acreditamos que, se ele praticar mais, poderá vir a ser um dos talentos que o estúdio Artecomix está exportando. Agora, essa coisa de que ler quadrinhos é “anormal e infantil” já foi superada há muitas décadas. Tratava-se de um preconceito bobo e sem bases reais, que ruiu com estudos sérios e bem fundamentados de pesquisadores dos fenômenos da cultura de massa (MACHADO. 1996)."
Este texto nos revela o quanto parecia difícil para a mãe ver o filho inundado cada vez mais em um universo onde não enxergava expectativas profissionais, mas apenas uma visão preconceituosa que surgiu com força na década de 50, quando os quadrinhos eram o maior produto de consumo de massa entre as crianças de todo o mundo e especialistas, ou psicólogos como o Dr. Fredric Wertham no livro “Sedução do Inocente”, imortalizaram crenças erronias contra este tipo de leitura.
Willdaves Machado apresenta para Dona Maria a possibilidade de um mercado estrangeiro se Thiago continuasse treinando. De certa forma, este concurso simples, no qual foi premiado apenas com três bonecos do Batman, foi uma maneira dos seus pais e irmãos enxergarem que, apesar da pouca idade, Thiago começava a se destacar naquilo que fazia e que poderia ser realmente um profissional. Entretanto, a vida continuava. Quando entrou em uma universidade, em 2000 pela UESPI, estudou Licenciatura Plena em Inglês, pois intencionava fazer um intercâmbio e morar nos Estados Unidos ou Japão, nunca pensando em lecionar, mas sim facilitar seu diálogo com o mercado estrangeiro de produção de quadrinhos. As únicas aulas que chegou a ministrar foi no período de prática de ensino, o qual é obrigatório para a conclusão do curso.
Chegou a iniciar um curso técnico de artes no CEFET, mas não o concluiu, pois não conseguia se envolver com outros tipos de manifestações culturais que não fossem o desenho voltado exclusivamente para a arte seqüencial dos quadrinhos. Chegou a ser funcionário público durante quase dois anos na SEDUC, onde realizava trabalhos burocráticos e conseguia grana para comprar mais quadrinhos e jogos de vídeo game, outra grande paixão em sua vida.
“Meu pai foi o grande mecenas da minha vida”, disse Thiago em entrevista. “Ele que me patrocinou”. Em 2006, com a ajuda do pai e incentivado pela família, Thiago foi morar em São Paulo para fazer um curso em uma das poucas academias de ensino desta arte no país: a Quanta Academia de Artes. Foi lá que conheceu Marcelo Campos, o primeiro brasileiro a trabalhar profissionalmente numa grande editora dos Estados Unidos. Neste ano e meio que ficou em São Paulo, conheceu outros grandes representantes dos quadrinhos nacionais em produção hoje, foi aluno de Octavio Carrielo, de Greg Tocchine, dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá. Durante esse período foi a um festival de quadrinhos onde assistiu a uma palestra de Ivan Reis, desenhista do principal título do Super-Homem nos Estados Unidos e freqüentemente listado entre os melhores desenhistas do mercado norte-americano. Muitos dos professores e inclusive o próprio Marcelo Campos, disseram que seu trabalho já estava profissional e que deveriam, ao invés de ensiná-lo, agenciá-lo. Foi nessa escola que conheceu Vitor Ishimura, um dos professores que vendeu os primeiros trabalhos de Thiago para o exterior, mais especificamente para o editor independente Mike Kennedy. O trabalho era, a princípio, uma ficção científica chamada Prism, onde Thiago faria apenas cinco páginas, que viraram vinte por causa do editor norte-americano ter gostado do seu traço.
Atualmente, o editor Mike Kennedy leu um trabalho autoral de Thiago em produção, chamado Super-Ego, e se agradou do produto. Pretende agenciar este projeto e vender para alguma editora norte-americana, como a Dark Rorse ou Image, editoras que estão entre as cinco maiores nos Estados Unidos. Agora estão trabalhando juntos e é a grande expectativa profissional de Thiago, que produz em casa visando o mercado externo pois não consegue enxergar espaço no raquítico cenário nacional.
Nesse período que passou em São Paulo, morou em um apartamento com dois estudantes da Academia Internacional de Cinema. Foi uma experiência interessante aonde chegou a produzir estudos de figurino para os curtas-metragens que os colegas de quarto produziam. Também realizou storyboards de algumas cenas. Segundo Thiago, “assim como Frank Miller (Sin City), também já ‘trampei’ com cinema”, onde, na verdade, os quadrinhos se encaixam muito bem, tanto que, Eduardo Sertório, um dos colegas, pediu autorização para adaptar uma história em quadrinhos do Thiago para cinema. A experiência levou Thiago inclusive ao set de filmagem, fazendo figuração e “morrendo” logo na primeira cena. A obra intitulada “Sobre a ponte” tornou-se “Hattari” e foi premiado como “o melhor filme universitário de São Paulo” em 2007.
Em 2008, através do fórum do site Multiverso Bate Boca (MBB), ficou sabendo e participou do concurso Comic Book Idol, uma espécie de programa “Ídolos” dos quadrinhos divulgado na Internet. Foram centenas de concorrentes de onde foram selecionados apenas um brasileiro, seis estadunidenses, dois ingleses e um canadense. Os concorrentes produziam, semanalmente, algumas páginas seguindo um roteiro comum a todos. Um por um os concorrentes foram eliminados através de votos dos internautas. Thiago chegou à semi-final. Infelizmente, ainda não foi daquela vez.
Entretanto, bem antes disto, quando ainda era criança, Thiago teve outras histórias curiosas de serem contadas, como o já citado envolvimento com o mundo dos Vídeo Games. A princípio, teve um Atari, que não o estimulou o suficiente, apenas anos depois, no início de 1990, quando os filhos foram presenteados pelos pais com um Mega Drive, que o mundo dos jogos começou realmente a fazer sua cabeça. A atenção voltada para o console plugado na TV era tanta que ele e os irmãos deixaram de colecionar gibis e toda a mesada era voltada para a compra de novos cartuchos, de novos jogos. Engana-se quem pensa que isso foi um fator negativo para a produção de Thiago. Naquela época, primeira metade da década de 90, praticamente não havia quadrinhos japoneses nas bancas de revistas. O mangá era algo muito exótico, entretanto, o traço dos desenhos japoneses era muito utilizado no caráter desing dos personagens dos jogos. Thiago pôde ser influenciado pelo mangá através do vídeo game antes mesmo das revistas impressas, que só vieram se popularizar em 1994 com a exibição de Cavaleiros do Zodíaco na TV e depois do ano 2000, com o título Dragon Ball nas bancas.
O jogo de luta chamado Street Fighter foi uma das principais influências. Thiago chegou a produzir uma releitura dos personagens, inspirado pela adaptação do jogo para o cinema, a qual achou tão ruim que acreditava conseguir fazer melhor. Thiago criou uma trama de quase oitenta páginas. É a primeira história em quadrinhos longa que chegou a produzir.
Apenas em 1992 Thiago volta a ler e colecionar quadrinhos. Na época, a editora Abril lançou a primeira edição de Homem-Aranha 2099, desenhada por Rick Leonard que foi o artista responsável pelas novas influências no traço de Caio Thiago, segundo o próprio.
Thiago acredita que seu estilo não é muito comercial, “não é modinha”. Segundo ele, muitos professores da Quanta e o próprio Mike Kennedy acham que trata-se de um “estilo particular que me impede de entrar no mercado. Não consigo copiar traço dos outros”. Mesmo acreditando nisto, é sempre impossível negar as inspirações externas e Thiago coloca bem a lista dos artistas que se seguem depois de Leonard: a narrativa do mangá (independente de um artista em particular), Eduardo Risso (de 100 Balas), Frank Quitely, Alan Davis, Keith Gifen, Cláudio Castelinne e vários desenhistas dos fumetti (quadrinhos italianos), como Ivo Milazzo (Ken Parker) que admira, pois acredita que o mercado italiano é surpreendente pela qualidade geral dos seus artistas e pelo próprio ritmo de produção europeu, muito voltado para álbuns longos, onde o artista, às vezes, pode se dedicar um ano inteiro a um único trabalho, diferente do mercado norte-americano, onde acredita que existem muitos profissionais ruins ou abaixo da média.
Thiago acredita que trabalha muito “mais por diversão do que por qualquer outra coisa. Fico muito envaidecido se alguém vê o que eu produzo como arte”. Apesar da modéstia, enxerga a produção industrial dos quadrinhos, assim como no cinema, uma manifestação legítima de arte, coletiva ou não, e não se incomoda com a possibilidade de produzi-la para um mercado de entretenimento cultural.
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
terça-feira, 18 de novembro de 2008
Arnaldo Albuquerque e sua obra
Arnaldo Albuquerque e sua obra
Por Bernardo Aurélio
No ano de 2002 eu tentava organizar a quarta edição de uma pequena, porém calorosa feira de quadrinhos no Piauí. Já tendo noção do que representava a obra de Arnaldo Albuquerque para a história da arte do Estado, decidi convidá-lo a ministrar algumas palavras no referido evento. Para me ajudar nesta missão, chamei ninguém menos que Antônio Amaral (autor do Hipocampo, revista vencedora do HQ Mix, Quadrinho Independente, em 2000), tornando a palestra ainda mais agradável e interessante, já que os dois são verdadeiros “monstros”.
Fomos eu, Pedro Victor (que me ajudava na organização) e Amaral, partimos ao encalço do Arnaldo. Em frente a uma casinha na rua José Santos e Silva, no centro de Teresina, nós três batíamos palmas firmemente. Com a naturalidade de quem estava habituado a isto, Amaral disse que ele não estava em casa, mas que seria facilmente encontrado, afinal, havia poucos botequins pela vizinhança. Na segunda parada, lá estava ele: alto, magro, cabelos grisalhos, barba por fazer, camisa quadriculada, sandália tipo franciscano e um enorme óculos, emoldurando seu rosto. Ali, sentado em um tamborete, com uma dose de branquinha ao lado, conversando com uns amigos no barzinho da dona Bebé, sua prima.
Falamos. Disse-lhe que queria uma palestra. Ele topou, não sei se ficou entusiasmado. Arnaldo e Amaral, dois artistas tão autorias, falariam para vários leitores de X-men e Dragon Ball Z. Tinha de ser um sucesso. No dia marcado, a meia hora de se iniciar a palestra, Amaral chega sozinho e perguntando por seu colega. “Se eu sei...”, respondo. Hora marcada e nada! Ele parte à caça de Arnaldo, mas nem sinal. Amaral faz a palestra sozinho, e hoje, quando pergunto a Arnaldo porque faltou ou aonde teria ido, ele responde: “Você já havia me procurado antes?”.
Dois anos depois, voltei àquela mesma casa, bati palmas e decidi ir até a dona Bebé. E lá estava. Quando lhe disse que eu organizava um evento, que queria uma exposição sobre o que havia produzido nas artes plásticas, porque queria homenageá-lo e criar um troféu com seu nome para premiar os melhores quadrinhistas que aparecessem, e mais, preparar uma reedição comemorativa de 30 anos de Humor Sangrento, publicação de sua autoria, além de dizer que seu trabalho era objeto de estudo da minha monografia de conclusão de curso, ele sorria para si mesmo, coçando levemente a cabeça, acanhado e repetindo: “...Quanta homenagem!...”.
Afinal de contas, o que este figurão tem de especial? Arnaldo, teresinense de 1952, é planejador gráfico, mas divide seu currículo em um considerável leque artístico que aponta o pluralismo de sua capacidade: faz pintura, publicidade, fotografia, cinema, jornalismo, quadrinhos e organizou importantes eventos musicais no Piauí. Nos mais completos catálogos de artistas plásticos regionais, seu nome está incluso, mostrando suas pinturas. As ilustrações estão presentes em inúmeras capas de livros e cartazes de eventos, são também responsáveis por lhe premiar no exterior, como na Argentina e México. Teve páginas inteiras, tiras e charges em jornais locais, como o O Dia, publicou no Pasquim, o mais importante periódico cultural do país e fez a diagramação do Grama (possivelmente o primeiro jornal mimeografado do Brasil, como teria dito Heloísa Buarque, segundo o próprio Arnaldo), além de participar em outros nanicos. Seu trabalho competente na fotografia lhe possibilitou filmar com super-8 uma quantidade considerável de curtas, um dirigido pelo próprio Torquato Neto (grande expoente do movimento tropicalista), que inclusive se tornou seu amigo e grande influência. Na década de 1970, organizou o Show Piau, evento de intenso caráter popular onde revelou grandes nomes da música piauiense, como Dovalino, Couto Filho, Geraldo Brito e Rosinha Lobo. Sua habilidade com desenho e câmera fizeram de Arnaldo um premiado em concursos no Maranhão, Sergipe, Acre e Espírito Santo, com a animação Carcará Pega Mata e Come. Além de tudo isto, no ano de 1977, nosso artista lança a revista Humor Sangrento, primeira publicação de quadrinhos do Piauí. Nas 36 páginas voltadas para o quadrinho na edição, foram produzidas 23 pequenas estórias. Fica claro que a grande maioria delas limitavam-se a apenas uma ou duas páginas, aliás, esta é uma das principais características do autor: ser breve, mas contundente. Para que se entenda melhor sua obra em quadrinhos é preciso conhecer mais um pouco sobre ele próprio.
A infância em Teresina, seu contata com o forte regionalismo nordestino, seja na música, no artesanato ou mesmo no simples modo de viver, a presença constante da leitura de quadrinhos, as inúmeras seções no cine Rex e, conseqüentemente, a paixão pelo cinema, a convivência com o período da ditadura militar, sua partida para o Rio de Janeiro em 1969, aos 17 anos, o contato com o novo na política e o engajamento artístico tanto em películas mais ousadas, como as de Glauber Rocha e Ruy Guerra, como nos quadrinhos underground de Robert Crumb e Gilbert Shelton, da lendária revista norte-americana Zap Comix, tudo isso, entre outros detalhes importantes, fez com que, em 71, quando Arnaldo retorna a Teresina, sua bagagem, repleta de cultura popular vanguardista, o colocasse em destaque no cenário cultural piauiense.
Em se tratando do conteúdo de Humor Sangrento, pode-se destacar suas características conceituais regionalistas, da mesma forma que o forte sentimento antiimperialista e a contextualização com a política da ditadura brasileira. Em De Como Meu Herói Matou o Bandido, por exemplo, percebe-se uma estória traçada em dois focos de acontecimentos simultâneos, culminando no confronto entre dois mundo ligeiramente semelhantes: O do cangaceiro contra o do velho oeste norte-americano. É tratado da defesa, como também, da luta e da “revalorização do nordestino”, enfrentando e conquistando seu espaço, não apenas na vida, mas também no mercado editorial brasileiro. Carcará, uma outra estória, tem suas semelhanças com De Como Meu Herói Matou o Bandido mostrando a luta contra os quadrinhos estrangeiros, quando Capitão América é morto por uma pedrada de baladeira, mas é bem mais que isso: mostra a imposição imperialista norte-americana, simbolizada claramente pela águia, retirando a vida e as possibilidades de um nordestino recém-nascido, como também uma luta desigual, da mesma forma que Davi versus Golias. Cabeça de Cuia e Num Se Pode são releituras de lendas piauienses, atualizando nosso folclore. Em Censurado e Deduragem, temos um belo retrato de como Arnaldo poderia apresentar nosso país a quase trinta anos. Isso, sem ainda se aprofundar na quantidade de técnicas que utilizou para edificar sua obra: se fossem bem analisadas as estórias Hara-Kiri, De Como Meu Herói Matou o Bandido, A Cavalaria Passa. O Cão que Ladra Morre, Parir Sempre e mais uma ou duas sem título que se encontra na revista, poucos afirmariam, com plena certeza, que se trataria do mesmo autor.
Humor sangrento é um único exemplo de onde já se é possível visualizar o pluralismo da concepção artística de Arnaldo, afinal, como ele próprio considera, a revista é um grande manual que apresenta ao leitor diferentes técnicas de construção do quadrinho.
Arnaldo Albuquerque, para nossa felicidade, ainda produz, alguns de seus super-8 estão sendo trabalhados para uma possível restauração. Os desenhos que originaram as animações, centenas de papezinhos manteiga, aguardam serem novamente animados. Suas telas estão espalhadas em casas de amigos e desconhecidos. Infelizmente, o que você tem em mãos contempla apenas uma parte de sua produção nas artes gráficas, ficando ainda desprestigiado, de forma merecida na história, grande parte de sua obra em outras áreas.
Em 2007 a Humor Sangrento contempla 30 anos de lançamento e sua reedição reformulada e ampliada é um presente e uma introdução ao mundo do Arnaldo... Aproveite!
Por Bernardo Aurélio
No ano de 2002 eu tentava organizar a quarta edição de uma pequena, porém calorosa feira de quadrinhos no Piauí. Já tendo noção do que representava a obra de Arnaldo Albuquerque para a história da arte do Estado, decidi convidá-lo a ministrar algumas palavras no referido evento. Para me ajudar nesta missão, chamei ninguém menos que Antônio Amaral (autor do Hipocampo, revista vencedora do HQ Mix, Quadrinho Independente, em 2000), tornando a palestra ainda mais agradável e interessante, já que os dois são verdadeiros “monstros”.
Fomos eu, Pedro Victor (que me ajudava na organização) e Amaral, partimos ao encalço do Arnaldo. Em frente a uma casinha na rua José Santos e Silva, no centro de Teresina, nós três batíamos palmas firmemente. Com a naturalidade de quem estava habituado a isto, Amaral disse que ele não estava em casa, mas que seria facilmente encontrado, afinal, havia poucos botequins pela vizinhança. Na segunda parada, lá estava ele: alto, magro, cabelos grisalhos, barba por fazer, camisa quadriculada, sandália tipo franciscano e um enorme óculos, emoldurando seu rosto. Ali, sentado em um tamborete, com uma dose de branquinha ao lado, conversando com uns amigos no barzinho da dona Bebé, sua prima.
Falamos. Disse-lhe que queria uma palestra. Ele topou, não sei se ficou entusiasmado. Arnaldo e Amaral, dois artistas tão autorias, falariam para vários leitores de X-men e Dragon Ball Z. Tinha de ser um sucesso. No dia marcado, a meia hora de se iniciar a palestra, Amaral chega sozinho e perguntando por seu colega. “Se eu sei...”, respondo. Hora marcada e nada! Ele parte à caça de Arnaldo, mas nem sinal. Amaral faz a palestra sozinho, e hoje, quando pergunto a Arnaldo porque faltou ou aonde teria ido, ele responde: “Você já havia me procurado antes?”.
Dois anos depois, voltei àquela mesma casa, bati palmas e decidi ir até a dona Bebé. E lá estava. Quando lhe disse que eu organizava um evento, que queria uma exposição sobre o que havia produzido nas artes plásticas, porque queria homenageá-lo e criar um troféu com seu nome para premiar os melhores quadrinhistas que aparecessem, e mais, preparar uma reedição comemorativa de 30 anos de Humor Sangrento, publicação de sua autoria, além de dizer que seu trabalho era objeto de estudo da minha monografia de conclusão de curso, ele sorria para si mesmo, coçando levemente a cabeça, acanhado e repetindo: “...Quanta homenagem!...”.
Afinal de contas, o que este figurão tem de especial? Arnaldo, teresinense de 1952, é planejador gráfico, mas divide seu currículo em um considerável leque artístico que aponta o pluralismo de sua capacidade: faz pintura, publicidade, fotografia, cinema, jornalismo, quadrinhos e organizou importantes eventos musicais no Piauí. Nos mais completos catálogos de artistas plásticos regionais, seu nome está incluso, mostrando suas pinturas. As ilustrações estão presentes em inúmeras capas de livros e cartazes de eventos, são também responsáveis por lhe premiar no exterior, como na Argentina e México. Teve páginas inteiras, tiras e charges em jornais locais, como o O Dia, publicou no Pasquim, o mais importante periódico cultural do país e fez a diagramação do Grama (possivelmente o primeiro jornal mimeografado do Brasil, como teria dito Heloísa Buarque, segundo o próprio Arnaldo), além de participar em outros nanicos. Seu trabalho competente na fotografia lhe possibilitou filmar com super-8 uma quantidade considerável de curtas, um dirigido pelo próprio Torquato Neto (grande expoente do movimento tropicalista), que inclusive se tornou seu amigo e grande influência. Na década de 1970, organizou o Show Piau, evento de intenso caráter popular onde revelou grandes nomes da música piauiense, como Dovalino, Couto Filho, Geraldo Brito e Rosinha Lobo. Sua habilidade com desenho e câmera fizeram de Arnaldo um premiado em concursos no Maranhão, Sergipe, Acre e Espírito Santo, com a animação Carcará Pega Mata e Come. Além de tudo isto, no ano de 1977, nosso artista lança a revista Humor Sangrento, primeira publicação de quadrinhos do Piauí. Nas 36 páginas voltadas para o quadrinho na edição, foram produzidas 23 pequenas estórias. Fica claro que a grande maioria delas limitavam-se a apenas uma ou duas páginas, aliás, esta é uma das principais características do autor: ser breve, mas contundente. Para que se entenda melhor sua obra em quadrinhos é preciso conhecer mais um pouco sobre ele próprio.
A infância em Teresina, seu contata com o forte regionalismo nordestino, seja na música, no artesanato ou mesmo no simples modo de viver, a presença constante da leitura de quadrinhos, as inúmeras seções no cine Rex e, conseqüentemente, a paixão pelo cinema, a convivência com o período da ditadura militar, sua partida para o Rio de Janeiro em 1969, aos 17 anos, o contato com o novo na política e o engajamento artístico tanto em películas mais ousadas, como as de Glauber Rocha e Ruy Guerra, como nos quadrinhos underground de Robert Crumb e Gilbert Shelton, da lendária revista norte-americana Zap Comix, tudo isso, entre outros detalhes importantes, fez com que, em 71, quando Arnaldo retorna a Teresina, sua bagagem, repleta de cultura popular vanguardista, o colocasse em destaque no cenário cultural piauiense.
Em se tratando do conteúdo de Humor Sangrento, pode-se destacar suas características conceituais regionalistas, da mesma forma que o forte sentimento antiimperialista e a contextualização com a política da ditadura brasileira. Em De Como Meu Herói Matou o Bandido, por exemplo, percebe-se uma estória traçada em dois focos de acontecimentos simultâneos, culminando no confronto entre dois mundo ligeiramente semelhantes: O do cangaceiro contra o do velho oeste norte-americano. É tratado da defesa, como também, da luta e da “revalorização do nordestino”, enfrentando e conquistando seu espaço, não apenas na vida, mas também no mercado editorial brasileiro. Carcará, uma outra estória, tem suas semelhanças com De Como Meu Herói Matou o Bandido mostrando a luta contra os quadrinhos estrangeiros, quando Capitão América é morto por uma pedrada de baladeira, mas é bem mais que isso: mostra a imposição imperialista norte-americana, simbolizada claramente pela águia, retirando a vida e as possibilidades de um nordestino recém-nascido, como também uma luta desigual, da mesma forma que Davi versus Golias. Cabeça de Cuia e Num Se Pode são releituras de lendas piauienses, atualizando nosso folclore. Em Censurado e Deduragem, temos um belo retrato de como Arnaldo poderia apresentar nosso país a quase trinta anos. Isso, sem ainda se aprofundar na quantidade de técnicas que utilizou para edificar sua obra: se fossem bem analisadas as estórias Hara-Kiri, De Como Meu Herói Matou o Bandido, A Cavalaria Passa. O Cão que Ladra Morre, Parir Sempre e mais uma ou duas sem título que se encontra na revista, poucos afirmariam, com plena certeza, que se trataria do mesmo autor.
Humor sangrento é um único exemplo de onde já se é possível visualizar o pluralismo da concepção artística de Arnaldo, afinal, como ele próprio considera, a revista é um grande manual que apresenta ao leitor diferentes técnicas de construção do quadrinho.
Arnaldo Albuquerque, para nossa felicidade, ainda produz, alguns de seus super-8 estão sendo trabalhados para uma possível restauração. Os desenhos que originaram as animações, centenas de papezinhos manteiga, aguardam serem novamente animados. Suas telas estão espalhadas em casas de amigos e desconhecidos. Infelizmente, o que você tem em mãos contempla apenas uma parte de sua produção nas artes gráficas, ficando ainda desprestigiado, de forma merecida na história, grande parte de sua obra em outras áreas.
Em 2007 a Humor Sangrento contempla 30 anos de lançamento e sua reedição reformulada e ampliada é um presente e uma introdução ao mundo do Arnaldo... Aproveite!
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
Pequenas coisinhas
01
O caracol é um cu ambulante.
02
Vamos trocar o verso:
“OSREV!”
03
Verso versa vencido
Cantando, gritando, perdido.
04
A arma engatilhada: Fudeu a alma!
05
O calendário repetitivo estampava flores em maio e uma pequena ponte em abril.
O calendário repetitivo estampava filhotinhos em maio e um moinho em abril.
06
O falo agita a calma.
07
As unhas ruídas até a raiz,
Mal feitas, cerradas, sangrando.
08
Quando olhamos o passado
Viajamos no mundo interno
Agimos como um homem caçado.
09
Quem no ônibus embarca
Arca com a conseqüência
De na barca incongruência.
10
O brilho do sol queima as retinas do olho do ovo cru, assando na calçada.
11
O urubu deu um rasante onírico ao redor da carniça. Circulando e rodando e abaixando o bico a procurar, o olho mais podre, o ânus cheio de odores.
12
Rasteja a cobra indo embora
Com a língua venenosa a sibilar
Dobrando o corpo, subindo a tora
Do pau morto, onde é seu lar.
13
Uma do par de pernas expostas na calçada apresentava o rasgo na coxa. Em brasa, chamava os olhos do transeunte que passava. Do lado, uma caixinha velha de papelão com moedas douradas, prateadas e cobres. Cobra!, o ingresso do show o mendigo de mão estendida, cara perdida, alma vencida.
14
O vento acende as bandeirolas trançadas no céu, compondo com o veludo negro um mar de véus tremulantes.
15
A lua é o olho do peixe das profundezas abissais das águas negras do universo.
As estrelas são escamas brilhantes dos que nadam nesse alto-mar.
16
Travesso, quebrei a travessa.
17
A saia florida escondia as úmidas pétalas da menina.
18
Risquei um círculo torto, trêmulo, tremendo traço errado, cansado, casado com desgosto, sem arte, sem posto.
O caracol é um cu ambulante.
02
Vamos trocar o verso:
“OSREV!”
03
Verso versa vencido
Cantando, gritando, perdido.
04
A arma engatilhada: Fudeu a alma!
05
O calendário repetitivo estampava flores em maio e uma pequena ponte em abril.
O calendário repetitivo estampava filhotinhos em maio e um moinho em abril.
06
O falo agita a calma.
07
As unhas ruídas até a raiz,
Mal feitas, cerradas, sangrando.
08
Quando olhamos o passado
Viajamos no mundo interno
Agimos como um homem caçado.
09
Quem no ônibus embarca
Arca com a conseqüência
De na barca incongruência.
10
O brilho do sol queima as retinas do olho do ovo cru, assando na calçada.
11
O urubu deu um rasante onírico ao redor da carniça. Circulando e rodando e abaixando o bico a procurar, o olho mais podre, o ânus cheio de odores.
12
Rasteja a cobra indo embora
Com a língua venenosa a sibilar
Dobrando o corpo, subindo a tora
Do pau morto, onde é seu lar.
13
Uma do par de pernas expostas na calçada apresentava o rasgo na coxa. Em brasa, chamava os olhos do transeunte que passava. Do lado, uma caixinha velha de papelão com moedas douradas, prateadas e cobres. Cobra!, o ingresso do show o mendigo de mão estendida, cara perdida, alma vencida.
14
O vento acende as bandeirolas trançadas no céu, compondo com o veludo negro um mar de véus tremulantes.
15
A lua é o olho do peixe das profundezas abissais das águas negras do universo.
As estrelas são escamas brilhantes dos que nadam nesse alto-mar.
16
Travesso, quebrei a travessa.
17
A saia florida escondia as úmidas pétalas da menina.
18
Risquei um círculo torto, trêmulo, tremendo traço errado, cansado, casado com desgosto, sem arte, sem posto.
Um Conto de Ninguém
Um conto de ninguém.
Um obscuro dia me aguarda amanhã. Não sei por onde começar a me perder pelas ruas. Talvez não precise sequer sair de casa.
Olho o chão. Vejo meus pés descalços em cima dele. A sujeira entre as unhas encravadas. Tanto peso sobre o mundo. Tanta gente besta.
Não me considero um grande pessimista, até consigo me divertir com as pessoas mais ingratas que conheço.
...Mas amanhã... Amanhã sim, bem cedo, pela manhã.
As coisas quase sempre nunca são como esperamos. Amanheceu como sempre. Raiou o dia. Nenhum bicho entre as árvores de concreto. Não há ninhos ali. Não os vejo. Pelo contrário, havia uma mangueira bem ali, onde vivia algum animal barulhento, mas alguém a derrubou. Pena. Fazia uma sombra boa no quintal. O bicho voou pra outro lugar.
É claro que tenho esperanças e oportunidades. Minha vida é cheia disso. Já posso ir embora?
Pra prender vocês eu devia começar este texto com um assassinato ou com uma cena bem erótica, ou pornográfica:
Eu peguei seu rosto frio e machucado. O gosto da urina de suas coxas na minha boca era de azedar. Ela já não tinha mais forças pra nada. Eu não agüentava mais olhar para aquela cara, por isso a arranquei e joguei fora.
A polícia nunca a encontrou. Hoje eu estou velho e vou morrer. Fim!
Um obscuro dia me aguarda amanhã. Não sei por onde começar a me perder pelas ruas. Talvez não precise sequer sair de casa.
Olho o chão. Vejo meus pés descalços em cima dele. A sujeira entre as unhas encravadas. Tanto peso sobre o mundo. Tanta gente besta.
Não me considero um grande pessimista, até consigo me divertir com as pessoas mais ingratas que conheço.
...Mas amanhã... Amanhã sim, bem cedo, pela manhã.
As coisas quase sempre nunca são como esperamos. Amanheceu como sempre. Raiou o dia. Nenhum bicho entre as árvores de concreto. Não há ninhos ali. Não os vejo. Pelo contrário, havia uma mangueira bem ali, onde vivia algum animal barulhento, mas alguém a derrubou. Pena. Fazia uma sombra boa no quintal. O bicho voou pra outro lugar.
É claro que tenho esperanças e oportunidades. Minha vida é cheia disso. Já posso ir embora?
Pra prender vocês eu devia começar este texto com um assassinato ou com uma cena bem erótica, ou pornográfica:
Eu peguei seu rosto frio e machucado. O gosto da urina de suas coxas na minha boca era de azedar. Ela já não tinha mais forças pra nada. Eu não agüentava mais olhar para aquela cara, por isso a arranquei e joguei fora.
A polícia nunca a encontrou. Hoje eu estou velho e vou morrer. Fim!
Criaturas das Trevas Existem!
Criaturas das Trevas Existem!
Por Bernardo Aurélio
Eu estava saindo muito tarde do trabalho. Os colegas já haviam me advertido do perigo de deixar o prédio altas horas da noite. Mas o volume de tarefas estava crescendo assustadoramente e eu tinha de dar conta dos assuntos se não a bola de neve ficaria impossível de barrar.
Os processos estavam ocupando toda a mesa e meu chefe, em poucos dias não conseguiria mais me ver sentada atrás da pilha de pastas de documentos atrasados. O serão era inevitável também se eu quisesse tirar a semana de recesso que tanto desejava no início do próximo ano.
É verdade que consegui adiantar muito do que precisava, mas meus dedos começaram a doer, a vista pesou e meu pescoço parecia um nó de correntes, de tão tenso. A cadeira giratória parecia de concreto e minha bunda estava reta como uma régua.
Desliguei as luzes e tranquei a porta. O corredor estava vazio. A lâmpada estava piscando, a luz estava trêmula. Já havia pedido inúmeras vezes ao zelador que a trocasse. Ao fundo podia escutar apenas o elevador se movimentando pelos cantos de concreto do prédio cafona, construído há mais de trinta anos.
O barulho do salto-alto ecoando secamente a cada passo que dava começava a me amedrontar. Era a confirmação de que estava sozinha naquele silencio.
Segurava contra o seio, a pasta abarrotada de papeis inúteis. Dobrando à minha esquerda, pude ouvir o elevador parar. As portas abrindo. Passos. Devia ser o zelador...
Naquele canto estava uma planta triste, cheia de tocos de cigarros enfiados na terra, contra sua raiz. Quando cheguei até à planta, vi uma pessoa estranha: ele era alto, careca e tinha a pele escura como caramelo. Os músculos dos braços eram torcidos como troncos de árvores, apertados contra uma camisa branca de mangas curtas. Havia alguma coisa, talvez “Rock”, escrito na altura do seu peito. Algumas correntes prateadas nos pulsos, calça jeans preta, um pouco rasgada e botas, tipo coturno.
Ele olhou para mim. O negro dos seus olhos era profundo, sem luz. Nunca o tinha visto antes no prédio. Estranho. Ainda mais tão tarde da noite.
As lâmpadas piscaram, e, pode parecer estranho, mas tive a nítida impressão de que as sombras estavam escorrendo para um canto, como se entrasse pela janela do nono andar a luz do farol de um carro que passava pela avenida abaixo. Nesse instante, ele começou a me ignorar e passou por mim, quase esbarrando seu ombro pesado contra mim. Parecia nervoso e apressado.
Entrei no elevador e, antes que as portas fechassem por completo, vi-o tirar um chaveiro do bolso e pude ouvir as chaves a tilintar.
O antigo elevador resmungou um pouco, como um velho antes de levantar da preguiçosa, e desceu comigo.
O estacionamento era grande, mas àquela hora havia apenas meu carro: um Corsa branco. Havia goteiras d’água pelo chão e colunas cilíndricas que sustentavam toda a construção.
A porta que dava para a escada de serviços rangeu um pouco antes de abrir. Cambaleando, o enorme homem apareceu. Era incrível: primeiro por que ele já estava aqui em baixo, desceu os nove lances de escada mais rápido do que eu pelo elevador, segundo por que ele estava cambaleando! Era inacreditável! Uma montanha daquelas poder ser atingida por alguma coisa...
Carregava no braço uma simples pasta marrom de processo, igual a tantas que estavam sobre minha mesa.
Ele olhou novamente para mim e disse: “Você vai morrer, vaca!”. Antes que pudesse responder alguma coisa, ou que aquele brutamontes desse um único passo sequer, algo que vinha da escuridão das escadas socou suas costas tão forte que um sangue negro espirrou logo depois que ouvi sua caixa torácica estourar. Nunca havia visto um sangue tão negro antes, espalhando pelo chão, como uma poça de lama.
O estanho sangue parecia agora parar de jorrar. O coração deveria ter parado de bater, mas não, não foi isso. O sangue parecia cada vez mais denso e escuro e agora estava recuando, como se voltasse para o corpo. Assim, simplesmente voltando com calma e lentidão...
A escuridão do corredor parecia maior, como se as próprias paredes estivessem cobertas de um veludo negro. Um veludo corpulento. A escuridão parecia pesada e viva. O sangue não voltava para o corpo, atravessava-o rumo ao corredor. A maior parte do sangue não era “sangue”, era como se fosse a própria escuridão.
Passos desciam às escadas. Perplexa, pareci idiota lembrando que já deveria ter saído daquele estacionamento a muito tempo. As chaves na palma da minha mão pareciam peixes aflitos pulando no asfalto quente. Nunca conseguiria abrir o carro, ligá-lo e sair dali à tempo.
Os passos pararam, por um instante tudo ficou em silêncio. O corpo começou a ser puxado para o corredor por várias mãos negras. O sangue escorreu até as escadas, onde a vítima começava a desaparecer. Como que acordando de um coma, só naquele instante consegui gritar o grito mais terrível da minha vida.
Enquanto o berro ecoava pelas paredes do assustador prédio, o corredor das escadas pareceu iluminar-se vagarosamente, como se uma pequena luz fosse acendida gradativamente. De repente, todas as luzes do estacionamento acenderam-se e dois seguranças entraram segurando suas arma no coldre da cintura.
O sangue havia simplesmente desaparecido na altura de alguns degraus. Não havia mais ninguém além de nós três, assustados e confusos. A pasta marrom de processo que era carregada pela pobre vítima também não estava mais lá.
Em meio a toda luz que nos envolvia naquele estacionamento, aquela noite foi para mim o momento quando passei a abrir mais os olhos para qualquer canto escuro da cidade. Depois daquela noite, foi como se tivesse despertado para algo que está profundamente guardado não apenas nas sombras de um prédio assustador, mas dentro de cada pessoa, como se nós escondêssemos as mais terríveis criaturas das trevas.
Por Bernardo Aurélio
Eu estava saindo muito tarde do trabalho. Os colegas já haviam me advertido do perigo de deixar o prédio altas horas da noite. Mas o volume de tarefas estava crescendo assustadoramente e eu tinha de dar conta dos assuntos se não a bola de neve ficaria impossível de barrar.
Os processos estavam ocupando toda a mesa e meu chefe, em poucos dias não conseguiria mais me ver sentada atrás da pilha de pastas de documentos atrasados. O serão era inevitável também se eu quisesse tirar a semana de recesso que tanto desejava no início do próximo ano.
É verdade que consegui adiantar muito do que precisava, mas meus dedos começaram a doer, a vista pesou e meu pescoço parecia um nó de correntes, de tão tenso. A cadeira giratória parecia de concreto e minha bunda estava reta como uma régua.
Desliguei as luzes e tranquei a porta. O corredor estava vazio. A lâmpada estava piscando, a luz estava trêmula. Já havia pedido inúmeras vezes ao zelador que a trocasse. Ao fundo podia escutar apenas o elevador se movimentando pelos cantos de concreto do prédio cafona, construído há mais de trinta anos.
O barulho do salto-alto ecoando secamente a cada passo que dava começava a me amedrontar. Era a confirmação de que estava sozinha naquele silencio.
Segurava contra o seio, a pasta abarrotada de papeis inúteis. Dobrando à minha esquerda, pude ouvir o elevador parar. As portas abrindo. Passos. Devia ser o zelador...
Naquele canto estava uma planta triste, cheia de tocos de cigarros enfiados na terra, contra sua raiz. Quando cheguei até à planta, vi uma pessoa estranha: ele era alto, careca e tinha a pele escura como caramelo. Os músculos dos braços eram torcidos como troncos de árvores, apertados contra uma camisa branca de mangas curtas. Havia alguma coisa, talvez “Rock”, escrito na altura do seu peito. Algumas correntes prateadas nos pulsos, calça jeans preta, um pouco rasgada e botas, tipo coturno.
Ele olhou para mim. O negro dos seus olhos era profundo, sem luz. Nunca o tinha visto antes no prédio. Estranho. Ainda mais tão tarde da noite.
As lâmpadas piscaram, e, pode parecer estranho, mas tive a nítida impressão de que as sombras estavam escorrendo para um canto, como se entrasse pela janela do nono andar a luz do farol de um carro que passava pela avenida abaixo. Nesse instante, ele começou a me ignorar e passou por mim, quase esbarrando seu ombro pesado contra mim. Parecia nervoso e apressado.
Entrei no elevador e, antes que as portas fechassem por completo, vi-o tirar um chaveiro do bolso e pude ouvir as chaves a tilintar.
O antigo elevador resmungou um pouco, como um velho antes de levantar da preguiçosa, e desceu comigo.
O estacionamento era grande, mas àquela hora havia apenas meu carro: um Corsa branco. Havia goteiras d’água pelo chão e colunas cilíndricas que sustentavam toda a construção.
A porta que dava para a escada de serviços rangeu um pouco antes de abrir. Cambaleando, o enorme homem apareceu. Era incrível: primeiro por que ele já estava aqui em baixo, desceu os nove lances de escada mais rápido do que eu pelo elevador, segundo por que ele estava cambaleando! Era inacreditável! Uma montanha daquelas poder ser atingida por alguma coisa...
Carregava no braço uma simples pasta marrom de processo, igual a tantas que estavam sobre minha mesa.
Ele olhou novamente para mim e disse: “Você vai morrer, vaca!”. Antes que pudesse responder alguma coisa, ou que aquele brutamontes desse um único passo sequer, algo que vinha da escuridão das escadas socou suas costas tão forte que um sangue negro espirrou logo depois que ouvi sua caixa torácica estourar. Nunca havia visto um sangue tão negro antes, espalhando pelo chão, como uma poça de lama.
O estanho sangue parecia agora parar de jorrar. O coração deveria ter parado de bater, mas não, não foi isso. O sangue parecia cada vez mais denso e escuro e agora estava recuando, como se voltasse para o corpo. Assim, simplesmente voltando com calma e lentidão...
A escuridão do corredor parecia maior, como se as próprias paredes estivessem cobertas de um veludo negro. Um veludo corpulento. A escuridão parecia pesada e viva. O sangue não voltava para o corpo, atravessava-o rumo ao corredor. A maior parte do sangue não era “sangue”, era como se fosse a própria escuridão.
Passos desciam às escadas. Perplexa, pareci idiota lembrando que já deveria ter saído daquele estacionamento a muito tempo. As chaves na palma da minha mão pareciam peixes aflitos pulando no asfalto quente. Nunca conseguiria abrir o carro, ligá-lo e sair dali à tempo.
Os passos pararam, por um instante tudo ficou em silêncio. O corpo começou a ser puxado para o corredor por várias mãos negras. O sangue escorreu até as escadas, onde a vítima começava a desaparecer. Como que acordando de um coma, só naquele instante consegui gritar o grito mais terrível da minha vida.
Enquanto o berro ecoava pelas paredes do assustador prédio, o corredor das escadas pareceu iluminar-se vagarosamente, como se uma pequena luz fosse acendida gradativamente. De repente, todas as luzes do estacionamento acenderam-se e dois seguranças entraram segurando suas arma no coldre da cintura.
O sangue havia simplesmente desaparecido na altura de alguns degraus. Não havia mais ninguém além de nós três, assustados e confusos. A pasta marrom de processo que era carregada pela pobre vítima também não estava mais lá.
Em meio a toda luz que nos envolvia naquele estacionamento, aquela noite foi para mim o momento quando passei a abrir mais os olhos para qualquer canto escuro da cidade. Depois daquela noite, foi como se tivesse despertado para algo que está profundamente guardado não apenas nas sombras de um prédio assustador, mas dentro de cada pessoa, como se nós escondêssemos as mais terríveis criaturas das trevas.
Alan Moore Como Escrever Quadrinhos Parte 1
ALAN MOORE - COMO ESCREVER HISTÓRIAS EM QUADRINHOS PARTE I
O seguinte texto foi apresentado aos leitores americanos nas páginas da revista especializada The Comics Journal #119 (Janeiro de 1988), #120 (Março de 1988) e #121 (Abril de 1988). Além de raro, ele talvez represente o mais claro e objetivo texto sobre a arte de escrever roteiros de histórias em quadrinhos. Divertido e sério ao mesmo tempo, demostra uma vez mais o impecável e refinado talento de Alan Moore em escrever bem sobre praticamente qualquer coisa.
Moore, como você trabalha em seus roteiros?
“Basicamente começo por desenhar pequenos esboços da página. Eu preparo os quadrinhos para dizer ao artista onde tudo está, certificando-se que o diálogo encaixa perfeitamente, e então transformo esses esboços em um texto altamente detalhado para o artista, que nunca realmente vê os esboços. Todos os elementos da história estão projetados. Como eu transformo os desenhos esboçados em descrições, meus textos são muito compridos. Uma página de quadrinho é provavelmente duas ou três páginas do roteiro, ou mais. Às vezes, ele leva muitas palavras para descrever essas coisas. Ao menos nesse caminho, estou no controle de todo o processo. Ao invés de somente sentar com uma caneta e um bloco de notas, posso imaginar o trabalho todo finalizado, em todos os detalhes. Os efeitos do letreamento, a colocação das personagens, a iluminação, a colorização se necessário. Isso me dá muito do controle, que é o caminho que sempre trabalhei e o caminho que provavelmente irei trabalhar.”
PARTE I
N. do T.: Para esta primeira parte, é interessante que você tenha à mão, se possível, a excelente edição Monstro do Pântano, Volume 1, publicada recentemente pela editora Brainstore, ou então as antigas edições de Novos Titãs e Superamigos, publicadas pela editora Abril, com as histórias do Monstro do Pântano; V de Vingança, da editora Globo ou da Via Lettera; Qualquer edição de A Piada Mortal e edições de Love and Rockets.
A maior dificuldade de escrever sobre qualquer atividade criativa, seja escrever sobre ela mesma até escrever sobre como consertar automóveis é que, na maioria das vezes, os artigos ou entrevistas que surgem parecem ser incapazes de se estenderem além de informações técnicas óbvias e listas de instrumentos recomendados. Não quero recair nessa mesma rotina, dizendo qual máquina de escrever eu uso, ou qual tipo de papel carbono acho ser o melhor, já que esta informação não fará a menor diferença na qualidade do que você escreve. Da mesma maneira, não acho que uma análise precisa do meu processo de trabalho seja muito útil, já que imagino que ele varia drasticamente de história para história, e que todo escritor tende a desenvolver sua própria abordagem em resposta a suas próprias circunstâncias.
Além disso, não quero produzir nada que lembre, nem remotamente, algo como "O Método Alan Moore de Escrever HQ's". Ensinar gerações de novos artistas e escritores a copiar a geração que os precedeu foi uma idéia estúpida de uma época onde a Marvel lançou seu livro “O Método Marvel de Desenhar HQ's” e seria igualmente irresponsável da minha parte instruir escritores novos ou experientes sobre como escrever títulos idiotas e extravagantes do tipo "O Alvorecer Transformou O Céu num Matadouro" ou algo assim. John Buscema foi um grande artista, mas a indústria não precisa de cinqüenta pessoas desenhando como ele, e menos ainda de outros cinqüenta escrevendo como eu.
Com tudo isso em mente, gostaria de tentar expor algo que acrescente a este extenso capítulo sobre como podemos realmente pensar sobre a arte de escrever quadrinhos, que é melhor do que uma lista de detalhes específicos. Gostaria de falar sobre abordagens e processos mentais que dão suporte a escrita como um todo, ao invés de falar sobre o modo como esses processos são finalmente colocados no papel. Da forma que vejo a situação, o modo como pensamos ser o ato de escrever inevitavelmente moldará os trabalhos que produzimos. Analisando a maior parte da produção corrente das principais companhias de quadrinhos, me parece que um fator que contribui enormemente ao desânimo geral sejam os estagnados processos de pensamento promovidos por elas. Seguramente, em termos das convenções gerais de escrever quadrinhos atualmente, minha tendência é ver as mesmas como mecânicas estruturas de enredo e a mesma abordagem funcional de caracterização sendo usada várias e várias vezes, até o ponto em que as pessoas encontram uma grande dificuldade em imaginar onde poderiam estar maneiras diferentes de fazer as coisas.
Como nossos pressupostos básicos sobre a nossa profissão vêm se tornando cada vez mais obsoletos, achamos que isso se refere mais a um problema de criar trabalhos de alguma relevância para um mundo que se altera rapidamente, no qual a indústria e os leitores que a sustentam realmente sejam considerados. Por relevância, já que toquei no assunto, não falo de histórias sobre relações raciais e poluição, ainda que elas certamente sejam boa parte disso. Falo de histórias que realmente tenham algum tipo de significado em relação ao mundo ao nosso redor, histórias que reflitam a natureza e a textura da vida nestes últimos anos do século vinte. Histórias que sejam úteis de alguma maneira. Reconhecidamente, seria muito fácil para a indústria viver confortavelmente por um tempo se aproveitando das fraquezas de leitores que acompanham os quadrinhos devido a nostalgia ou por simples escapismo, mas a industria que trabalha exclusivamente dessa forma é, no meu entender, impotente e digna apenas de um pouco mais de consideração ou interesse do que a indústria de cartões comemorativos.
O motivo pelo qual escrever para os quadrinhos seja talvez até mesmo mais interessante que desenhá-los é que escrever acaba sendo o estopim de todo o processo. Se o que for pensado antes de escrever for inadequado, o enredo é inadequado. Desse modo, até mesmo sob as mãos dos melhores artistas do mundo, a história finalizada vai lamentar a falta daquilo que nenhuma soma de imagens coloridas e impressão poderia substituir ou compensar. Para mudar os quadrinhos, nós precisamos mudar a maneira de pensar sobre sua criação, e a investigação a seguir deve ser vista apenas como os primeiros e toscos degraus para este fim.
Ao buscar um melhor lugar para começar, talvez seja interessante começar por uma extensa consideração sobre os quadrinhos e suas possibilidades, e daí extrair nosso método. Ao pensar sobre quadrinhos, você tem que ter alguma idéia sobre o que é o assunto que está sendo considerado. É aqui que começa a nossa primeira dificuldade: no esforço de definir os quadrinhos, muitos autores têm arriscado pouco mais do que rascunhar comparações entre uma técnica e outra, mais amplamente aceitáveis como formas de artes. Quadrinhos são descritos em termos de cinema e, com efeito, muito do vocabulário que emprego todo o dia nas descrições das cenas para qualquer artista provém inteiramente do cinema. Falo em termos de close-ups, long-shots, zooms e panorâmicas; é uma útil linguagem convencionada de instruções visuais precisas, mas ela também nos leva a definir os valores quadrinhísticos como sendo virtualmente indistinguíveis dos valores cinematográficos. Enquanto o pensamento cinematográfico tem, sem sombra de dúvida, produzido muitos dos melhores trabalhos em quadrinhos dos últimos trinta anos, eu o vejo, quando modelo para basear nosso próprio meio, como sendo eventualmente limitante e restringente. Por sua vez, qualquer imitação das técnicas dos filmes pelos quadrinhos faz com que acabem perdendo, inevitavelmente, na comparação. É claro, você pode usar seqüências de cenas de forma cinematográfica para tornar seu trabalho mais envolvente e animado que o de quadrinhistas que não dominam este truque ainda, mas em última análise, você acaba ficando com um filme sem som nem movimento. O uso de técnicas de cinema pode ser um avanço para os padrões de escrever e desenhar quadrinhos mas, se estas técnicas forem encaradas como o ponto máximo ao qual a arte dos quadrinhos possa aspirar, nosso meio está condenado a ser eternamente um primo pobre da indústria cinematográfica. Isso não é bom o bastante.
Quadrinhos também são vistos em termos literários, ambicionando traçar comparações entre seqüências quadrinhizadas e formas literárias convencionais. Assim, as "histórias curtas" dos quadrinhos seriam aproximadamente baseadas em fórmulas clássicas de escritores como O. Henry e Saki (escritores populares norte americanos da virada do século, que praticamente "inauguraram" esta forma de conto contemporâneo), com o desfecho surpresa no último quadrinho. Com "menos inteligência ainda", uma HQ com mais de quarenta páginas é automaticamente comparada a um romance, uma vez mais perdendo terrivelmente com a comparação. Com toda a boa vontade do mundo, se você tentar descrever a Graphic Novel da Cristal nos mesmos termos em que descreveria Moby Dick, então você está simplesmente procurando por encrenca. Opondo-se à idéia de filmes sem som nem movimento, teremos romances sem extensão, profundidade ou sentido. Isso também não é bom o suficiente.
Para piorar as coisas, toda vez que se usam técnicas de outras linguagens, há uma tendência dos criadores de quadrinhos em permanecerem firmemente presos ao passado. Olhando o que vem sendo descrito como trabalhos cinematográficos nos quadrinhos, normalmente encontramos alguém falando que tirou suas idéias sobre cinema quase que inteiramente do trabalho de Will Eisner, ou mais precisamente, do que ele fazia há trinta ou quarenta anos atrás. Não é um mal começo, eu admito, exceto que a maioria das pessoas parece se contentar apenas com aquilo. Eisner, no auge de The Spirit, utilizou as técnicas cinematográficas de pessoas como Orson Welles, com resultados brilhantes. Seus imitadores também usam as técnicas cinematográficas de Orson Welles, mas de segunda-mão, esquecendo que Eisner estava aprendendo com a cultura que o cercava naquele tempo. Cinema nos quadrinhos eqüivalem a Welles, Alfred Hitchcock, e talvez alguns outros mais, tendo todos eles realizado seus melhores trabalhos há trinta anos atrás. Por que não se tenta entender e adaptar o trabalho de pioneiros contemporâneos como Nicolas Roeg ou Altman ou Coppola, se o que estamos procurando é uma abordagem verdadeiramente cinematográfica? Por que os valores literários nos quadrinhos devem ser determinados pelos valores dos velhos pulp fictions de trinta ou quarenta anos atrás, independentemente do valor que estes pulp fictions possam ter?
Melhor que agarrar-se nas similaridades superficiais entre quadrinhos e filmes ou quadrinhos e livros na esperança de que a respeitabilidade e o prestígio dessas linguagens venham purificar-nos, não seria mais construtivo concentrar nossa atenção nas áreas onde os quadrinhos são especiais e únicos? Não seria melhor que, ao invés de persistir em técnicas de filmes que os quadrinhos podem reproduzir, tentássemos talvez considerar as técnicas de quadrinhos que os filmes não podem reproduzir?
Se, por um lado, acreditava-se que a garantia de maior liberdade criativa ou a divisão do conhecimento desenvolvido entre os artistas e escritores na indústria produziria um surto de uma impressionante criatividade e invenção, por outro lado, não é esse o nosso caso. Com muito raras e honrosas exceções, a maioria do material de criação própria produzido pelas editoras independentes quase não se distingue da produção corrente que o precedeu. Me parece que isso demonstra que o problema não é, a princípio, de condições de trabalho ou de incentivo; o problema é de criatividade, e é num nível criativo básico que ele poderá ser resolvido. Não acho que esta solução virá sem uma melhoria drástica do padrão de se escrever para os quadrinhos, uma vez que, como disse no começo, o escritor é o estopim de todo o processo criativo. Para este fim, então, vamos mudar de assunto, onde darei o melhor de mim para descrever alguns dos problemas e do potencial que vejo em vários aspectos na arte de escrever quadrinhos.
Uma vez mais, a dificuldade é saber por onde começar. A lista de considerações a serem feitas, mesmo para a mais simples HQ, é enorme, e ela realmente não interessa para o que nós escolhemos examinar primeiro. Tudo está conectado, e cada item leva ao outro. Dessa forma, podemos igualmente colocar, a princípio, os elementos mais intangíveis e abstratos fora de seu contexto, antes de prosseguir nos aspectos mais refinados e precisos da arte. Um bom ponto de partida talvez seja aquele que repousa exatamente no centro de qualquer processo criativo: a idéia.
A idéia é aquilo sobre o qual a história trata; não é nem a trama da história, nem o desenrolar dos eventos dentro da história, mas aquilo que a história essencialmente é. Como exemplo do meu próprio trabalho (não porque ele seja particularmente um bom exemplo, mas porque me sinto com mais autoridade para falar dele do que teria se fosse o trabalho de outra pessoa), eu poderia citar a história A Maldição. A história trata das dificuldades suportadas pelas mulheres nas sociedades masculinas, usando o tabu comum da menstruação como motivo central. Isso não é a trama da história - a trama diz respeito a uma jovem casada se mudando para uma nova casa, construída sobre o local onde havia uma antiga choupana indígena, que se vê possuída pelo espírito dominante que ainda residia ali, transformando-se num lobisomem. Eu espero que aqui a distinção entre idéia e trama tenha ficado bem clara, pois ela é importante e é ignorada por muitos escritores. A maioria das histórias em quadrinhos possui tramas nas quais o único assunto é a luta entre dois ou mais antagonistas. O resultado desse confronto, normalmente envolvendo alguma mostra deus ex maquina de algum superpoder, é igualmente a resolução da trama. Além de uma banalidade extremamente vaga e sem graça do tipo o bem sempre vencerá o mal, não há realmente idéias centrais na maioria dos quadrinhos, fora a noção de que o conflito é interessante por si mesmo.
De onde as idéias realmente vêm parece ser, à primeira vista, a maior preocupação da maioria das pessoas interessadas em aprender como escrever quadrinhos, e é, provavelmente, a única questão que as pessoas criativas se perguntam com mais freqüência. Sem surpreender, é também a questão que mais têm permanecido sem resposta. Se ameaçassem me torturar para que eu desse uma resposta concisa, provavelmente diria que as idéias parecem germinar na fértil encruzilhada entre as influências de outros artistas e minhas próprias experiências. O estudo do trabalho de outras pessoas fornece indicadores úteis de como formular uma idéia, mas o impulso primordial vem de dentro do escritor ou criador, influenciado pelas suas próprias opiniões, seus preconceitos, por todas as coisas que têm acontecido com eles e por todos os elementos de suas vidas que acabam por definir o tipo de pessoa que eles são. Não há substituto para a experiência prática, e se você quiser escrever sobre gente, você tem o dever de desprezar as revistas em quadrinhos e sair por aí procurando coisa melhor que estudar o modo como Stan Lee ou Chris Claremont descrevem pessoas.
Torna-se um problema de mudar sua percepção para notar pequenas circunstâncias peculiares que poderiam, de outro modo, passar despercebidas, estudando nosso próprio convívio e o relacionamento com as pessoas e os acontecimentos que nos rodeiam até você sentir que desenvolveu uma visão coerente sobre a vida e a realidade, ao menos tão longe quanto ter a perspectiva sobre situações que indiquem a vinda de idéias próprias e originais. Eddie Campbell tem desenvolvido uma visão extraordinariamente singular e perceptiva para a trivialidade da existência, e isso lhe permite transformar coisas que poderiam, de outra maneira, parecerem ordinárias e indignas de nota, em algo ao mesmo tempo revelador e divertido. Minha tese é que você não pode ensinar as pessoas a terem a mesma percepção e idéias que Eddie tem... você deve apenas seguir as orientações de sua própria cabeça, de um certo modo em direção a como você vê a vida e você perceberá que as idéias então virão espontaneamente, ao final, quase sem nenhum estímulo. Um único e novo ponto de vista nunca é reduzido a uma única e nova coisa a dizer ou sobre a qual falar. Visto da maneira certa, tudo se transforma em uma fonte de idéias. Abrindo o jornal na página de economia e lendo sobre a escalada do déficit internacional, algo que poderia parecer chato e duro de engolir à primeira vista é, na realidade, uma situação primorosamente louca que muito provavelmente vai afetar violentamente a vida de todos os que vivem neste planeta pelas próximas décadas e mais além. Há um jeito disto se tornar interessante, talvez divertido, ou talvez aterrorizante, ao leitor comum? E se você constasse isso em termos de uma fantástica alegoria, situada num planeta alienígena com algo absurdo do tipo pele de rato servindo de dinheiro? A idéia de um punhado de alienígenas imbecis pondo irrevogavelmente seu planeta em polvorosa atrás de um punhado de peles de rato talvez seja divertida? E que tal se fizéssemos uma história implacavelmente séria e realista, substituindo os grandes interesses nacionais envolvidos por indivíduos, pessoas, para que o problema possa ser sentido em pequena escala, em termos de elementos humanos, talvez com um agente de uma companhia de empréstimos tentando cobrar os pagamentos numa inóspita e hostil comunidade rural? Existe alguma coisa aqui capaz de prender o interesse das pessoas por uns dez ou quinze minutos?
De outra maneira, talvez alguns incidentes do nosso próprio passado providenciarão o germe de uma história. Quando criança, por exemplo, se meus pais me flagrassem em algum pequeno delito que eu estivesse convencido que eles não teriam possibilidade de saber, algumas vezes ocorria-me que talvez os adultos pudessem ter algum poder especial de saber de tudo, que mantinham escondido das crianças. De fato, algumas vezes tive a impressão que talvez todo mundo tinha tal habilidade, exceto eu, e que eu era a única pessoa excluída dessa massiva conspiração telepática em massa (se você continuar pensando neste tipo de coisa depois dos nove anos de idade, você pode ser tanto um esquizofrênico paranóico quanto um escritor de quadrinhos, assumindo que você faça questão de manter alguma distinção).
Usando esse medo infantil irracional como trampolim, seria possível alcançar talvez um tipo de fantasia à la Ray Bradbury sobre o universo infantil, ou talvez uma cruel história do horror psicológico sobre a paranóia como fenômeno em si, talvez tendo uma criança que sofria de complexo de perseguição que se tornou um agente da espionagem do baixo escalão, trabalhando incógnito do lado errado do Muro de Berlim, num mundo onde todos os seus horrores de infância tornam-se tangíveis e reais? Por favor, tenha sempre em mente que as idéias colocadas não são necessariamente boas idéias... elas apenas são alguns exemplos tirados da manga das formas pelas quais as idéias aproveitáveis podem ser conduzidas.
Eu deveria talvez assinalar que, ao construir uma história, nem sempre é preciso começar por uma idéia. É perfeitamente possível arrumar inspiração para uma história pensando apenas em macetes técnicos puramente abstratos ou numa seqüência de cenas ou em qualquer coisa parecida. Em algum lugar do processo, de qualquer maneira, uma idéia coerente deve começar a surgir do trabalho além dos seus simples maneirismos. Se acontecer de você pensar primeiro numa nítida e curta seqüência de quatro quadros, muito bem, mas você deve então tentar explorar mais o tipo de caráter ou de idéia que os quatro quadros melhor expressam. Como exemplo do meu próprio material, uma idéia original que eventualmente é elogiada dos primeiros quatro ou cinco episódios que fiz com o Monstro do Pântano, toma forma como um punhado de idéias desconexas para seqüências que tinham um pequeno significado, individualmente: uma última idéia era utilizar a capacidade de camuflagem do Monstro do Pântano... talvez ter parte de sua perna ou de seu corpo visível no cenário de tal modo que tanto o leitor quanto os outros personagens não percebam que estão olhando para a criatura do pântano durante alguns segundos. Isto acabou sendo as duas primeiras páginas da história Possuído pelo Pântano.
Outra idéia que tive, ao mesmo tempo, envolveu o modo de trabalhar dos outdoors Burma Shave, cuidadosamente espaçados e rimados, usados para percorrer ao longo das estradas da América numa seqüência de letreiros rimados de tal maneira que a última linha da rima, ...Burma Shave, era, na verdade, mais visível na placa em si que dentro do espaços das letras. Isto efetivamente aconteceu nas últimas duas páginas do n.º 26, mesmo não tendo nenhuma idéia ao realmente pensar na seqüência sobre a forma como ela se relacionaria ou qual parte dela participaria do conjunto da história. Eu mantive a idéia pendente até ter uma abertura onde pudesse inseri-la, e assim, quando tive de fazer algo drástico com o personagem Matt Cable, eu o peguei e joguei numa cena de desastre de carro. O fato é que tive de manter as seqüências guardadas na geladeira até ter uma idéia para as histórias que as completariam. Como eu disse antes, ninguém precisa começar por uma idéia, mas, em algum ponto ao longo do processo, uma idéia de verdade é necessária, admitindo-se que este trabalho deva ser de algum impacto.
Nós assumiremos que, a partir de agora, temos uma idéia trabalhável, algo que gostaríamos de dizer e sentir que podemos dizer com convicção. Antes de encaminharmos o problema, deveríamos perceber que, em qualquer ato de comunicação, existem ao menos dois participantes. Em termos de criatividade, estes participantes são o artista e a sua audiência. Se você está prestes a despender um monte de tempo preparando a sua mensagem, talvez seja vantajoso ao menos gastar um pouco mais numa rápida consideração sobre a pessoa para a qual a mensagem se dirige. Obviamente, uma vez que estamos falando sobre audiência em massa, de milhares de indivíduos, não há como o artista conseguir entender os gostos e aversões de cada um deles. A resposta convencional ao problema, ao menos como ficou evidente pelo comportamento de muitas das principais companhias de comics, é tentar não ofender ninguém.
Eu tive ao menos um editor do ramo dizendo que não há sentido em tirar da alienação ao menos um leitor que seja, sendo que o melhor a fazer é "suavizar" os diálogos ou as cenas em questão até que não haja mais nada que possa ser criticado pelo mais sensível membro da audiência. Levando esse raciocínio ao seu extremo, isso sugere que um leitor hipotético ao qual o artista deve se dirigir como sua história é um afrescalhado moralista extremamente afetado que tem um piripaque é primeira sugestão de algo mais carnal que um beijinho de boa-noite sobre a testa. Isso não apenas reforça a idéia de que os quadrinhos são, de alguma maneira, ofensivos por sua própria natureza, e que só serão tolerados enquanto se mantiverem dentro de suas coleiras - aliás, muito bem apertadas, diga-se de passagem - como também falham por não considerarem o enorme número de leitores em potencial não dispostos a perderem seu tempo com papinha-de-nenên literária.
Há algo estranho em ser ofensivamente inofensivo, e, uma vez que não estou sugerindo em nenhum momento que todos os quadrinhos devam ser destinados a depravados cínicos recém-saídos da adolescência, ao menos se deveria perceber que a audiência potencial além desses caras é, de longe, muito variada e grande demais para se aplicar quaisquer critérios restritivos baseados em quadros hipotéticos completamente não-confiáveis de um imaginário "leitor-padrão". O conceito de "leitor-padrão" é completamente retrógrado, ao tentar criar um leitor que não existe. Eu conheço muito poucas pessoas que se acham "leitores-padrão de quadrinhos", e menos pessoas ainda que demonstrem ser realmente convencionais quando examinadas mais de perto. Um meio de comunicação tão pequeno como este tem realmente um padrão significativo que possa ser definido a partir de seu público?
Na minha opinião, a melhor maneira de lidar com o problema é deixar o material encontrar seu próprio nível e sua própria audiência. Mas, uma vez que ao não definirmos nossas hipóteses de trabalho acabamos produzindo leitores imaginários, é óbvio que temos que achar algum meio de compreender a parte que o leitor ocupa no processo criativo. Uma vez mais, eu imagino que fique menos problemático tomar o problema pelo seu outro extremo. Ao invés de pensar sobre o que poderia afetar o leitor negativamente para então expurgar qualquer traço disso no trabalho, por que não pensar sobre coisas que provavelmente afetam o leitor positivamente? Novamente, temos aqui o problema de como definir o que melhor funciona para uma extensa faixa de pessoas, mas, ao menos, neste exemplo, há uma série de modelos úteis para basear nosso pensamento. Um deles é a banal mas sempre criativa piada.
Piadas não são, em geral, dirigidas a um público específico; elas apenas acontecem! Estranhamente, o critério do que seja uma boa piada não parece ser altamente contestado, como quando falamos sobre filmes, livros ou quadrinhos. Algumas pessoas gargalham alto, a diversão de alguns é um pouco mais contida, um ou dois não riem mesmo. Seja qual for a reação, a piada serviu a seus propósitos e afetou várias pessoas diferentes com o melhor de sua capacidade em relação aos sensos de humor de cada um. A pessoa que chega a princípio com a piada não faz idéia da pessoa que eventualmente vai escutá-la... ela apenas acha a piada engraçada. Se ela o faz rir, há uma ótima chance dela fazer uma porção de pessoas rirem também. Eu até arriscaria dizer que muitos dos escritores de quadros humorísticos dos programas de TV se contentam em confiar em sua própria intuição sobre o que é engraçado, mesmo que tenham assistido entrevistas com comediantes como Max Wall, parecendo que há um esforço muito grande no pensar sobre o que exatamente faz as pessoas rirem. Há, seguramente, alguns princípios óbvios de humor que são quase certeza de provocar risadas como resposta, não importando qual a disposição ou a situação da pessoa que ouve a piada possa ter. Compreender essas reações humanas imediatas é uma ferramenta de humor criativo muito mais útil que qualquer consideração sobre um "público-padrão" possa ser.
Pensando sobre um processo geral básico que afete um amplo espectro de seres humanos muito melhor que uma noção ou idéia específica que não afetaria sequer um único tipo de leitor hipotético, será possível chegar a uma compreensão de um dos mecanismos fundamentais das reações humanas. É possível olhar bem de perto para nossas próprias reações e respostas e fazer algumas deduções felizes sobre as respostas básicas de sua leitura. Se você quiser escrever uma história de horror, pense primeiro no tipo de coisa que horroriza você. Analise seus próprios medos a fundo o suficiente e poderá ser capaz de chegar a algumas conclusões sobre a matéria-prima dos medos e das ansiedades humanas. Seja implacável ao fazê-los, e submeta a si mesmo num enorme sofrimento emocional se for necessário para ter respondida essa questão: o que me deixa horrorizado? Imagens de crianças morrendo de fome na África me horrorizam. Por que isso me deixa horrorizado? Isso me horroriza porque não consigo ficar pensando em crianças minúsculas nascendo num mundo de fome, miséria e horror sem nunca conhecer nada além de dor e medo, e não saber nunca que poderia possivelmente haver algo mais do que precisar de comida tão desesperadamente quanto um homem sufocado precisa de ar e nunca ouvindo nada além de choro, lamentações e desespero. Sim, muito bem, mas POR QUE não consigo pensar nisso? Não consigo ficar pensando nisso porque gosto de sentir um mundo como tendo alguma forma de justiça e de ordem sem os quais muito da existência pareceria sem sentido, e eu penso que para essas crianças não há a menor possibilidade delas sentirem o mundo nesses termos. Também sei que, se estivesse naquela mesma situação, também não seria capaz de ver qualquer situação além de fome e miséria juntas. Então, isso significa que não haveria nenhuma ordem, nenhuma razão para a existência? É isso que me faz cagar nas calças toda vez que vejo aquelas titicas de mosca agonizando no noticiário do horário nobre. É. Provavelmente é isso! O que me assusta mesmo provavelmente não é o que está acontecendo com eles, mas o que isso implica para mim.
Aquilo não é uma nobre causa, incrivelmente fácil de ser encarada, mas é o tipo de trabalho sujo que você tem que encarar para ter alguma compreensão válida do material no qual você está trabalhando. Este material são pensamentos humanos, sentimentos humanos e idéias humanas. Tudo no nosso mundo, desde a estrutura familiar até a bomba de nêutrons, tem sua origem nesta área, e qualquer um que pretenda fazer uma bagunça com a consciência de massa para uma missão vital de estar ciente do material está lidando com e como isso se comporta em certas circunstâncias. Para este fim, se considerarmos uma pessoa que eventualmente for ler sua história em quadrinhos, o denominador comum pelo qual você vai atrás não é o minúsculo denominador comum da receptividade do público, e sim o denominador comum da humanidade básica. Se você está lendo isso, há uma boa chance de que você seja um ser humano. Há também uma boa chance de que, não importa o quão único e especial você seja ou pense que é, existam certos mecanismos básicos que você compartilha com membros conservadores do parlamento inglês, mineiros de Yorkshire, lésbicas radicais e policiais. Se você puder identificar e usar estes mecanismos para sua própria satisfação, então você terá muito mais base para produzir uma arte mais proveitosa que se gastasse tempo alucinando um consumidor-padrão imaginário e tentando desesperadamente marretar seu trabalho numa forma que agrade seus altamente hipotéticos gostos e critérios.
Muito bem, agora então nós temos nossa idéia básica e, ao menos, alguma noção do tipo de coisa que provavelmente é o que melhor afeta uma ampla faixa de nosso leitores. Neste ponto, podemos começar a considerar a forma real que a comunicação de nossas idéias deva ter. Antes de descermos até detalhes mais refinados dos mecanismos internos das histórias, a primeira coisa a ser considerada é a sua forma básica e a sua estrutura. Para maximizar os efeitos da idéia que você está tentando comunicar é preferível dar à história algum tipo de forma definida, que tenha um certo tipo de unidade e senso de integridade que produzam uma impressão coerente e organizada na mente humana. Há tantas formas de história como existem formas na natureza. Algumas delas são irregulares, outras, regulares, todas elas com suas vantagens e desvantagens e possibilidades. Presumivelmente, você escolherá uma estrutura que pareça acomodar, da melhor maneira possível, o efeito que você deseja para a história, mas, além disso, não importa realmente qual será a estrutura escolhida. O importante é que você entenda a estrutura do trabalho que está criando, seja qual for a estrutura que possa vir. Se você escolheu desviar-se do assunto, então tudo bem, apenas enquanto você estiver atento ao que está fazendo e atento às conseqüências no efeito global da história.
Algumas estruturas são óbvias e evidentes por si só. Uma que eu uso muito, provavelmente muito além da conta, é a estrutura básica elíptica, onde elementos do começo da história refletem eventos que estão para acontecer no fim, ou onde uma frase ou imagem particular será usada no início e no fim, agindo como extremidades para situar a história, num senso de esmero e unidade. Outra estrutura é iniciar a partir do meio da história e preencher o passado ao mesmo tempo que avança com a trama no futuro, movendo desse modo ambas as situações com a narrativa ao mesmo tempo. Um exemplo disso seria Dia de Fuga. A ação começa no meio, com o Monstro do Pântano e Abby correndo através do pântano, sendo então preenchida com os eventos que os levaram àquela situação ao mesmo tempo em que mostramos a história prosseguir, desdobrando-se no presente. Uma estrutura mais complexa seria uma que tomei emprestada de Gabriel Garcia Marques, na segunda parte de Nukeface Paper em SWAMP THING n.º 36. Aqui, temos uma história inteira contada por cada personagem, dependendo do quanto da ação central aconteceu com eles, individualmente. Desse modo, nenhum dos personagens tinha a história toda, mas com cada novo relato dos eventos nós conseguíamos um pouco mais sobre a situação até finalmente percebermos que a montanha-russa está completa e que o quadro todo está finalmente diante de nós, se bem que desdobrado numa forma insólita e - espero eu - interessante. Uma estrutura mais simples seria a de SWAMP THING n.º 34 onde a peça central era um poema erótico-abstrato de oito páginas, e, o resto da história, simplesmente a moldura daquela peça central.
Ainda assim, todas essas são estruturas formais e não há razão pela qual escritores de quadrinhos aspirantes devam recolher suas noções de estrutura a partir de parâmetros tão limitados quanto os meus. Retornando novamente a Eddie Campbell, ou, sem dúvida, a Phil Elliot ou Ed Pinsent ou um sem-número de outros instigantes talentos que tem emergido nestes últimos anos, alheios ao mercado corrente de quadrinhos, nós encontramos formas de histórias que são radicalmente diferentes de qualquer das formas mais convencionais descritas acima. Eddie Campbell tende a dar às suas histórias um tipo de estrutura anedótica informal que espelha precisamente o modo no qual as histórias são usualmente recontadas de pessoa a pessoa, intercaladas por pequenas lembranças e desviando-se do assunto deixado intacto. As histórias sugerem ter uma estrutura precisamente controlada, mas parecem, de alguma maneira, muito mais naturais e orgânicas que uma porção de estruturas mais cientes de si mesmas que eu tenho usado ocasionalmente. Phil Elliot descreve suas histórias como tendo um A e um B para definir o começo e o fim com um tipo de narrativa exploratória e não-linear, que toma lugar entre esses dois pontos. Essas são todas elas abordagens válidas e, olhando para elas com olhos analíticos, certamente se mostram utilizáveis para chegar à idéia do que a estrutura realmente é e o que sua abordagem própria do assunto poderia ser.
Neste ponto, talvez eu deva sublinhar que, muito embora esteja apresentando estas várias facetas e elementos das histórias afim de que pareçam fazer sentido para mim, não há razão pela qual você deva realizar a sua história seguindo esses passos exatamente ao pé-da-letra. Ao invés de começar com uma idéia-base você decide que teve uma ótima idéia para uma estrutura de história e então sai atrás de uma idéia que melhor convenha à essa estrutura. O episódio de V de Vingança intitulado Vídeo, por exemplo, era uma história onde a estrutura foi concebida primeiro: seria possível contar uma história usando apenas diálogos absolutamente incidentais acontecendo num televisor? A estrutura encabeçou a idéia básica da história, e quando surgiu um lugar conveniente no contínuo dos episódios da série onde essa estrutura podia ser aproveitada, eu a empreguei. Uma simples imagem, uma simples linha de diálogo, qualquer uma delas pode ser o início de uma história. Minha tese é que, em algum lugar ao longo da linha, em qualquer lugar que você comece, todos os vários elementos individuais que discutimos aqui serão examinados caso o trabalho esteja ficando tão bom quanto você possa fazê-lo.
Agora que temos alguma idéia sobre estruturas, o próximo passo é considerar o próprio ato de contar histórias, que, para efeito de discussão, será definido aqui como a forma pela qual as histórias se movem e se comportam dentro dos limites da estrutura. Uma vez que agora atingimos uma área melhor definida da composição de histórias, é muito mais fácil ver os elementos que vão caracterizar as dificuldades do processo de contar histórias. Sem nenhuma ordem em particular, áreas proeminentes dentro de um conjunto de instrumentos narrativos, incluindo cenas de transição, velocidade da narrativa, ritmo, suavidade do fluxo e todos os outros aspectos que dizem respeito mais à história em si que ao desenrolar dos eventos dentro da mesma.
Transição, o movimento de uma cena para outra, é um dos mais intrincados e intrigantes elementos de todo processo de escrita. O problema é mover de um lugar ou de um tempo a outro sem forçar algo drástico ou desajeitado que poderia comprometer o delicado envolvimento do leitor com a história. Se a transição for tratada da maneira errada, isto fará o leitor "despertar" depressa demais para o fato de estar apenas lendo uma história: se você gastou toda a primeira cena construindo o envolvimento do leitor com a trama e os personagens, certamente não vai querer que nada o devolva à realidade. Uma vez que até mudanças de cenário requerem com freqüência um tipo de quebra, seguindo uma pausa entre o final de uma cena e o começo de outra, o intervalo de transição é um dos lugares onde muito provavelmente você se arrisca a perder o interesse do leitor se não for trabalhado adequadamente.
Como eu vejo, uma história bem sucedida de qualquer tipo deve ser quase como uma hipnose; você fascina o leitor com sua primeira frase, o conduz mais adiante com a segunda, e o tem em transe suave por volta da terceira. Então, tendo cuidado em não acordá-lo, você o leva adiante por entre os estreitos caminhos de sua narrativa e, quando ele estiver completamente perdido para a história, tendo se entregado a ela, você o acerta com uma terrível violência, como uma tacada de um bastão de softball, e assim, o deixa implorar pela saída na última página. Creia-me, ele vai agradecer por isso.
Uma coisa importante é que o leitor não acorde até que você assim o queira, e a transição entre as cenas é o ponto fraco do encanto que você está tendo um trabalhão para lançar sobre ele. De uma forma ou de outra como escritor você tem que vir com seu próprio repertório de macetes e truques com os quais você constrói o seu intervalo de credibilidade que a mudança de cena representa, tomando emprestado alguns conselhos de outros escritores e, se Deus quiser, quem sabe, trazendo um pouco dos seus próprios.
Um que tenho usado em excesso, a julgar pelos comentários que colhi em revisões ou em cartas dos leitores, é o uso da sobreposição ou coincidência de diálogos. Ou seja, é algo muito melhor do que recair no velho e estropeado Enquanto isso, na Sala da Justiça... ou algum cacoete parecido, e é mais largamente aplicável que algumas das mais arrojadas idéias experimentais sobre mudança de cena, muitas das quais só possuem, na maioria das vezes, um uso limitado.
Uma coisa que acabo fazendo, e que facilita a transição e é, algumas vezes, tudo o que se precisa para realizá-la, é escrever tendo como unidade básica a página, de modo que a ação do leitor de virar a página se torne o compasso no qual eu mudo de cena sem perturbar o ritmo da história. Outra abordagem é variar a técnica de sobreposição de diálogos e usar a sincronicidade da imagem mais que palavras ou até mesmo uma articulação coincidente de idéias vagas e abstratas. É até mesmo possível usar a cor para mudar de cena: o fim de uma cena que tenha uma porção de troca de tiros e derramamento de sangue poderia terminar com um close no brilhante sangue vermelho todo espalhado sobre o piso branco. O quadro seguinte poderia, de repente, cortar para uma praça comercial na Itália, num close de uma barraca de um florista com uma vasta profusão de flores vermelhas tomando a maior parte da cena. Neste exemplo, a simples manutenção da cor vermelha provavelmente é suficiente para conduzir com sucesso o leitor à transição.
A transição nem sempre tem que ser suave. Se você for habilidoso o suficiente, algumas vezes você pode usar uma transição muito abrupta, com tal elegância que ninguém irá perceber qualquer quebra no fluxo até que o momento tenha passado e o leitor já esteja devidamente absorvido pela próxima cena da história. Um exemplo que vem do cinema seria o estonteante artifício que Hitchcock usou em OS PÁSSAROS: ao encontrar um corpo destroçado pelas aves, com os olhos vazados, a heroína abre sua boca e inspira, obviamente prestes a soltar um grito ensurdecedor. Ao invés de mostrar o grito, Hitchcock corta, de repente, para a próxima cena, num close-up de um motor guinchando, o barulho amplificado e dissonante com o que se formou na cabeça de quem assiste, com o grito que se estava esperando ouvir. A mudança brusca na cena é surpreendente, mas Hitchcock consegue usar o senso de surpresa com fins positivos, acentuando o prazer da história muito mais que dispersando a atenção. Isto não funcionaria num meio quadrinhístico, mesmo usando efeitos com onomatopéias, mas não há razão pela qual uma mente com iniciativa não possa encontrar uma forma de adaptar as bases deste artifício numa seqüência de palavras e imagens fixas.
Transições, embora importantes em si mesmas, podem também ser consideradas como parte de um tópico geral sobre espaçamento ou compasso. O compasso, apesar de, quando feito corretamente, nem é percebido pelo leitor, é uma parte integrante da história, determinando a história e o timing dos eventos dentro da história para uma melhor impressão. A maneira mais simples de entender o timing nos quadrinhos é aprender quanto tempo um leitor gasta num quadrinho antes de passar para o próximo. A princípio, ele leva um certo tempo lendo as legendas e os balões de diálogo. Um quadrinho contendo um padrão de 35 palavras levará talvez cerca de sete a oito segundos para ser lido, dependendo da complexidade da imagem que o acompanha. Uma simples imagem sem nenhum balão nem legenda talvez tome três segundos. Se você ler algumas histórias tendo o timing em mente, em breve você terá uma intuição útil sobre quanto o leitor demora em cada quadro. Ainda que isto não lhe dê um rígido controle, tal qual a montagem do tempo desfrutada pela indústria cinematográfica (o qual tem suas próprias desvantagens), sem dúvida ele confere a você algum princípio de controle sobre quanto demora para os olhos dos leitores serem guiados ao longo da página, ou através da história como um todo.
O compasso deve engrenar tendo uma cena na mão. Uma cena pensativa que exija atenção provavelmente funcionaria melhor com ritmo completamente lento. Uma cena de ação rápida, talvez uma cena de luta, provavelmente funcionaria melhor ao mover-se tão rápido quanto possível. Compare algumas das cenas de luta silenciosas de Frank Miller - as quais se movem muito rápido, fluindo de imagem para imagem com a velocidade de um conflito em tempo real, não interrompendo o leitor com pausas para ler montes de texto de acompanhamento - e as cenas de luta de escritores menores com algum senso de movimento de cena é entrecortada pelos antagonistas despejando montes e montes de diálogo um ao outro. O que foi dito acima não são regras rígidas ou de fácil assimilação: tenho certeza que é possível escrever uma cena de ação com ritmo rápido e usar muitos diálogos, bem como sei que é possível aumentar a quantidade de detalhes nas próximas cenas para fazer uma longa seqüência muda que seja lida bem devagar. Ou seja, alguma intuição sobre como compassar as palavras é essencial para a construção de uma história, tanto para construir o suspense numa situação dramática, ou sincronizando uma gag para circunstâncias mais cômicas. Jogue com cenas silenciosas e veja como podem ser usadas para estender o momento de suspense até reforçar o impacto, se necessário.
Experimente a noção de sincronia e veja o que acontece. No episódio 100 Rooms da série LOCAS TAMBIEN, Jaime Hernandez faz algumas coisas incrivelmente fortes com a estrutura do tempo e as executa com genuíno èlan. Um exemplo seria quando o amargurado suposto-nobre que tinha "seqüestrado" Maggie finalmente retira a mão de sua boca, confiante que ela não vai gritar. Abruptamente, no quadrinho seguinte, cortamos para um momento futuro indefinido, no mesmo quarto; Maggie e seu raptor obviamente fizeram amor e o homem está sentado ao lado da cama, desculpando-se pelo seu comportamento. Esta repentina, desconexa e deliberada quebra do compasso da história é desorientante, mas, de uma certa maneira, satisfatória. Não é nada que eu tenha me atrevido a tentar pessoalmente, mas demonstra apenas o que é possível se você tiver talento, nervos e imaginação suficiente. Você pode acrescentar elementos que realmente perturbem o fluir da sua história e ainda conseguir que eles atuem no contexto dela como um todo.
Basicamente, não há limites aos diferentes efeitos de narrativa e abordagem que sejam possíveis além dos limites impostos pela nossa própria imaginação. Tudo o que se pede é que se pense sobre as técnicas que se está usando, entendendo o que elas são e sabendo onde elas são aplicáveis. Mais importante ainda: deve-se ter em mente que os vários artifícios narrativos só estão ali para dar a melhor expressão de sua história, ou de parte dela. Se você tiver uma brilhante idéia para um artifício desses e ele não for apropriado para a história que você está escrevendo, abandone-o. Quando os macetes narrativos oprimem a idéia que você está tentando conduzir a princípio, então você trabalhando em detrimento da história muito mais que em benefício dela, eles devem ser riscados sem dó nem piedade.
Como muitas das intrincadas tramas descritas acima, a confiança no que está deixando para trás e o que incluir em qualquer história determinada são coisas que vêm apenas com prática e experiência, mas, uma vez que se saiba pelo menos o que está procurando, provavelmente verá que essas coisas acabam vindo mais rápido que se imagina.
1 The Comics Journal #119 (Janeiro de 1988), #120 (Março de 1988) e #121 (Abril de 1988)
O seguinte texto foi apresentado aos leitores americanos nas páginas da revista especializada The Comics Journal #119 (Janeiro de 1988), #120 (Março de 1988) e #121 (Abril de 1988). Além de raro, ele talvez represente o mais claro e objetivo texto sobre a arte de escrever roteiros de histórias em quadrinhos. Divertido e sério ao mesmo tempo, demostra uma vez mais o impecável e refinado talento de Alan Moore em escrever bem sobre praticamente qualquer coisa.
Moore, como você trabalha em seus roteiros?
“Basicamente começo por desenhar pequenos esboços da página. Eu preparo os quadrinhos para dizer ao artista onde tudo está, certificando-se que o diálogo encaixa perfeitamente, e então transformo esses esboços em um texto altamente detalhado para o artista, que nunca realmente vê os esboços. Todos os elementos da história estão projetados. Como eu transformo os desenhos esboçados em descrições, meus textos são muito compridos. Uma página de quadrinho é provavelmente duas ou três páginas do roteiro, ou mais. Às vezes, ele leva muitas palavras para descrever essas coisas. Ao menos nesse caminho, estou no controle de todo o processo. Ao invés de somente sentar com uma caneta e um bloco de notas, posso imaginar o trabalho todo finalizado, em todos os detalhes. Os efeitos do letreamento, a colocação das personagens, a iluminação, a colorização se necessário. Isso me dá muito do controle, que é o caminho que sempre trabalhei e o caminho que provavelmente irei trabalhar.”
PARTE I
N. do T.: Para esta primeira parte, é interessante que você tenha à mão, se possível, a excelente edição Monstro do Pântano, Volume 1, publicada recentemente pela editora Brainstore, ou então as antigas edições de Novos Titãs e Superamigos, publicadas pela editora Abril, com as histórias do Monstro do Pântano; V de Vingança, da editora Globo ou da Via Lettera; Qualquer edição de A Piada Mortal e edições de Love and Rockets.
A maior dificuldade de escrever sobre qualquer atividade criativa, seja escrever sobre ela mesma até escrever sobre como consertar automóveis é que, na maioria das vezes, os artigos ou entrevistas que surgem parecem ser incapazes de se estenderem além de informações técnicas óbvias e listas de instrumentos recomendados. Não quero recair nessa mesma rotina, dizendo qual máquina de escrever eu uso, ou qual tipo de papel carbono acho ser o melhor, já que esta informação não fará a menor diferença na qualidade do que você escreve. Da mesma maneira, não acho que uma análise precisa do meu processo de trabalho seja muito útil, já que imagino que ele varia drasticamente de história para história, e que todo escritor tende a desenvolver sua própria abordagem em resposta a suas próprias circunstâncias.
Além disso, não quero produzir nada que lembre, nem remotamente, algo como "O Método Alan Moore de Escrever HQ's". Ensinar gerações de novos artistas e escritores a copiar a geração que os precedeu foi uma idéia estúpida de uma época onde a Marvel lançou seu livro “O Método Marvel de Desenhar HQ's” e seria igualmente irresponsável da minha parte instruir escritores novos ou experientes sobre como escrever títulos idiotas e extravagantes do tipo "O Alvorecer Transformou O Céu num Matadouro" ou algo assim. John Buscema foi um grande artista, mas a indústria não precisa de cinqüenta pessoas desenhando como ele, e menos ainda de outros cinqüenta escrevendo como eu.
Com tudo isso em mente, gostaria de tentar expor algo que acrescente a este extenso capítulo sobre como podemos realmente pensar sobre a arte de escrever quadrinhos, que é melhor do que uma lista de detalhes específicos. Gostaria de falar sobre abordagens e processos mentais que dão suporte a escrita como um todo, ao invés de falar sobre o modo como esses processos são finalmente colocados no papel. Da forma que vejo a situação, o modo como pensamos ser o ato de escrever inevitavelmente moldará os trabalhos que produzimos. Analisando a maior parte da produção corrente das principais companhias de quadrinhos, me parece que um fator que contribui enormemente ao desânimo geral sejam os estagnados processos de pensamento promovidos por elas. Seguramente, em termos das convenções gerais de escrever quadrinhos atualmente, minha tendência é ver as mesmas como mecânicas estruturas de enredo e a mesma abordagem funcional de caracterização sendo usada várias e várias vezes, até o ponto em que as pessoas encontram uma grande dificuldade em imaginar onde poderiam estar maneiras diferentes de fazer as coisas.
Como nossos pressupostos básicos sobre a nossa profissão vêm se tornando cada vez mais obsoletos, achamos que isso se refere mais a um problema de criar trabalhos de alguma relevância para um mundo que se altera rapidamente, no qual a indústria e os leitores que a sustentam realmente sejam considerados. Por relevância, já que toquei no assunto, não falo de histórias sobre relações raciais e poluição, ainda que elas certamente sejam boa parte disso. Falo de histórias que realmente tenham algum tipo de significado em relação ao mundo ao nosso redor, histórias que reflitam a natureza e a textura da vida nestes últimos anos do século vinte. Histórias que sejam úteis de alguma maneira. Reconhecidamente, seria muito fácil para a indústria viver confortavelmente por um tempo se aproveitando das fraquezas de leitores que acompanham os quadrinhos devido a nostalgia ou por simples escapismo, mas a industria que trabalha exclusivamente dessa forma é, no meu entender, impotente e digna apenas de um pouco mais de consideração ou interesse do que a indústria de cartões comemorativos.
O motivo pelo qual escrever para os quadrinhos seja talvez até mesmo mais interessante que desenhá-los é que escrever acaba sendo o estopim de todo o processo. Se o que for pensado antes de escrever for inadequado, o enredo é inadequado. Desse modo, até mesmo sob as mãos dos melhores artistas do mundo, a história finalizada vai lamentar a falta daquilo que nenhuma soma de imagens coloridas e impressão poderia substituir ou compensar. Para mudar os quadrinhos, nós precisamos mudar a maneira de pensar sobre sua criação, e a investigação a seguir deve ser vista apenas como os primeiros e toscos degraus para este fim.
Ao buscar um melhor lugar para começar, talvez seja interessante começar por uma extensa consideração sobre os quadrinhos e suas possibilidades, e daí extrair nosso método. Ao pensar sobre quadrinhos, você tem que ter alguma idéia sobre o que é o assunto que está sendo considerado. É aqui que começa a nossa primeira dificuldade: no esforço de definir os quadrinhos, muitos autores têm arriscado pouco mais do que rascunhar comparações entre uma técnica e outra, mais amplamente aceitáveis como formas de artes. Quadrinhos são descritos em termos de cinema e, com efeito, muito do vocabulário que emprego todo o dia nas descrições das cenas para qualquer artista provém inteiramente do cinema. Falo em termos de close-ups, long-shots, zooms e panorâmicas; é uma útil linguagem convencionada de instruções visuais precisas, mas ela também nos leva a definir os valores quadrinhísticos como sendo virtualmente indistinguíveis dos valores cinematográficos. Enquanto o pensamento cinematográfico tem, sem sombra de dúvida, produzido muitos dos melhores trabalhos em quadrinhos dos últimos trinta anos, eu o vejo, quando modelo para basear nosso próprio meio, como sendo eventualmente limitante e restringente. Por sua vez, qualquer imitação das técnicas dos filmes pelos quadrinhos faz com que acabem perdendo, inevitavelmente, na comparação. É claro, você pode usar seqüências de cenas de forma cinematográfica para tornar seu trabalho mais envolvente e animado que o de quadrinhistas que não dominam este truque ainda, mas em última análise, você acaba ficando com um filme sem som nem movimento. O uso de técnicas de cinema pode ser um avanço para os padrões de escrever e desenhar quadrinhos mas, se estas técnicas forem encaradas como o ponto máximo ao qual a arte dos quadrinhos possa aspirar, nosso meio está condenado a ser eternamente um primo pobre da indústria cinematográfica. Isso não é bom o bastante.
Quadrinhos também são vistos em termos literários, ambicionando traçar comparações entre seqüências quadrinhizadas e formas literárias convencionais. Assim, as "histórias curtas" dos quadrinhos seriam aproximadamente baseadas em fórmulas clássicas de escritores como O. Henry e Saki (escritores populares norte americanos da virada do século, que praticamente "inauguraram" esta forma de conto contemporâneo), com o desfecho surpresa no último quadrinho. Com "menos inteligência ainda", uma HQ com mais de quarenta páginas é automaticamente comparada a um romance, uma vez mais perdendo terrivelmente com a comparação. Com toda a boa vontade do mundo, se você tentar descrever a Graphic Novel da Cristal nos mesmos termos em que descreveria Moby Dick, então você está simplesmente procurando por encrenca. Opondo-se à idéia de filmes sem som nem movimento, teremos romances sem extensão, profundidade ou sentido. Isso também não é bom o suficiente.
Para piorar as coisas, toda vez que se usam técnicas de outras linguagens, há uma tendência dos criadores de quadrinhos em permanecerem firmemente presos ao passado. Olhando o que vem sendo descrito como trabalhos cinematográficos nos quadrinhos, normalmente encontramos alguém falando que tirou suas idéias sobre cinema quase que inteiramente do trabalho de Will Eisner, ou mais precisamente, do que ele fazia há trinta ou quarenta anos atrás. Não é um mal começo, eu admito, exceto que a maioria das pessoas parece se contentar apenas com aquilo. Eisner, no auge de The Spirit, utilizou as técnicas cinematográficas de pessoas como Orson Welles, com resultados brilhantes. Seus imitadores também usam as técnicas cinematográficas de Orson Welles, mas de segunda-mão, esquecendo que Eisner estava aprendendo com a cultura que o cercava naquele tempo. Cinema nos quadrinhos eqüivalem a Welles, Alfred Hitchcock, e talvez alguns outros mais, tendo todos eles realizado seus melhores trabalhos há trinta anos atrás. Por que não se tenta entender e adaptar o trabalho de pioneiros contemporâneos como Nicolas Roeg ou Altman ou Coppola, se o que estamos procurando é uma abordagem verdadeiramente cinematográfica? Por que os valores literários nos quadrinhos devem ser determinados pelos valores dos velhos pulp fictions de trinta ou quarenta anos atrás, independentemente do valor que estes pulp fictions possam ter?
Melhor que agarrar-se nas similaridades superficiais entre quadrinhos e filmes ou quadrinhos e livros na esperança de que a respeitabilidade e o prestígio dessas linguagens venham purificar-nos, não seria mais construtivo concentrar nossa atenção nas áreas onde os quadrinhos são especiais e únicos? Não seria melhor que, ao invés de persistir em técnicas de filmes que os quadrinhos podem reproduzir, tentássemos talvez considerar as técnicas de quadrinhos que os filmes não podem reproduzir?
Se, por um lado, acreditava-se que a garantia de maior liberdade criativa ou a divisão do conhecimento desenvolvido entre os artistas e escritores na indústria produziria um surto de uma impressionante criatividade e invenção, por outro lado, não é esse o nosso caso. Com muito raras e honrosas exceções, a maioria do material de criação própria produzido pelas editoras independentes quase não se distingue da produção corrente que o precedeu. Me parece que isso demonstra que o problema não é, a princípio, de condições de trabalho ou de incentivo; o problema é de criatividade, e é num nível criativo básico que ele poderá ser resolvido. Não acho que esta solução virá sem uma melhoria drástica do padrão de se escrever para os quadrinhos, uma vez que, como disse no começo, o escritor é o estopim de todo o processo criativo. Para este fim, então, vamos mudar de assunto, onde darei o melhor de mim para descrever alguns dos problemas e do potencial que vejo em vários aspectos na arte de escrever quadrinhos.
Uma vez mais, a dificuldade é saber por onde começar. A lista de considerações a serem feitas, mesmo para a mais simples HQ, é enorme, e ela realmente não interessa para o que nós escolhemos examinar primeiro. Tudo está conectado, e cada item leva ao outro. Dessa forma, podemos igualmente colocar, a princípio, os elementos mais intangíveis e abstratos fora de seu contexto, antes de prosseguir nos aspectos mais refinados e precisos da arte. Um bom ponto de partida talvez seja aquele que repousa exatamente no centro de qualquer processo criativo: a idéia.
A idéia é aquilo sobre o qual a história trata; não é nem a trama da história, nem o desenrolar dos eventos dentro da história, mas aquilo que a história essencialmente é. Como exemplo do meu próprio trabalho (não porque ele seja particularmente um bom exemplo, mas porque me sinto com mais autoridade para falar dele do que teria se fosse o trabalho de outra pessoa), eu poderia citar a história A Maldição. A história trata das dificuldades suportadas pelas mulheres nas sociedades masculinas, usando o tabu comum da menstruação como motivo central. Isso não é a trama da história - a trama diz respeito a uma jovem casada se mudando para uma nova casa, construída sobre o local onde havia uma antiga choupana indígena, que se vê possuída pelo espírito dominante que ainda residia ali, transformando-se num lobisomem. Eu espero que aqui a distinção entre idéia e trama tenha ficado bem clara, pois ela é importante e é ignorada por muitos escritores. A maioria das histórias em quadrinhos possui tramas nas quais o único assunto é a luta entre dois ou mais antagonistas. O resultado desse confronto, normalmente envolvendo alguma mostra deus ex maquina de algum superpoder, é igualmente a resolução da trama. Além de uma banalidade extremamente vaga e sem graça do tipo o bem sempre vencerá o mal, não há realmente idéias centrais na maioria dos quadrinhos, fora a noção de que o conflito é interessante por si mesmo.
De onde as idéias realmente vêm parece ser, à primeira vista, a maior preocupação da maioria das pessoas interessadas em aprender como escrever quadrinhos, e é, provavelmente, a única questão que as pessoas criativas se perguntam com mais freqüência. Sem surpreender, é também a questão que mais têm permanecido sem resposta. Se ameaçassem me torturar para que eu desse uma resposta concisa, provavelmente diria que as idéias parecem germinar na fértil encruzilhada entre as influências de outros artistas e minhas próprias experiências. O estudo do trabalho de outras pessoas fornece indicadores úteis de como formular uma idéia, mas o impulso primordial vem de dentro do escritor ou criador, influenciado pelas suas próprias opiniões, seus preconceitos, por todas as coisas que têm acontecido com eles e por todos os elementos de suas vidas que acabam por definir o tipo de pessoa que eles são. Não há substituto para a experiência prática, e se você quiser escrever sobre gente, você tem o dever de desprezar as revistas em quadrinhos e sair por aí procurando coisa melhor que estudar o modo como Stan Lee ou Chris Claremont descrevem pessoas.
Torna-se um problema de mudar sua percepção para notar pequenas circunstâncias peculiares que poderiam, de outro modo, passar despercebidas, estudando nosso próprio convívio e o relacionamento com as pessoas e os acontecimentos que nos rodeiam até você sentir que desenvolveu uma visão coerente sobre a vida e a realidade, ao menos tão longe quanto ter a perspectiva sobre situações que indiquem a vinda de idéias próprias e originais. Eddie Campbell tem desenvolvido uma visão extraordinariamente singular e perceptiva para a trivialidade da existência, e isso lhe permite transformar coisas que poderiam, de outra maneira, parecerem ordinárias e indignas de nota, em algo ao mesmo tempo revelador e divertido. Minha tese é que você não pode ensinar as pessoas a terem a mesma percepção e idéias que Eddie tem... você deve apenas seguir as orientações de sua própria cabeça, de um certo modo em direção a como você vê a vida e você perceberá que as idéias então virão espontaneamente, ao final, quase sem nenhum estímulo. Um único e novo ponto de vista nunca é reduzido a uma única e nova coisa a dizer ou sobre a qual falar. Visto da maneira certa, tudo se transforma em uma fonte de idéias. Abrindo o jornal na página de economia e lendo sobre a escalada do déficit internacional, algo que poderia parecer chato e duro de engolir à primeira vista é, na realidade, uma situação primorosamente louca que muito provavelmente vai afetar violentamente a vida de todos os que vivem neste planeta pelas próximas décadas e mais além. Há um jeito disto se tornar interessante, talvez divertido, ou talvez aterrorizante, ao leitor comum? E se você constasse isso em termos de uma fantástica alegoria, situada num planeta alienígena com algo absurdo do tipo pele de rato servindo de dinheiro? A idéia de um punhado de alienígenas imbecis pondo irrevogavelmente seu planeta em polvorosa atrás de um punhado de peles de rato talvez seja divertida? E que tal se fizéssemos uma história implacavelmente séria e realista, substituindo os grandes interesses nacionais envolvidos por indivíduos, pessoas, para que o problema possa ser sentido em pequena escala, em termos de elementos humanos, talvez com um agente de uma companhia de empréstimos tentando cobrar os pagamentos numa inóspita e hostil comunidade rural? Existe alguma coisa aqui capaz de prender o interesse das pessoas por uns dez ou quinze minutos?
De outra maneira, talvez alguns incidentes do nosso próprio passado providenciarão o germe de uma história. Quando criança, por exemplo, se meus pais me flagrassem em algum pequeno delito que eu estivesse convencido que eles não teriam possibilidade de saber, algumas vezes ocorria-me que talvez os adultos pudessem ter algum poder especial de saber de tudo, que mantinham escondido das crianças. De fato, algumas vezes tive a impressão que talvez todo mundo tinha tal habilidade, exceto eu, e que eu era a única pessoa excluída dessa massiva conspiração telepática em massa (se você continuar pensando neste tipo de coisa depois dos nove anos de idade, você pode ser tanto um esquizofrênico paranóico quanto um escritor de quadrinhos, assumindo que você faça questão de manter alguma distinção).
Usando esse medo infantil irracional como trampolim, seria possível alcançar talvez um tipo de fantasia à la Ray Bradbury sobre o universo infantil, ou talvez uma cruel história do horror psicológico sobre a paranóia como fenômeno em si, talvez tendo uma criança que sofria de complexo de perseguição que se tornou um agente da espionagem do baixo escalão, trabalhando incógnito do lado errado do Muro de Berlim, num mundo onde todos os seus horrores de infância tornam-se tangíveis e reais? Por favor, tenha sempre em mente que as idéias colocadas não são necessariamente boas idéias... elas apenas são alguns exemplos tirados da manga das formas pelas quais as idéias aproveitáveis podem ser conduzidas.
Eu deveria talvez assinalar que, ao construir uma história, nem sempre é preciso começar por uma idéia. É perfeitamente possível arrumar inspiração para uma história pensando apenas em macetes técnicos puramente abstratos ou numa seqüência de cenas ou em qualquer coisa parecida. Em algum lugar do processo, de qualquer maneira, uma idéia coerente deve começar a surgir do trabalho além dos seus simples maneirismos. Se acontecer de você pensar primeiro numa nítida e curta seqüência de quatro quadros, muito bem, mas você deve então tentar explorar mais o tipo de caráter ou de idéia que os quatro quadros melhor expressam. Como exemplo do meu próprio material, uma idéia original que eventualmente é elogiada dos primeiros quatro ou cinco episódios que fiz com o Monstro do Pântano, toma forma como um punhado de idéias desconexas para seqüências que tinham um pequeno significado, individualmente: uma última idéia era utilizar a capacidade de camuflagem do Monstro do Pântano... talvez ter parte de sua perna ou de seu corpo visível no cenário de tal modo que tanto o leitor quanto os outros personagens não percebam que estão olhando para a criatura do pântano durante alguns segundos. Isto acabou sendo as duas primeiras páginas da história Possuído pelo Pântano.
Outra idéia que tive, ao mesmo tempo, envolveu o modo de trabalhar dos outdoors Burma Shave, cuidadosamente espaçados e rimados, usados para percorrer ao longo das estradas da América numa seqüência de letreiros rimados de tal maneira que a última linha da rima, ...Burma Shave, era, na verdade, mais visível na placa em si que dentro do espaços das letras. Isto efetivamente aconteceu nas últimas duas páginas do n.º 26, mesmo não tendo nenhuma idéia ao realmente pensar na seqüência sobre a forma como ela se relacionaria ou qual parte dela participaria do conjunto da história. Eu mantive a idéia pendente até ter uma abertura onde pudesse inseri-la, e assim, quando tive de fazer algo drástico com o personagem Matt Cable, eu o peguei e joguei numa cena de desastre de carro. O fato é que tive de manter as seqüências guardadas na geladeira até ter uma idéia para as histórias que as completariam. Como eu disse antes, ninguém precisa começar por uma idéia, mas, em algum ponto ao longo do processo, uma idéia de verdade é necessária, admitindo-se que este trabalho deva ser de algum impacto.
Nós assumiremos que, a partir de agora, temos uma idéia trabalhável, algo que gostaríamos de dizer e sentir que podemos dizer com convicção. Antes de encaminharmos o problema, deveríamos perceber que, em qualquer ato de comunicação, existem ao menos dois participantes. Em termos de criatividade, estes participantes são o artista e a sua audiência. Se você está prestes a despender um monte de tempo preparando a sua mensagem, talvez seja vantajoso ao menos gastar um pouco mais numa rápida consideração sobre a pessoa para a qual a mensagem se dirige. Obviamente, uma vez que estamos falando sobre audiência em massa, de milhares de indivíduos, não há como o artista conseguir entender os gostos e aversões de cada um deles. A resposta convencional ao problema, ao menos como ficou evidente pelo comportamento de muitas das principais companhias de comics, é tentar não ofender ninguém.
Eu tive ao menos um editor do ramo dizendo que não há sentido em tirar da alienação ao menos um leitor que seja, sendo que o melhor a fazer é "suavizar" os diálogos ou as cenas em questão até que não haja mais nada que possa ser criticado pelo mais sensível membro da audiência. Levando esse raciocínio ao seu extremo, isso sugere que um leitor hipotético ao qual o artista deve se dirigir como sua história é um afrescalhado moralista extremamente afetado que tem um piripaque é primeira sugestão de algo mais carnal que um beijinho de boa-noite sobre a testa. Isso não apenas reforça a idéia de que os quadrinhos são, de alguma maneira, ofensivos por sua própria natureza, e que só serão tolerados enquanto se mantiverem dentro de suas coleiras - aliás, muito bem apertadas, diga-se de passagem - como também falham por não considerarem o enorme número de leitores em potencial não dispostos a perderem seu tempo com papinha-de-nenên literária.
Há algo estranho em ser ofensivamente inofensivo, e, uma vez que não estou sugerindo em nenhum momento que todos os quadrinhos devam ser destinados a depravados cínicos recém-saídos da adolescência, ao menos se deveria perceber que a audiência potencial além desses caras é, de longe, muito variada e grande demais para se aplicar quaisquer critérios restritivos baseados em quadros hipotéticos completamente não-confiáveis de um imaginário "leitor-padrão". O conceito de "leitor-padrão" é completamente retrógrado, ao tentar criar um leitor que não existe. Eu conheço muito poucas pessoas que se acham "leitores-padrão de quadrinhos", e menos pessoas ainda que demonstrem ser realmente convencionais quando examinadas mais de perto. Um meio de comunicação tão pequeno como este tem realmente um padrão significativo que possa ser definido a partir de seu público?
Na minha opinião, a melhor maneira de lidar com o problema é deixar o material encontrar seu próprio nível e sua própria audiência. Mas, uma vez que ao não definirmos nossas hipóteses de trabalho acabamos produzindo leitores imaginários, é óbvio que temos que achar algum meio de compreender a parte que o leitor ocupa no processo criativo. Uma vez mais, eu imagino que fique menos problemático tomar o problema pelo seu outro extremo. Ao invés de pensar sobre o que poderia afetar o leitor negativamente para então expurgar qualquer traço disso no trabalho, por que não pensar sobre coisas que provavelmente afetam o leitor positivamente? Novamente, temos aqui o problema de como definir o que melhor funciona para uma extensa faixa de pessoas, mas, ao menos, neste exemplo, há uma série de modelos úteis para basear nosso pensamento. Um deles é a banal mas sempre criativa piada.
Piadas não são, em geral, dirigidas a um público específico; elas apenas acontecem! Estranhamente, o critério do que seja uma boa piada não parece ser altamente contestado, como quando falamos sobre filmes, livros ou quadrinhos. Algumas pessoas gargalham alto, a diversão de alguns é um pouco mais contida, um ou dois não riem mesmo. Seja qual for a reação, a piada serviu a seus propósitos e afetou várias pessoas diferentes com o melhor de sua capacidade em relação aos sensos de humor de cada um. A pessoa que chega a princípio com a piada não faz idéia da pessoa que eventualmente vai escutá-la... ela apenas acha a piada engraçada. Se ela o faz rir, há uma ótima chance dela fazer uma porção de pessoas rirem também. Eu até arriscaria dizer que muitos dos escritores de quadros humorísticos dos programas de TV se contentam em confiar em sua própria intuição sobre o que é engraçado, mesmo que tenham assistido entrevistas com comediantes como Max Wall, parecendo que há um esforço muito grande no pensar sobre o que exatamente faz as pessoas rirem. Há, seguramente, alguns princípios óbvios de humor que são quase certeza de provocar risadas como resposta, não importando qual a disposição ou a situação da pessoa que ouve a piada possa ter. Compreender essas reações humanas imediatas é uma ferramenta de humor criativo muito mais útil que qualquer consideração sobre um "público-padrão" possa ser.
Pensando sobre um processo geral básico que afete um amplo espectro de seres humanos muito melhor que uma noção ou idéia específica que não afetaria sequer um único tipo de leitor hipotético, será possível chegar a uma compreensão de um dos mecanismos fundamentais das reações humanas. É possível olhar bem de perto para nossas próprias reações e respostas e fazer algumas deduções felizes sobre as respostas básicas de sua leitura. Se você quiser escrever uma história de horror, pense primeiro no tipo de coisa que horroriza você. Analise seus próprios medos a fundo o suficiente e poderá ser capaz de chegar a algumas conclusões sobre a matéria-prima dos medos e das ansiedades humanas. Seja implacável ao fazê-los, e submeta a si mesmo num enorme sofrimento emocional se for necessário para ter respondida essa questão: o que me deixa horrorizado? Imagens de crianças morrendo de fome na África me horrorizam. Por que isso me deixa horrorizado? Isso me horroriza porque não consigo ficar pensando em crianças minúsculas nascendo num mundo de fome, miséria e horror sem nunca conhecer nada além de dor e medo, e não saber nunca que poderia possivelmente haver algo mais do que precisar de comida tão desesperadamente quanto um homem sufocado precisa de ar e nunca ouvindo nada além de choro, lamentações e desespero. Sim, muito bem, mas POR QUE não consigo pensar nisso? Não consigo ficar pensando nisso porque gosto de sentir um mundo como tendo alguma forma de justiça e de ordem sem os quais muito da existência pareceria sem sentido, e eu penso que para essas crianças não há a menor possibilidade delas sentirem o mundo nesses termos. Também sei que, se estivesse naquela mesma situação, também não seria capaz de ver qualquer situação além de fome e miséria juntas. Então, isso significa que não haveria nenhuma ordem, nenhuma razão para a existência? É isso que me faz cagar nas calças toda vez que vejo aquelas titicas de mosca agonizando no noticiário do horário nobre. É. Provavelmente é isso! O que me assusta mesmo provavelmente não é o que está acontecendo com eles, mas o que isso implica para mim.
Aquilo não é uma nobre causa, incrivelmente fácil de ser encarada, mas é o tipo de trabalho sujo que você tem que encarar para ter alguma compreensão válida do material no qual você está trabalhando. Este material são pensamentos humanos, sentimentos humanos e idéias humanas. Tudo no nosso mundo, desde a estrutura familiar até a bomba de nêutrons, tem sua origem nesta área, e qualquer um que pretenda fazer uma bagunça com a consciência de massa para uma missão vital de estar ciente do material está lidando com e como isso se comporta em certas circunstâncias. Para este fim, se considerarmos uma pessoa que eventualmente for ler sua história em quadrinhos, o denominador comum pelo qual você vai atrás não é o minúsculo denominador comum da receptividade do público, e sim o denominador comum da humanidade básica. Se você está lendo isso, há uma boa chance de que você seja um ser humano. Há também uma boa chance de que, não importa o quão único e especial você seja ou pense que é, existam certos mecanismos básicos que você compartilha com membros conservadores do parlamento inglês, mineiros de Yorkshire, lésbicas radicais e policiais. Se você puder identificar e usar estes mecanismos para sua própria satisfação, então você terá muito mais base para produzir uma arte mais proveitosa que se gastasse tempo alucinando um consumidor-padrão imaginário e tentando desesperadamente marretar seu trabalho numa forma que agrade seus altamente hipotéticos gostos e critérios.
Muito bem, agora então nós temos nossa idéia básica e, ao menos, alguma noção do tipo de coisa que provavelmente é o que melhor afeta uma ampla faixa de nosso leitores. Neste ponto, podemos começar a considerar a forma real que a comunicação de nossas idéias deva ter. Antes de descermos até detalhes mais refinados dos mecanismos internos das histórias, a primeira coisa a ser considerada é a sua forma básica e a sua estrutura. Para maximizar os efeitos da idéia que você está tentando comunicar é preferível dar à história algum tipo de forma definida, que tenha um certo tipo de unidade e senso de integridade que produzam uma impressão coerente e organizada na mente humana. Há tantas formas de história como existem formas na natureza. Algumas delas são irregulares, outras, regulares, todas elas com suas vantagens e desvantagens e possibilidades. Presumivelmente, você escolherá uma estrutura que pareça acomodar, da melhor maneira possível, o efeito que você deseja para a história, mas, além disso, não importa realmente qual será a estrutura escolhida. O importante é que você entenda a estrutura do trabalho que está criando, seja qual for a estrutura que possa vir. Se você escolheu desviar-se do assunto, então tudo bem, apenas enquanto você estiver atento ao que está fazendo e atento às conseqüências no efeito global da história.
Algumas estruturas são óbvias e evidentes por si só. Uma que eu uso muito, provavelmente muito além da conta, é a estrutura básica elíptica, onde elementos do começo da história refletem eventos que estão para acontecer no fim, ou onde uma frase ou imagem particular será usada no início e no fim, agindo como extremidades para situar a história, num senso de esmero e unidade. Outra estrutura é iniciar a partir do meio da história e preencher o passado ao mesmo tempo que avança com a trama no futuro, movendo desse modo ambas as situações com a narrativa ao mesmo tempo. Um exemplo disso seria Dia de Fuga. A ação começa no meio, com o Monstro do Pântano e Abby correndo através do pântano, sendo então preenchida com os eventos que os levaram àquela situação ao mesmo tempo em que mostramos a história prosseguir, desdobrando-se no presente. Uma estrutura mais complexa seria uma que tomei emprestada de Gabriel Garcia Marques, na segunda parte de Nukeface Paper em SWAMP THING n.º 36. Aqui, temos uma história inteira contada por cada personagem, dependendo do quanto da ação central aconteceu com eles, individualmente. Desse modo, nenhum dos personagens tinha a história toda, mas com cada novo relato dos eventos nós conseguíamos um pouco mais sobre a situação até finalmente percebermos que a montanha-russa está completa e que o quadro todo está finalmente diante de nós, se bem que desdobrado numa forma insólita e - espero eu - interessante. Uma estrutura mais simples seria a de SWAMP THING n.º 34 onde a peça central era um poema erótico-abstrato de oito páginas, e, o resto da história, simplesmente a moldura daquela peça central.
Ainda assim, todas essas são estruturas formais e não há razão pela qual escritores de quadrinhos aspirantes devam recolher suas noções de estrutura a partir de parâmetros tão limitados quanto os meus. Retornando novamente a Eddie Campbell, ou, sem dúvida, a Phil Elliot ou Ed Pinsent ou um sem-número de outros instigantes talentos que tem emergido nestes últimos anos, alheios ao mercado corrente de quadrinhos, nós encontramos formas de histórias que são radicalmente diferentes de qualquer das formas mais convencionais descritas acima. Eddie Campbell tende a dar às suas histórias um tipo de estrutura anedótica informal que espelha precisamente o modo no qual as histórias são usualmente recontadas de pessoa a pessoa, intercaladas por pequenas lembranças e desviando-se do assunto deixado intacto. As histórias sugerem ter uma estrutura precisamente controlada, mas parecem, de alguma maneira, muito mais naturais e orgânicas que uma porção de estruturas mais cientes de si mesmas que eu tenho usado ocasionalmente. Phil Elliot descreve suas histórias como tendo um A e um B para definir o começo e o fim com um tipo de narrativa exploratória e não-linear, que toma lugar entre esses dois pontos. Essas são todas elas abordagens válidas e, olhando para elas com olhos analíticos, certamente se mostram utilizáveis para chegar à idéia do que a estrutura realmente é e o que sua abordagem própria do assunto poderia ser.
Neste ponto, talvez eu deva sublinhar que, muito embora esteja apresentando estas várias facetas e elementos das histórias afim de que pareçam fazer sentido para mim, não há razão pela qual você deva realizar a sua história seguindo esses passos exatamente ao pé-da-letra. Ao invés de começar com uma idéia-base você decide que teve uma ótima idéia para uma estrutura de história e então sai atrás de uma idéia que melhor convenha à essa estrutura. O episódio de V de Vingança intitulado Vídeo, por exemplo, era uma história onde a estrutura foi concebida primeiro: seria possível contar uma história usando apenas diálogos absolutamente incidentais acontecendo num televisor? A estrutura encabeçou a idéia básica da história, e quando surgiu um lugar conveniente no contínuo dos episódios da série onde essa estrutura podia ser aproveitada, eu a empreguei. Uma simples imagem, uma simples linha de diálogo, qualquer uma delas pode ser o início de uma história. Minha tese é que, em algum lugar ao longo da linha, em qualquer lugar que você comece, todos os vários elementos individuais que discutimos aqui serão examinados caso o trabalho esteja ficando tão bom quanto você possa fazê-lo.
Agora que temos alguma idéia sobre estruturas, o próximo passo é considerar o próprio ato de contar histórias, que, para efeito de discussão, será definido aqui como a forma pela qual as histórias se movem e se comportam dentro dos limites da estrutura. Uma vez que agora atingimos uma área melhor definida da composição de histórias, é muito mais fácil ver os elementos que vão caracterizar as dificuldades do processo de contar histórias. Sem nenhuma ordem em particular, áreas proeminentes dentro de um conjunto de instrumentos narrativos, incluindo cenas de transição, velocidade da narrativa, ritmo, suavidade do fluxo e todos os outros aspectos que dizem respeito mais à história em si que ao desenrolar dos eventos dentro da mesma.
Transição, o movimento de uma cena para outra, é um dos mais intrincados e intrigantes elementos de todo processo de escrita. O problema é mover de um lugar ou de um tempo a outro sem forçar algo drástico ou desajeitado que poderia comprometer o delicado envolvimento do leitor com a história. Se a transição for tratada da maneira errada, isto fará o leitor "despertar" depressa demais para o fato de estar apenas lendo uma história: se você gastou toda a primeira cena construindo o envolvimento do leitor com a trama e os personagens, certamente não vai querer que nada o devolva à realidade. Uma vez que até mudanças de cenário requerem com freqüência um tipo de quebra, seguindo uma pausa entre o final de uma cena e o começo de outra, o intervalo de transição é um dos lugares onde muito provavelmente você se arrisca a perder o interesse do leitor se não for trabalhado adequadamente.
Como eu vejo, uma história bem sucedida de qualquer tipo deve ser quase como uma hipnose; você fascina o leitor com sua primeira frase, o conduz mais adiante com a segunda, e o tem em transe suave por volta da terceira. Então, tendo cuidado em não acordá-lo, você o leva adiante por entre os estreitos caminhos de sua narrativa e, quando ele estiver completamente perdido para a história, tendo se entregado a ela, você o acerta com uma terrível violência, como uma tacada de um bastão de softball, e assim, o deixa implorar pela saída na última página. Creia-me, ele vai agradecer por isso.
Uma coisa importante é que o leitor não acorde até que você assim o queira, e a transição entre as cenas é o ponto fraco do encanto que você está tendo um trabalhão para lançar sobre ele. De uma forma ou de outra como escritor você tem que vir com seu próprio repertório de macetes e truques com os quais você constrói o seu intervalo de credibilidade que a mudança de cena representa, tomando emprestado alguns conselhos de outros escritores e, se Deus quiser, quem sabe, trazendo um pouco dos seus próprios.
Um que tenho usado em excesso, a julgar pelos comentários que colhi em revisões ou em cartas dos leitores, é o uso da sobreposição ou coincidência de diálogos. Ou seja, é algo muito melhor do que recair no velho e estropeado Enquanto isso, na Sala da Justiça... ou algum cacoete parecido, e é mais largamente aplicável que algumas das mais arrojadas idéias experimentais sobre mudança de cena, muitas das quais só possuem, na maioria das vezes, um uso limitado.
Uma coisa que acabo fazendo, e que facilita a transição e é, algumas vezes, tudo o que se precisa para realizá-la, é escrever tendo como unidade básica a página, de modo que a ação do leitor de virar a página se torne o compasso no qual eu mudo de cena sem perturbar o ritmo da história. Outra abordagem é variar a técnica de sobreposição de diálogos e usar a sincronicidade da imagem mais que palavras ou até mesmo uma articulação coincidente de idéias vagas e abstratas. É até mesmo possível usar a cor para mudar de cena: o fim de uma cena que tenha uma porção de troca de tiros e derramamento de sangue poderia terminar com um close no brilhante sangue vermelho todo espalhado sobre o piso branco. O quadro seguinte poderia, de repente, cortar para uma praça comercial na Itália, num close de uma barraca de um florista com uma vasta profusão de flores vermelhas tomando a maior parte da cena. Neste exemplo, a simples manutenção da cor vermelha provavelmente é suficiente para conduzir com sucesso o leitor à transição.
A transição nem sempre tem que ser suave. Se você for habilidoso o suficiente, algumas vezes você pode usar uma transição muito abrupta, com tal elegância que ninguém irá perceber qualquer quebra no fluxo até que o momento tenha passado e o leitor já esteja devidamente absorvido pela próxima cena da história. Um exemplo que vem do cinema seria o estonteante artifício que Hitchcock usou em OS PÁSSAROS: ao encontrar um corpo destroçado pelas aves, com os olhos vazados, a heroína abre sua boca e inspira, obviamente prestes a soltar um grito ensurdecedor. Ao invés de mostrar o grito, Hitchcock corta, de repente, para a próxima cena, num close-up de um motor guinchando, o barulho amplificado e dissonante com o que se formou na cabeça de quem assiste, com o grito que se estava esperando ouvir. A mudança brusca na cena é surpreendente, mas Hitchcock consegue usar o senso de surpresa com fins positivos, acentuando o prazer da história muito mais que dispersando a atenção. Isto não funcionaria num meio quadrinhístico, mesmo usando efeitos com onomatopéias, mas não há razão pela qual uma mente com iniciativa não possa encontrar uma forma de adaptar as bases deste artifício numa seqüência de palavras e imagens fixas.
Transições, embora importantes em si mesmas, podem também ser consideradas como parte de um tópico geral sobre espaçamento ou compasso. O compasso, apesar de, quando feito corretamente, nem é percebido pelo leitor, é uma parte integrante da história, determinando a história e o timing dos eventos dentro da história para uma melhor impressão. A maneira mais simples de entender o timing nos quadrinhos é aprender quanto tempo um leitor gasta num quadrinho antes de passar para o próximo. A princípio, ele leva um certo tempo lendo as legendas e os balões de diálogo. Um quadrinho contendo um padrão de 35 palavras levará talvez cerca de sete a oito segundos para ser lido, dependendo da complexidade da imagem que o acompanha. Uma simples imagem sem nenhum balão nem legenda talvez tome três segundos. Se você ler algumas histórias tendo o timing em mente, em breve você terá uma intuição útil sobre quanto o leitor demora em cada quadro. Ainda que isto não lhe dê um rígido controle, tal qual a montagem do tempo desfrutada pela indústria cinematográfica (o qual tem suas próprias desvantagens), sem dúvida ele confere a você algum princípio de controle sobre quanto demora para os olhos dos leitores serem guiados ao longo da página, ou através da história como um todo.
O compasso deve engrenar tendo uma cena na mão. Uma cena pensativa que exija atenção provavelmente funcionaria melhor com ritmo completamente lento. Uma cena de ação rápida, talvez uma cena de luta, provavelmente funcionaria melhor ao mover-se tão rápido quanto possível. Compare algumas das cenas de luta silenciosas de Frank Miller - as quais se movem muito rápido, fluindo de imagem para imagem com a velocidade de um conflito em tempo real, não interrompendo o leitor com pausas para ler montes de texto de acompanhamento - e as cenas de luta de escritores menores com algum senso de movimento de cena é entrecortada pelos antagonistas despejando montes e montes de diálogo um ao outro. O que foi dito acima não são regras rígidas ou de fácil assimilação: tenho certeza que é possível escrever uma cena de ação com ritmo rápido e usar muitos diálogos, bem como sei que é possível aumentar a quantidade de detalhes nas próximas cenas para fazer uma longa seqüência muda que seja lida bem devagar. Ou seja, alguma intuição sobre como compassar as palavras é essencial para a construção de uma história, tanto para construir o suspense numa situação dramática, ou sincronizando uma gag para circunstâncias mais cômicas. Jogue com cenas silenciosas e veja como podem ser usadas para estender o momento de suspense até reforçar o impacto, se necessário.
Experimente a noção de sincronia e veja o que acontece. No episódio 100 Rooms da série LOCAS TAMBIEN, Jaime Hernandez faz algumas coisas incrivelmente fortes com a estrutura do tempo e as executa com genuíno èlan. Um exemplo seria quando o amargurado suposto-nobre que tinha "seqüestrado" Maggie finalmente retira a mão de sua boca, confiante que ela não vai gritar. Abruptamente, no quadrinho seguinte, cortamos para um momento futuro indefinido, no mesmo quarto; Maggie e seu raptor obviamente fizeram amor e o homem está sentado ao lado da cama, desculpando-se pelo seu comportamento. Esta repentina, desconexa e deliberada quebra do compasso da história é desorientante, mas, de uma certa maneira, satisfatória. Não é nada que eu tenha me atrevido a tentar pessoalmente, mas demonstra apenas o que é possível se você tiver talento, nervos e imaginação suficiente. Você pode acrescentar elementos que realmente perturbem o fluir da sua história e ainda conseguir que eles atuem no contexto dela como um todo.
Basicamente, não há limites aos diferentes efeitos de narrativa e abordagem que sejam possíveis além dos limites impostos pela nossa própria imaginação. Tudo o que se pede é que se pense sobre as técnicas que se está usando, entendendo o que elas são e sabendo onde elas são aplicáveis. Mais importante ainda: deve-se ter em mente que os vários artifícios narrativos só estão ali para dar a melhor expressão de sua história, ou de parte dela. Se você tiver uma brilhante idéia para um artifício desses e ele não for apropriado para a história que você está escrevendo, abandone-o. Quando os macetes narrativos oprimem a idéia que você está tentando conduzir a princípio, então você trabalhando em detrimento da história muito mais que em benefício dela, eles devem ser riscados sem dó nem piedade.
Como muitas das intrincadas tramas descritas acima, a confiança no que está deixando para trás e o que incluir em qualquer história determinada são coisas que vêm apenas com prática e experiência, mas, uma vez que se saiba pelo menos o que está procurando, provavelmente verá que essas coisas acabam vindo mais rápido que se imagina.
1 The Comics Journal #119 (Janeiro de 1988), #120 (Março de 1988) e #121 (Abril de 1988)
terça-feira, 11 de novembro de 2008
Essa Merda Toda...
Essa Merda Toda...
Por que nem tudo é poesia e nem todo texto presta, mas, pelo menos, tem algo a dizer...
01
Deus,
Pai, mãe.
Senhor,
Sei lá...
Alá!
Todos os nomes,
Todos os rostos,
A mesma alma.
A alma do criador,
Aquele que conversa com cada homem, animal, ser...
Aquele de várias faces,
De várias “fés”.
Quando falo, você escuta?
Quando escrevo, você lê?
Quando estou sozinho no banheiro,
Estou sozinho?
Quando o senhor chora?
Eu choro... Imagem e semelhança.
És tão tolo quanto nós?
Ou tem apenas cara de bobo?
02
A estrela brilhou forte
A lua crescente arrastou a chuva passageira,
Abriu caminhos para o céu.
O vento trazia a cura
O farfalhar das folhas acalmava a alma
A magia da noite estrelada
A todos nos envolvia.
Eu crescia dentro de mim.
Animal antigo, coroado com a sabedoria do espírito milenar em comunhão com Deus e com o passado.
03
Como tem coisas este mundo.
Cheio de mistérios invisíveis, de fatos corriqueiros e impossíveis.
Uma só verdade ramificando-se em várias mentiras.
Mentiras recheadas de fé e é só!
Só o que basta.
Completa.
Repleta onde está.
Fé em tudo e em todos.
04
Minha vontade foi de ficar no fundo da rede até...a morte. Limpar meu espírito onde quer que fosse. Voltar noutra vida tentando corrigir tudo com todos que também ainda estariam por aqui. Recomeçar.
Me sinto sujo, impuro, castigado.
Já tinha ouvido falar,
Nunca tinha dados ouvidos.
A vida machuca mesmo,
Ela realmente veio.
Justiça divina,
Erro humano,
Chame do que quiser,
A merda tá feita,
Conviva com ela.
05
Pés enfeitados por sandálias com paetês coloridos. Pequena boca em forma de coração. Pele com maciez e cor de jambo. Seio e jeito de menina, alma de mulher. Linda em cada defeito e perfeição. Dona de si, decidida, que sabe dizer não.
Te amo, te amo.
Estúpido bufão sou eu, perdido, enfeitiçado por uma angústia vazia fantasiada de liberdade, que não passa de solidão.
Quero te ter plenamente, mas odeio imaginar te fazer sofrer.
Beijar sua testa, morder sua orelha, cheirar tua nuca, te ouvir dizer, pois mal sei falar. É contigo que quero estar, por toda minha vida.
06
Tentei dizer em versos...
... Não sou tão poeta assim.
Perguntei pra você se valeu a pena,
Mesmo sabendo que, talvez, não...
07
Preciso desenhar alguém morrendo,
Alguém numa situação podre,
Sem inspiração alguma.
Preciso desenhar uma pessoa que precise mais que tudo no mundo morrer de uma maneira terrivelmente angustiante.
Preciso exorcizar esse querer que me inunda a mente cadavérica, fria, distante, ausente...
08
Eu quero chorar, gritar a dor, enfeitar meu rosto com lágrimas e expressões tristes, cantar o medo, a angústia e a separação, mas cantar bem alto, avisar sem roubar atenção. Alto o suficiente apenas para escutar o aviso.
Soluçar, engasgar, apertar suas cartas contra o peito, sentindo ali o peso do mundo.
Eu não soube dar amor,
Você não aceitou minha incapacidade de demonstrar meu querer.
Nem tudo conseguiu fluir
Nem eu nem ti
Nem o cotidiano chegou a existir
Nem o palco da vida
Nem o caminho trilhado
Nem a nova oportunidade cansada pôde-se discutir.
Só eu sem ti,
Só eu e o por vir.
Só eu, treinado, vivido, mas despreparado e retardado,
Sem saber como sentir.
09
Inconsistente erro humano
Persistente desejo de segurança.
Desejo de segurança que faz perder,
Que faz testar o amor e faz cair.
10
Me permita agora cantar o amor,
Me permita cantar o desconhecido,
Me perder no gesto,
Me encontrar na dúvida.
Me permita ser o centro do mundo
Me permita errar sem culpa
Me jogar na vida
Me calar agora.
...
11
...
O ponto reticente irritava a calma.
...
O ponto reticente enganava a alma.
...
Reticências, eterna dúvida.
...
Bem-aventurado os absolutos.
Bem-aventurado os que sabem.
Não convém duvidar,
Mas se a dúvida há, é bom saber que o risco é inerente à vida.
Conviver na certeza da dúvida pode ser, talvez, a maior certeza da prova.
12
Tou me sentindo mau me sentindo mal me sentindo.
A vontaque que dá é de gozar no olho de qualquer uma, de esporrar a vida na cara, fazer sangrar o ânus. Quero fazer sangrar o ânus! Foder os peitos em espanhola, esconder meu pau entre os peitos.
Me sinto mau minto mal minto.
Quero abdicar de tudo isso. Quero encontar o amor que tive.
Como o criei, onde o perdi?
13
O cigarro entrou nos meus pumões.
Eu não engasguei.
A fumaça saiu pelo nariz.
Minha mão pegava na sua cintura fina.
Eu queria fudê-la, ao menos beijá-la.
Ordinária garota brincalhona dos infernos,
Queria que você explodisse!
14
A noite decepcionante cambaleava para um alvorecer pior.
Maldita vida de vontades inquietas.
Sexo matinal que não vai acontecer,
Afagos abafados enrolados no lençol, perdidos na vontade.
PUTA! VADIA!
Vida vazia preenchida de desejos alheios roubados de qualquer um.
Buceta castigada que não abraça a rola entorpecida por alguma angústia macabra que vem do coração.
Maldita noite desperdiçada comigo mesmo, sem sentido, sem pretexto, reflexo grotesco de um parque de horrores de uma alma desgarrada... Sem sabores.
15
Explode na minha virilha uma dor da alma castigada: crime sem vilão.
16
A gente falava coincidências demais
Unindo o tempo, gastando a gente, proveitosamente.
Sorriso meio calado, contido
Vivendo uma longa noite contigo.
Um, dois encontros apenas.
Procurando entender,
o que os beijos calavam.
Procurando entender,
o desejo crescente, crescente, subindo...
...Meu corpo caiu do alto,
bem fundo na densa relva do encantamento.
Perdido na minha certeza de um próximo passado,
De um futuro reconciliado,
Nem vi a roda girar,
Nem senti a sutileza da flor se abrindo,
Nem senti que sou de novo um novo perdido,
Pedindo apenas o mundo pra nós.
17
Sou uma maldita montanha-russa
Pequena, é verdade, mas cheia de curvas.
Repleta de angustia besta.
Repleta de dúvidas triviais, de soluços, de sussurros, de vontades inquietas.
Sou uma montanha-russa de frases ditas e não-ditas, do que foi afirmado e não se deveria.
Sou um “loop” ininterrupto que dá náuseas e ânsias tristes.
Sou uma pequena montanha-russa, sem direção, de sensações e sentimentos acolhidos ou reprimidos.
Sou um trilho vazio, às vezes repleto, carregando comigo apenas os mais fracos que eu...
18
Só quando gozei, percebi.
Foi só quando do clímax,
Percebi a merda toda.
...Essa merda toda!
Toda vez que não dá pra agüentar.
Toda vez que algo ou alguém,
Às vezes nós mesmos,
Não conseguimos parar,
Algo nos cerca o peito
Alguém nos submete a alma.
Foi só depois que gozei
Que o prazer ficou amargo
Como no fundo da língua...
Intenso dentro do corpo,
do consciente perdido,
querendo sem querer.
No fundo, amingua!
19
Será que está sendo infantil?
De que vala essa vida?
O que vale nessa vida?
Fazer o que realmente te importa te sustentará?
De quantas tentativas faz-se o amor?
De quantos “sins” constrói-se felicidade?
Quantos “nãos”, quantas ausências são necessárias?
Quando dizer sim, quando não, quando simplesmente gritar?
Aquele que escreve é apenas aquele atormentado por um sentimento ou sensação.
O que tu sente?
De onde vem tua péssima inspiração?
20
O brilho incesante do olho úmido recortado pela pálpebra cansada, enxergava na penumbra desfocada do pôr-do-sol a silhueta desenhada no laranja do céu.
O aceno de mão seguido do virar de costas confirma ao olho: o fim, revolto em lágrimas contidas, repetidas.
21
Até quando eu devo cair?
Até onde eu devo ir?
Porque eu sinto que aprendi,
Porque eu sinto a lição em mim.
Quero dizer que não estou pronto,
Mas quem está?
Peque esta trilha,
não acredite que sabe o caminho.
Porque você não sabe,
Não sabe, meu amor,
Ninguém sabe...
Desejo tanto que você tivesse
toda a razão do mundo,
Para que eu pudesse pedir rastejando,
Mas sinto que não é assim.
Quero viver toda a vida
Preciso dividí-la com alguém.
Porque ela só cabe em dois,
De dois em dois.
De dois em dois
Até escurecer,
Porque de nada vale o dia se não tivermos nosso “Boa noite”.
Mais que o dia-a-dia,
eu quero a noite para mim,
A noite toda para poder dividir.
Seu lugar ao lado do meu,
Seu lugar amargo ou doce,
Porque é seu lugar e a vida é assim.
Até onde nós chegamos,
Não quero passar de novo com ninguém,
Quero ir mais fundo do que o nosso fim.
22
Continuo eu mesmo: diferente a cada dia.
Diferente e igual, como o mar.
Como a noite e a sua brisa,
Como o bêbado de volta ao bar.
Continuo eu mesmo,
Só o que não muda é essa fraqueza que me prende os braços, que me cala a linguá, que me paralisa as pernas...
23
Quando acordei,o amargo já não era de todo mal.
Talvez eu tenha me encontrado ou perdido, finalmente.
Percebo que o mundo gira, mas não sinto o tempo passar.
Quando acordei, o amargo sou eu e me sinto bem.
Talvez eu tenha me encontrado na perdição.
Percebo que o mundo tem cores, mas todas elas são opacas, sem sabores.
Tenho medo de minha vida ser como ela é, uma obra rodrigueana.
Ao tempo que me perco numa liberdade solitária desacredito mais num romantismo parnasiano.
Não enxergo nem sinto mais os avisos líricos do simbolismo, me vejo frio como o carbono D’augusto dos anjos.
Minha poética é pouca para comparações, só sei que ela não tem mais a alegria que tem o cordel e seus bordões.
24
Essa semana teorizamos sobre a impermanência,
Essa ciência precisa na sua insegurança.
Concluímos que tudo passa, os coletivos passam, os indivíduos passam, as idéias passam...
Pra onde vai tudo isso?
Onde é que cabe essa merda toda que criamos, que somos?, que sonhos vão?, quais ficam um pouquinho mais?
Quem passam juntos, se é isso que importa na impermanência?
Quem passam juntos, diariamente na inconsistência?
25
A ocasião foi tão assim,
Tão decidida, tão certa do fim
Que não sobrou, na hora da partida,
Tempo ou querer suficiente,
Para um último beijo de despedida.
26
Você diz que conseguiu se libertar e que deseja o mesmo para mim. Eu não queria precisar acreditar que tudo aquilo para nós chegou ao fim.
Meu sentimento à pouco era de perpetuar, de manter a coragem e a luta. Mas pra quê lutar a derrota? Pelo romantismo de folhetim?
Quero minha vida de volta. Você acredita que conquistou a sua para si, com outra vida, com Outro caminho.
Vou lutar, mas não por uma derrota heróica.
Te dei de presente de despedida uma promessa de Tróia, uma porta que estaria aberta para o futuro.
Vou gritar como Mel Gibson em Coração Valente: uma morte pela liberdade, sem esperar nada, nem reviver nos mesmos ou em outros braços.
27
De repente, percebi que entrei na caça ao rato.
De repente não sei se sou o roedor ou o gato.
Serpenteando na espiral da vida, preparado para dar o bote.
Mergulho mais fundo no mundo da falta de certezas.
Perdi a inocência de acreditar e o romantismo barato do fundo da lata do meu corpo.
Acho que perdi até a amargura dos últimos dias.
Sem esperanças,
Sem expectativas.
Apenas um alvo no peito.
Que atire a próxima flecha
todas as pecadoras.
Azar de quem acertar...
28
Deus da Inspiração, uma última poesia, por favor!
Uma última tentativa de superar essa dor.
Uma boa inspiração que não me obrigue a sofrer na rima.
Um último angustiante lamento para entrar na vida, nas ondas...
Uma última poesia para exorcizar,
Uma última poesia para abandonar,
Para acreditar na próxima chance.
Uma última poesia que me permita não odiar, que me permita não adiar. Não adiar o cotidiano bom, de novo.
Uma iluminação que me encha, que me lance, que me rogue na experiência de que tudo valeu a pena.
Uma última poesia para todas as crianças bobas como eu, que precisam escrevê-la.
Uma última poesia para que alguém leia e acredite que após uma, virá outra cena...
Amém!
Por que nem tudo é poesia e nem todo texto presta, mas, pelo menos, tem algo a dizer...
01
Deus,
Pai, mãe.
Senhor,
Sei lá...
Alá!
Todos os nomes,
Todos os rostos,
A mesma alma.
A alma do criador,
Aquele que conversa com cada homem, animal, ser...
Aquele de várias faces,
De várias “fés”.
Quando falo, você escuta?
Quando escrevo, você lê?
Quando estou sozinho no banheiro,
Estou sozinho?
Quando o senhor chora?
Eu choro... Imagem e semelhança.
És tão tolo quanto nós?
Ou tem apenas cara de bobo?
02
A estrela brilhou forte
A lua crescente arrastou a chuva passageira,
Abriu caminhos para o céu.
O vento trazia a cura
O farfalhar das folhas acalmava a alma
A magia da noite estrelada
A todos nos envolvia.
Eu crescia dentro de mim.
Animal antigo, coroado com a sabedoria do espírito milenar em comunhão com Deus e com o passado.
03
Como tem coisas este mundo.
Cheio de mistérios invisíveis, de fatos corriqueiros e impossíveis.
Uma só verdade ramificando-se em várias mentiras.
Mentiras recheadas de fé e é só!
Só o que basta.
Completa.
Repleta onde está.
Fé em tudo e em todos.
04
Minha vontade foi de ficar no fundo da rede até...a morte. Limpar meu espírito onde quer que fosse. Voltar noutra vida tentando corrigir tudo com todos que também ainda estariam por aqui. Recomeçar.
Me sinto sujo, impuro, castigado.
Já tinha ouvido falar,
Nunca tinha dados ouvidos.
A vida machuca mesmo,
Ela realmente veio.
Justiça divina,
Erro humano,
Chame do que quiser,
A merda tá feita,
Conviva com ela.
05
Pés enfeitados por sandálias com paetês coloridos. Pequena boca em forma de coração. Pele com maciez e cor de jambo. Seio e jeito de menina, alma de mulher. Linda em cada defeito e perfeição. Dona de si, decidida, que sabe dizer não.
Te amo, te amo.
Estúpido bufão sou eu, perdido, enfeitiçado por uma angústia vazia fantasiada de liberdade, que não passa de solidão.
Quero te ter plenamente, mas odeio imaginar te fazer sofrer.
Beijar sua testa, morder sua orelha, cheirar tua nuca, te ouvir dizer, pois mal sei falar. É contigo que quero estar, por toda minha vida.
06
Tentei dizer em versos...
... Não sou tão poeta assim.
Perguntei pra você se valeu a pena,
Mesmo sabendo que, talvez, não...
07
Preciso desenhar alguém morrendo,
Alguém numa situação podre,
Sem inspiração alguma.
Preciso desenhar uma pessoa que precise mais que tudo no mundo morrer de uma maneira terrivelmente angustiante.
Preciso exorcizar esse querer que me inunda a mente cadavérica, fria, distante, ausente...
08
Eu quero chorar, gritar a dor, enfeitar meu rosto com lágrimas e expressões tristes, cantar o medo, a angústia e a separação, mas cantar bem alto, avisar sem roubar atenção. Alto o suficiente apenas para escutar o aviso.
Soluçar, engasgar, apertar suas cartas contra o peito, sentindo ali o peso do mundo.
Eu não soube dar amor,
Você não aceitou minha incapacidade de demonstrar meu querer.
Nem tudo conseguiu fluir
Nem eu nem ti
Nem o cotidiano chegou a existir
Nem o palco da vida
Nem o caminho trilhado
Nem a nova oportunidade cansada pôde-se discutir.
Só eu sem ti,
Só eu e o por vir.
Só eu, treinado, vivido, mas despreparado e retardado,
Sem saber como sentir.
09
Inconsistente erro humano
Persistente desejo de segurança.
Desejo de segurança que faz perder,
Que faz testar o amor e faz cair.
10
Me permita agora cantar o amor,
Me permita cantar o desconhecido,
Me perder no gesto,
Me encontrar na dúvida.
Me permita ser o centro do mundo
Me permita errar sem culpa
Me jogar na vida
Me calar agora.
...
11
...
O ponto reticente irritava a calma.
...
O ponto reticente enganava a alma.
...
Reticências, eterna dúvida.
...
Bem-aventurado os absolutos.
Bem-aventurado os que sabem.
Não convém duvidar,
Mas se a dúvida há, é bom saber que o risco é inerente à vida.
Conviver na certeza da dúvida pode ser, talvez, a maior certeza da prova.
12
Tou me sentindo mau me sentindo mal me sentindo.
A vontaque que dá é de gozar no olho de qualquer uma, de esporrar a vida na cara, fazer sangrar o ânus. Quero fazer sangrar o ânus! Foder os peitos em espanhola, esconder meu pau entre os peitos.
Me sinto mau minto mal minto.
Quero abdicar de tudo isso. Quero encontar o amor que tive.
Como o criei, onde o perdi?
13
O cigarro entrou nos meus pumões.
Eu não engasguei.
A fumaça saiu pelo nariz.
Minha mão pegava na sua cintura fina.
Eu queria fudê-la, ao menos beijá-la.
Ordinária garota brincalhona dos infernos,
Queria que você explodisse!
14
A noite decepcionante cambaleava para um alvorecer pior.
Maldita vida de vontades inquietas.
Sexo matinal que não vai acontecer,
Afagos abafados enrolados no lençol, perdidos na vontade.
PUTA! VADIA!
Vida vazia preenchida de desejos alheios roubados de qualquer um.
Buceta castigada que não abraça a rola entorpecida por alguma angústia macabra que vem do coração.
Maldita noite desperdiçada comigo mesmo, sem sentido, sem pretexto, reflexo grotesco de um parque de horrores de uma alma desgarrada... Sem sabores.
15
Explode na minha virilha uma dor da alma castigada: crime sem vilão.
16
A gente falava coincidências demais
Unindo o tempo, gastando a gente, proveitosamente.
Sorriso meio calado, contido
Vivendo uma longa noite contigo.
Um, dois encontros apenas.
Procurando entender,
o que os beijos calavam.
Procurando entender,
o desejo crescente, crescente, subindo...
...Meu corpo caiu do alto,
bem fundo na densa relva do encantamento.
Perdido na minha certeza de um próximo passado,
De um futuro reconciliado,
Nem vi a roda girar,
Nem senti a sutileza da flor se abrindo,
Nem senti que sou de novo um novo perdido,
Pedindo apenas o mundo pra nós.
17
Sou uma maldita montanha-russa
Pequena, é verdade, mas cheia de curvas.
Repleta de angustia besta.
Repleta de dúvidas triviais, de soluços, de sussurros, de vontades inquietas.
Sou uma montanha-russa de frases ditas e não-ditas, do que foi afirmado e não se deveria.
Sou um “loop” ininterrupto que dá náuseas e ânsias tristes.
Sou uma pequena montanha-russa, sem direção, de sensações e sentimentos acolhidos ou reprimidos.
Sou um trilho vazio, às vezes repleto, carregando comigo apenas os mais fracos que eu...
18
Só quando gozei, percebi.
Foi só quando do clímax,
Percebi a merda toda.
...Essa merda toda!
Toda vez que não dá pra agüentar.
Toda vez que algo ou alguém,
Às vezes nós mesmos,
Não conseguimos parar,
Algo nos cerca o peito
Alguém nos submete a alma.
Foi só depois que gozei
Que o prazer ficou amargo
Como no fundo da língua...
Intenso dentro do corpo,
do consciente perdido,
querendo sem querer.
No fundo, amingua!
19
Será que está sendo infantil?
De que vala essa vida?
O que vale nessa vida?
Fazer o que realmente te importa te sustentará?
De quantas tentativas faz-se o amor?
De quantos “sins” constrói-se felicidade?
Quantos “nãos”, quantas ausências são necessárias?
Quando dizer sim, quando não, quando simplesmente gritar?
Aquele que escreve é apenas aquele atormentado por um sentimento ou sensação.
O que tu sente?
De onde vem tua péssima inspiração?
20
O brilho incesante do olho úmido recortado pela pálpebra cansada, enxergava na penumbra desfocada do pôr-do-sol a silhueta desenhada no laranja do céu.
O aceno de mão seguido do virar de costas confirma ao olho: o fim, revolto em lágrimas contidas, repetidas.
21
Até quando eu devo cair?
Até onde eu devo ir?
Porque eu sinto que aprendi,
Porque eu sinto a lição em mim.
Quero dizer que não estou pronto,
Mas quem está?
Peque esta trilha,
não acredite que sabe o caminho.
Porque você não sabe,
Não sabe, meu amor,
Ninguém sabe...
Desejo tanto que você tivesse
toda a razão do mundo,
Para que eu pudesse pedir rastejando,
Mas sinto que não é assim.
Quero viver toda a vida
Preciso dividí-la com alguém.
Porque ela só cabe em dois,
De dois em dois.
De dois em dois
Até escurecer,
Porque de nada vale o dia se não tivermos nosso “Boa noite”.
Mais que o dia-a-dia,
eu quero a noite para mim,
A noite toda para poder dividir.
Seu lugar ao lado do meu,
Seu lugar amargo ou doce,
Porque é seu lugar e a vida é assim.
Até onde nós chegamos,
Não quero passar de novo com ninguém,
Quero ir mais fundo do que o nosso fim.
22
Continuo eu mesmo: diferente a cada dia.
Diferente e igual, como o mar.
Como a noite e a sua brisa,
Como o bêbado de volta ao bar.
Continuo eu mesmo,
Só o que não muda é essa fraqueza que me prende os braços, que me cala a linguá, que me paralisa as pernas...
23
Quando acordei,o amargo já não era de todo mal.
Talvez eu tenha me encontrado ou perdido, finalmente.
Percebo que o mundo gira, mas não sinto o tempo passar.
Quando acordei, o amargo sou eu e me sinto bem.
Talvez eu tenha me encontrado na perdição.
Percebo que o mundo tem cores, mas todas elas são opacas, sem sabores.
Tenho medo de minha vida ser como ela é, uma obra rodrigueana.
Ao tempo que me perco numa liberdade solitária desacredito mais num romantismo parnasiano.
Não enxergo nem sinto mais os avisos líricos do simbolismo, me vejo frio como o carbono D’augusto dos anjos.
Minha poética é pouca para comparações, só sei que ela não tem mais a alegria que tem o cordel e seus bordões.
24
Essa semana teorizamos sobre a impermanência,
Essa ciência precisa na sua insegurança.
Concluímos que tudo passa, os coletivos passam, os indivíduos passam, as idéias passam...
Pra onde vai tudo isso?
Onde é que cabe essa merda toda que criamos, que somos?, que sonhos vão?, quais ficam um pouquinho mais?
Quem passam juntos, se é isso que importa na impermanência?
Quem passam juntos, diariamente na inconsistência?
25
A ocasião foi tão assim,
Tão decidida, tão certa do fim
Que não sobrou, na hora da partida,
Tempo ou querer suficiente,
Para um último beijo de despedida.
26
Você diz que conseguiu se libertar e que deseja o mesmo para mim. Eu não queria precisar acreditar que tudo aquilo para nós chegou ao fim.
Meu sentimento à pouco era de perpetuar, de manter a coragem e a luta. Mas pra quê lutar a derrota? Pelo romantismo de folhetim?
Quero minha vida de volta. Você acredita que conquistou a sua para si, com outra vida, com Outro caminho.
Vou lutar, mas não por uma derrota heróica.
Te dei de presente de despedida uma promessa de Tróia, uma porta que estaria aberta para o futuro.
Vou gritar como Mel Gibson em Coração Valente: uma morte pela liberdade, sem esperar nada, nem reviver nos mesmos ou em outros braços.
27
De repente, percebi que entrei na caça ao rato.
De repente não sei se sou o roedor ou o gato.
Serpenteando na espiral da vida, preparado para dar o bote.
Mergulho mais fundo no mundo da falta de certezas.
Perdi a inocência de acreditar e o romantismo barato do fundo da lata do meu corpo.
Acho que perdi até a amargura dos últimos dias.
Sem esperanças,
Sem expectativas.
Apenas um alvo no peito.
Que atire a próxima flecha
todas as pecadoras.
Azar de quem acertar...
28
Deus da Inspiração, uma última poesia, por favor!
Uma última tentativa de superar essa dor.
Uma boa inspiração que não me obrigue a sofrer na rima.
Um último angustiante lamento para entrar na vida, nas ondas...
Uma última poesia para exorcizar,
Uma última poesia para abandonar,
Para acreditar na próxima chance.
Uma última poesia que me permita não odiar, que me permita não adiar. Não adiar o cotidiano bom, de novo.
Uma iluminação que me encha, que me lance, que me rogue na experiência de que tudo valeu a pena.
Uma última poesia para todas as crianças bobas como eu, que precisam escrevê-la.
Uma última poesia para que alguém leia e acredite que após uma, virá outra cena...
Amém!
Por Dentro da Máscara de Ferro Parte 3
PARTE III
POR DENTRO DA MÁSCARA-DE-FERRO
Não posso explicar o que estou fazendo sem parecer ridículo. Me encontrei meio perdido, sem saber o que fazer. Só o que vinha à minha cabeça era raiva e fornicação. Raiva e fornicação. Às vezes, uma coisa impedia a outra, mas sentia que algo estava muito errado.
De repente, encontrei a fraqueza dentro de mim mesmo e por um bom tempo, eu gostei. Depois, percebi, realmente, que estava tudo muito errado, mas não consegui mudar. A noite escura me envolvia e eu corri de ré, olhando pra trás, sem sonhos...
Não quero nem preciso explicar essa merda toda. Só quero acertar a cabeça de alguém e encontrar uma desculpa bonita que justifique isso como heroísmo. Afinal de contas, eu sou um herói, ou preciso ser. Herói e vilão de mim mesmo. Procuro uma motivação aqui dentro e só enxergo egoísmo: preciso me salvar...
Não tenho grandes talentos na vida, mas sei que preciso aprender melhor a distinguir o que é certo do errado, aprender a superar conflitos e me sobressair como um vencedor na luta que todos nós travamos. Se existe uma moral nisto tudo, talvez seja apenas isso, e esta noite vou começar a aprender melhor sobre superar a própria vida...
Já estou acostumado a usar a máscara. Ela cai bem em meu rosto, principalmente depois de alguns retoques. O visor não é nenhum quartzo de rubi, mas também não atrapalha minha visão. Também respiro sem problema. Não sou nenhum Darth Vader. Ela serve para proteger e esconder meu rosto. É o suficiente.
Nunca havia parado para pensar como eu tenho coisas aqui que podem me ajudar. Em poucos minutos eu monto um cinto de utilidades com um pequeno maçarico, umas chaves de boca, de roda, outras inglesas, um martelo, pregos e polcas. Ao lado da Nancy estava, inerte, um cano. A arma do crime. Ele caiu muito bem em minhas mãos. Posso carregar tudo isso comigo, e ainda tenho a Kombi. Nela, vai o mais pesado: o antigo 38 do meu velho pai. Para as grandes emergências.
Lembro das longas discussões com Joaquim, tentando me provar que a grande maioria dos super-heróis são loucos. Penso no Rorshach. Penso no próprio Batman. Será que temos de ser loucos para sermos heróis? Será que todos não usamos máscaras? Será que todos não somos loucos? Será que todos não podemos ser heróis? Será que quando ponho esta máscara agora não sou apenas mais verdadeiro que os outros que fingem que estar tudo bem?
Começa a chover lá fora. Já me disseram que a chuva simboliza renascimento. Há dias ameaça chover. Porque esperaram até esta noite?
Abro a porta da garagem. Acendo os faróis do carro. Alguém parece me olhar do outro lado da rua. Sorte dele. Isto é inédito. A origem. A primeira aparição do super-herói. Uma edição raríssima.
Deixo o carro numa esquina próxima. Maldita Theresina com seus prédios sem escadas de incêndio. Acho que não fomos criados mesmo para a cultura dos super-heróis. Para chegar até o teto tenho de subir pelas escadas nos corredores do prédio. Nada heróico. Mal começo.
Mesmo com a máscara eu podia sentir a noite fria e molhada. A lua, desfocada pelas nuvens, ainda conseguia brilhar forte no céu. Eu podia ver meu perfil recortado sob a luz azul da lua e a água da chuva como num desenho de Frank Miller ou Mike Mignola. Eu podia sentir a energia das mãos de um deus criador em cima de mim.
Lembrei de Grant Morrison. Lembrei do Coitote. Eu sou o Coiote e esta noite quero acertar umas contas com a vida. Entender um pouquinho mais a eterna caça violenta que somos obrigados a viver. Entender os caprichos de um Deus.
Como deveria funcionar? Ficar de tocaia, observando, no ponto mais alto do lugar mais perigoso da cidade? Acho que isso era suficiente... Era assim que realmente funcionava. Eu só precisava contar agora com a natureza humana.
Duas horas depois eu descubro o quanto isso é chato. Mais uma hora e meia de espera e eu calculo que só pegaria uma gripe, até que o sereno da madrugada toma outras proporções e anuncia que tudo está apenas começando.
O coração soca o peito com força quando vejo, do outro lado da rua, no prédio residencial mais baixo, as luzes de uma briga. Droga! Marido e mulher, de novo. Mas a situação estava bem pior. Era uma covardia. Muita agressão física desnecessária. Lembrei dos filmes policiais onde os vizinhos ligam denunciando essas situações e algum oficial barrigudo e bigodudo entra na sua viatura reclamando, enquanto derrama seu café e enfia goela abaixo o donnut’s de morango ou chocolate. Afinal, era apenas uma crise domiciliar.
Penso em descer as escadas, atravessar a rua, subir as escadas do prédio vizinho e bater na porta do apartamento, mas acho que não seria muito heróico. Pena que não há clarabóias por aqui, então conto as janelas para não errar.
Quando olho para o abismo entre os prédios, tenho a impressão de que o lixão lá no fundo está olhando para dentro de mim.
Era esse o momento: o início de uma lenda ou o fim, pouco depois de começar...
Antes de correr para saltar eu lembrei do Neo no primeiro Matrix e percebi o quanto minha cabeça está cheia de cultura pop enlatada e, por um instante, pude me orgulhar disso sem me sentir culpado por alguma coisa existencial. Quando começo a correr lembro que o Neo caiu de cara no chão quando tentou algo parecido pela primeira vez. Oh-ou! Nada bom...
Eu salto.
Nada me prende ou segura no ar.
Magia.
O vidro estilhaça ao contato com minha bota. Agradeço a carga dramática pela janela ter vidro. Entro na sala do apartamento. O impulso da queda me faz rolar.
Paro como uma aranha. Faço uma pausa teatral antes de levantar calmamente a máscara.
Cacos de vidro escorrem do meu ombro. A cena é impressionante... Pena, porque só agora percebo, olhando para a garotinha à minha frente, que errei a merda da janela.
“Aaaaaah!”.
A garotinha grita. Eu não sabia se tapava sua boca com as mãos ou se saia correndo. Como não apareceu ninguém, achei melhor fingir que não era comigo. “Desculpe, desculpe...”, e fui saindo pela porta. “Aaaaaah!”, ela continuava numa única e assustadora nota interminável.
Erro de cálculo. Tudo bem. Azar de principiante. Uma janela acima ou à baixo. Tento na de cima. Ao subir os vinte e cinco lances da escada com um único salto, pude ouvir o barulho das mobílias sendo destruídas por trás da porta à minha frente. Eles nem se importavam com o grito da criança histérica.
Ok! Segunda chance de uma grande entrada. Pulo contra a porta. O ombro contra a madeira. “BUMP!” Meu corpo contra o chão do corredor. Tenho de me segurar no corrimão para não cair escada abaixo... Tudo isso só parece retardar o fim do terrível sofrimento da vítima dentro do apartamento.
─ O que você tá fazendo nesta porta?, gritou uma voz rouca de mulher.
─ Mas querida, você não ouviu baterem?, respondeu a voz do baixinho.
─ Você tá querendo escapar da conversa, seu vagabundo?, uma palma enorme atinge o ouvido dele, e eu até pude ouvir um zumbido no ar. A criaturinha minúscula tropeçou nos próprios pés e cambaleou pelo corredor, tentando equilibrar-se com os braços estendidos como uma vara de equilibrista. ─ Deve ser um desses seus amigos vagabundos que aparecem por aqui pra ti salvar o pescoço. Olhe, mas você se cuide, neguinho, se cuide!
“BAM!”. Fecha a porta.
─ Cara, tu tá lascado, disse.
─ Nah! Bobagem...
O carinha levava na esportiva. Com uma mão coçando o ouvido e a outra tentando subir as calças derreadas abaixo dos quadris, ele até esboçava um sorriso.
─ De qualquer forma, muito obrigado, agradeceu.
─ Não há de quê...
─ A propósito, por que tu tá com essa máscara de solda na cabeça?
─ Pra proteger meu rosto e minha identidade.
─ Pra quê?
─ Super-herói...
─ Ãh... Fantasia de carnaval?
─ Não! Super-herói, mesmo...
Só agora noto que o grito hiper-sônico da garotinha parou... A tempo apenas de perceber o que aconteceria depois.
─ Foi isto aqui, filhinha?
─ Fôôôi, pai!
Dengosa maldita.
Engrenagens de carne com cinco pontos de pressão fecharam sobre minha gola. Queria saber ao certo quantos malditos degraus haviam naquela escada. Minhas costas ainda doem. Não sabia mais onde começavam minhas pernas. Ele era um verdadeiro troll, um golen, um gárgula, um orc, uma criatura tolkieniana... E estava só de toalha, ensaboado. Quando saltou lá de cima, apontando seu joelho para meu estômago, eu pude comprovar que ele estava, realmente, só de toalha.
Meu umbigo nunca mais foi o mesmo. Instantaneamente, o ácido do meu estômago, misturado ao cuscuz, espirrou pela minha garganta num jato forte, mas não encontrou escape fácil, tendo de escorrer pela máscara.
“Ooouuurg...”, implorei.
Caminhar até o carro foi a parte mais difícil. Havia sido minha primeira noite como super-herói e eu sabia, acreditava que nem só em vitórias vive-se o cotidiano, por isso voltei feliz até o carro, pensando nos pontos positivos que conseguia enxergar. Primeiro, impedi aquela mulher infernal de continuar abusando de seu pacato marido. Segundo, havia finalmente começado. Eu era o Máscara-de-Ferro.
Na manhã seguinte:
─ Tu tá um caco! Que houve contigo, cara?
─ Nada, não..., respondi.
Faz parte do dia-a-dia dos mascarados esconder dos amigos sua identidade secreta.
─ Olha aqui, Joaquim...
─ O quê?
─ O que você está vendo?
─ Tu? Tua máscara de solda?, perguntou sem entender.
─ Eu sou o Máscara-de-Ferro...
Falei com um sussurro, como Michael Keaton no primeiro Batman de Tim Burton. Não pude manter o segredo.
─ Tu quê?
─ Sou o Máscara-de-Ferro. Máscara-de-Ferro! Não tá vendo?
─ Tou? É...?
Era difícil, mas eu esperava que o Joaquim entendesse. Ele foi forjado no mesmo fogo que eu, apesar ter se desviado do caminho e começado a apreciar quadrinhos afeminados, sentimentalistas e chorões, eu sabia que podia contar com o apoio dele.
─ Eu sou um super-herói.
─ Como é que é?
─ Ontem a noite eu sai. Estava chovendo forte. Eu saltei de um prédio para outro. Entrei no apartamento de alguém pela janela e impedi que uma psicopata assassinasse um pobre coitado.
Propositalmente, omiti algumas coisas e exagerei outras.
─ Você tá brincando?
─ Nunca falei tão sério em minha vida.
─ Você se mascarou e saiu por aí, como um vigilante?
─ Isso.
─ Como assim? Com qual sentido?
─ Mas eu já te falei. Eu gosto de ajudar...
─ Hã?
─ E-eu gosto de ajudar as pessoas. Me sinto mais útil que aqui, nesta oficina, onde só ganho dinheiro. Estou fazendo algo realmente prazeroso...
─ Mas isso é loucura. É ficção! Quantas pessoas você conhece que fazem isso?
─ Dezenas, centenas de super-heróis...
─ Pessoas, Cleiton. Estou falando de pessoas como a gente... Não gente de papel, bidimensional, sem profundidade.
─ Que decepção!
─ Como assim?
─ Pensei que você entenderia...
─ Mas não tem sentido.
─ Quer saber, não há o que entender. Escolhi fazer isso como alguém escolhe ajudar um cego a atravessar a rua, ou uma dondoca rica que começa a fazer sopões aos pobres, tentando achar um lugar no céu... Eu escolhi.
─ Tu quer um lugar no céu? Só isso?
Preferi não responder.
─ Tu não tem grandes poderes nem responsabilidades, teus pais não foram assassinados. Tu só perdeu a namorada. Coisa de adolescente. Isso acontece e passa. Simplesmente, não tem sentido. Sem lógica. Mal escrito.
─ Alguma vez, da altura desses teus vinte e poucos anos, tu já sentiu alguma maldita certeza de que queria fazer alguma coisa na vida e que só o que te impedia era tu mesmo? Alguma vez tu sentiu que poderia viver com isso por que a vida te dava todas as possibilidades pra isso acontecer? Sair por aí, como se alguma coisa tivesse te escolhido e que você não se sente nem um pouco usado em si dividir com isso, como se tivesse nascido e sido preparado para isso? Cúmplice.
─ PORRA! TU É UM MECÂNICO!
─ QUE MERDA! Qual o sentido em fazer uma viagem pelo Piauí num carro vermelho? Me diz! Qual o sentido? Sentir o vento no cabelo? Se furar o pneu, remendar? E depois, voltar pra casa? Qual o sentido nessa merda toda? Em passar os dias consertando os carros dos outros?
Acho que pisei em ferida aberta. Ele olhou para o chão. Riscou um círculo na areia com a ponta do pé. É estranho. Todo esse silêncio depois duma gritaria... Então, ele perguntou:
─ E essa Kombi? Vai precisar de uns reparos se quiser se comparar ao Batmovel...
Era tudo que eu precisava ouvir.
Os dias em Theresina são tão quentes, que quando amanhecem como os dias de janeiro, úmidos e nublados, com cheiro de molhado, depois de uma madrugada chorona, quando o céu amanhece cinza e não azul, quando o sol surge opaco e não inclemente, raras vezes no ano, nós agradecemos. Hoje foi um dia assim. Onze da manhã parecia seis e meia. Eu estava soldando uma placa de aço na lateral da Kombi. Um reforço para o serviço noturno. Uma Kombi blindada.
Era janeiro. Normalmente é período de férias. Mas eram os últimos dias. Período especial, sei lá, por isso não me surpreendi tanto quando vi estudantes descendo do ônibus. Eles foram migrando, devagar. Eu sabia que devia continuar olhando. Ela não estava parada, mas caminhava bem devagar, distanciando-se lentamente dos outros, como se estivesse boiando na correnteza.
Eu estava com a máscara. Ela, do outro lado da rua. Olhando e fingindo não olhar. Não olhando, querendo encarar, mas eu estava com a máscara e, mesmo com ela, eu podia ver bem seu rosto. Depois de sete anos, eu via seu rosto limpo e não a enxergava. Depois de sete anos ela era uma nova estranha. Eu via uma máscara. Vi que não a conheci profundamente e, mesmo sabendo o sabor do seu sorvete preferido, como ela gostava de se vestir quando ia arrumar a casa ou cozinhar, mesmo sabendo como ficava seu rosto quando ela sorria ou quando estava zangada, mesmo sabendo que o brilho dos seus olhos já foram intensos por mim e como a fazia infeliz por não saber acompanhar a dança da sua música, mesmo sabendo o gosto de cada centímetro de seu corpo, até como ficavam seus dedos enrolados no lençol e sua boca úmida quando ia dormir, eu sabia que não a conhecia e que nunca a conheceria profundamente o suficiente para que esta impressão da máscara em seu rosto sumisse. Eu olho para os outros ao seu redor, penso no Joaquim, nos meus velhos pais, em mim mesmo, e sinto a mesma coisa.
Mesmo com a máscara, ela sabia que era eu, mas não podia ver meu rosto. Não poderia ser enganada por ele, pelo meu rosto. Ele era de ferro. Ela não fazia a menor idéia de como eu estava por dentro, por dentro da máscara de ferro.
Era a primeira vez que a via desde uns três ou quatro meses. Um sentimento forte apossou-se de mim. Consumiu-me. Devorou-me. Eu levantei. Deixei a solda de oxigênio no chão. Ela estava do outro lado da rua. Pensei em tudo pelo que havia passado nos últimos seis meses. Levantei a mão. Acenei.
─ Feliz ano novo! Muito boa sorte.
Ela não fazia a menor idéia de como eu estava por dentro, por dentro da máscara de ferro, mas agora ela podia imaginar que eu estava sorrindo, porque eu estava. Mas ela não via meu rosto. Não via as curvas do meu rosto desejando, com sinceridade, que ela fosse feliz. Nunca vai conseguir ver por trás da máscara que eu agora só tenho a esperança que todo o tempo que passamos juntos funcione como uma experiência incrível da jornada de nossas vidas e que, pensar nisso, dessa forma, faz tudo valer a pena.
Ela sorriu.
FIM
POR DENTRO DA MÁSCARA-DE-FERRO
Não posso explicar o que estou fazendo sem parecer ridículo. Me encontrei meio perdido, sem saber o que fazer. Só o que vinha à minha cabeça era raiva e fornicação. Raiva e fornicação. Às vezes, uma coisa impedia a outra, mas sentia que algo estava muito errado.
De repente, encontrei a fraqueza dentro de mim mesmo e por um bom tempo, eu gostei. Depois, percebi, realmente, que estava tudo muito errado, mas não consegui mudar. A noite escura me envolvia e eu corri de ré, olhando pra trás, sem sonhos...
Não quero nem preciso explicar essa merda toda. Só quero acertar a cabeça de alguém e encontrar uma desculpa bonita que justifique isso como heroísmo. Afinal de contas, eu sou um herói, ou preciso ser. Herói e vilão de mim mesmo. Procuro uma motivação aqui dentro e só enxergo egoísmo: preciso me salvar...
Não tenho grandes talentos na vida, mas sei que preciso aprender melhor a distinguir o que é certo do errado, aprender a superar conflitos e me sobressair como um vencedor na luta que todos nós travamos. Se existe uma moral nisto tudo, talvez seja apenas isso, e esta noite vou começar a aprender melhor sobre superar a própria vida...
Já estou acostumado a usar a máscara. Ela cai bem em meu rosto, principalmente depois de alguns retoques. O visor não é nenhum quartzo de rubi, mas também não atrapalha minha visão. Também respiro sem problema. Não sou nenhum Darth Vader. Ela serve para proteger e esconder meu rosto. É o suficiente.
Nunca havia parado para pensar como eu tenho coisas aqui que podem me ajudar. Em poucos minutos eu monto um cinto de utilidades com um pequeno maçarico, umas chaves de boca, de roda, outras inglesas, um martelo, pregos e polcas. Ao lado da Nancy estava, inerte, um cano. A arma do crime. Ele caiu muito bem em minhas mãos. Posso carregar tudo isso comigo, e ainda tenho a Kombi. Nela, vai o mais pesado: o antigo 38 do meu velho pai. Para as grandes emergências.
Lembro das longas discussões com Joaquim, tentando me provar que a grande maioria dos super-heróis são loucos. Penso no Rorshach. Penso no próprio Batman. Será que temos de ser loucos para sermos heróis? Será que todos não usamos máscaras? Será que todos não somos loucos? Será que todos não podemos ser heróis? Será que quando ponho esta máscara agora não sou apenas mais verdadeiro que os outros que fingem que estar tudo bem?
Começa a chover lá fora. Já me disseram que a chuva simboliza renascimento. Há dias ameaça chover. Porque esperaram até esta noite?
Abro a porta da garagem. Acendo os faróis do carro. Alguém parece me olhar do outro lado da rua. Sorte dele. Isto é inédito. A origem. A primeira aparição do super-herói. Uma edição raríssima.
Deixo o carro numa esquina próxima. Maldita Theresina com seus prédios sem escadas de incêndio. Acho que não fomos criados mesmo para a cultura dos super-heróis. Para chegar até o teto tenho de subir pelas escadas nos corredores do prédio. Nada heróico. Mal começo.
Mesmo com a máscara eu podia sentir a noite fria e molhada. A lua, desfocada pelas nuvens, ainda conseguia brilhar forte no céu. Eu podia ver meu perfil recortado sob a luz azul da lua e a água da chuva como num desenho de Frank Miller ou Mike Mignola. Eu podia sentir a energia das mãos de um deus criador em cima de mim.
Lembrei de Grant Morrison. Lembrei do Coitote. Eu sou o Coiote e esta noite quero acertar umas contas com a vida. Entender um pouquinho mais a eterna caça violenta que somos obrigados a viver. Entender os caprichos de um Deus.
Como deveria funcionar? Ficar de tocaia, observando, no ponto mais alto do lugar mais perigoso da cidade? Acho que isso era suficiente... Era assim que realmente funcionava. Eu só precisava contar agora com a natureza humana.
Duas horas depois eu descubro o quanto isso é chato. Mais uma hora e meia de espera e eu calculo que só pegaria uma gripe, até que o sereno da madrugada toma outras proporções e anuncia que tudo está apenas começando.
O coração soca o peito com força quando vejo, do outro lado da rua, no prédio residencial mais baixo, as luzes de uma briga. Droga! Marido e mulher, de novo. Mas a situação estava bem pior. Era uma covardia. Muita agressão física desnecessária. Lembrei dos filmes policiais onde os vizinhos ligam denunciando essas situações e algum oficial barrigudo e bigodudo entra na sua viatura reclamando, enquanto derrama seu café e enfia goela abaixo o donnut’s de morango ou chocolate. Afinal, era apenas uma crise domiciliar.
Penso em descer as escadas, atravessar a rua, subir as escadas do prédio vizinho e bater na porta do apartamento, mas acho que não seria muito heróico. Pena que não há clarabóias por aqui, então conto as janelas para não errar.
Quando olho para o abismo entre os prédios, tenho a impressão de que o lixão lá no fundo está olhando para dentro de mim.
Era esse o momento: o início de uma lenda ou o fim, pouco depois de começar...
Antes de correr para saltar eu lembrei do Neo no primeiro Matrix e percebi o quanto minha cabeça está cheia de cultura pop enlatada e, por um instante, pude me orgulhar disso sem me sentir culpado por alguma coisa existencial. Quando começo a correr lembro que o Neo caiu de cara no chão quando tentou algo parecido pela primeira vez. Oh-ou! Nada bom...
Eu salto.
Nada me prende ou segura no ar.
Magia.
O vidro estilhaça ao contato com minha bota. Agradeço a carga dramática pela janela ter vidro. Entro na sala do apartamento. O impulso da queda me faz rolar.
Paro como uma aranha. Faço uma pausa teatral antes de levantar calmamente a máscara.
Cacos de vidro escorrem do meu ombro. A cena é impressionante... Pena, porque só agora percebo, olhando para a garotinha à minha frente, que errei a merda da janela.
“Aaaaaah!”.
A garotinha grita. Eu não sabia se tapava sua boca com as mãos ou se saia correndo. Como não apareceu ninguém, achei melhor fingir que não era comigo. “Desculpe, desculpe...”, e fui saindo pela porta. “Aaaaaah!”, ela continuava numa única e assustadora nota interminável.
Erro de cálculo. Tudo bem. Azar de principiante. Uma janela acima ou à baixo. Tento na de cima. Ao subir os vinte e cinco lances da escada com um único salto, pude ouvir o barulho das mobílias sendo destruídas por trás da porta à minha frente. Eles nem se importavam com o grito da criança histérica.
Ok! Segunda chance de uma grande entrada. Pulo contra a porta. O ombro contra a madeira. “BUMP!” Meu corpo contra o chão do corredor. Tenho de me segurar no corrimão para não cair escada abaixo... Tudo isso só parece retardar o fim do terrível sofrimento da vítima dentro do apartamento.
─ O que você tá fazendo nesta porta?, gritou uma voz rouca de mulher.
─ Mas querida, você não ouviu baterem?, respondeu a voz do baixinho.
─ Você tá querendo escapar da conversa, seu vagabundo?, uma palma enorme atinge o ouvido dele, e eu até pude ouvir um zumbido no ar. A criaturinha minúscula tropeçou nos próprios pés e cambaleou pelo corredor, tentando equilibrar-se com os braços estendidos como uma vara de equilibrista. ─ Deve ser um desses seus amigos vagabundos que aparecem por aqui pra ti salvar o pescoço. Olhe, mas você se cuide, neguinho, se cuide!
“BAM!”. Fecha a porta.
─ Cara, tu tá lascado, disse.
─ Nah! Bobagem...
O carinha levava na esportiva. Com uma mão coçando o ouvido e a outra tentando subir as calças derreadas abaixo dos quadris, ele até esboçava um sorriso.
─ De qualquer forma, muito obrigado, agradeceu.
─ Não há de quê...
─ A propósito, por que tu tá com essa máscara de solda na cabeça?
─ Pra proteger meu rosto e minha identidade.
─ Pra quê?
─ Super-herói...
─ Ãh... Fantasia de carnaval?
─ Não! Super-herói, mesmo...
Só agora noto que o grito hiper-sônico da garotinha parou... A tempo apenas de perceber o que aconteceria depois.
─ Foi isto aqui, filhinha?
─ Fôôôi, pai!
Dengosa maldita.
Engrenagens de carne com cinco pontos de pressão fecharam sobre minha gola. Queria saber ao certo quantos malditos degraus haviam naquela escada. Minhas costas ainda doem. Não sabia mais onde começavam minhas pernas. Ele era um verdadeiro troll, um golen, um gárgula, um orc, uma criatura tolkieniana... E estava só de toalha, ensaboado. Quando saltou lá de cima, apontando seu joelho para meu estômago, eu pude comprovar que ele estava, realmente, só de toalha.
Meu umbigo nunca mais foi o mesmo. Instantaneamente, o ácido do meu estômago, misturado ao cuscuz, espirrou pela minha garganta num jato forte, mas não encontrou escape fácil, tendo de escorrer pela máscara.
“Ooouuurg...”, implorei.
Caminhar até o carro foi a parte mais difícil. Havia sido minha primeira noite como super-herói e eu sabia, acreditava que nem só em vitórias vive-se o cotidiano, por isso voltei feliz até o carro, pensando nos pontos positivos que conseguia enxergar. Primeiro, impedi aquela mulher infernal de continuar abusando de seu pacato marido. Segundo, havia finalmente começado. Eu era o Máscara-de-Ferro.
Na manhã seguinte:
─ Tu tá um caco! Que houve contigo, cara?
─ Nada, não..., respondi.
Faz parte do dia-a-dia dos mascarados esconder dos amigos sua identidade secreta.
─ Olha aqui, Joaquim...
─ O quê?
─ O que você está vendo?
─ Tu? Tua máscara de solda?, perguntou sem entender.
─ Eu sou o Máscara-de-Ferro...
Falei com um sussurro, como Michael Keaton no primeiro Batman de Tim Burton. Não pude manter o segredo.
─ Tu quê?
─ Sou o Máscara-de-Ferro. Máscara-de-Ferro! Não tá vendo?
─ Tou? É...?
Era difícil, mas eu esperava que o Joaquim entendesse. Ele foi forjado no mesmo fogo que eu, apesar ter se desviado do caminho e começado a apreciar quadrinhos afeminados, sentimentalistas e chorões, eu sabia que podia contar com o apoio dele.
─ Eu sou um super-herói.
─ Como é que é?
─ Ontem a noite eu sai. Estava chovendo forte. Eu saltei de um prédio para outro. Entrei no apartamento de alguém pela janela e impedi que uma psicopata assassinasse um pobre coitado.
Propositalmente, omiti algumas coisas e exagerei outras.
─ Você tá brincando?
─ Nunca falei tão sério em minha vida.
─ Você se mascarou e saiu por aí, como um vigilante?
─ Isso.
─ Como assim? Com qual sentido?
─ Mas eu já te falei. Eu gosto de ajudar...
─ Hã?
─ E-eu gosto de ajudar as pessoas. Me sinto mais útil que aqui, nesta oficina, onde só ganho dinheiro. Estou fazendo algo realmente prazeroso...
─ Mas isso é loucura. É ficção! Quantas pessoas você conhece que fazem isso?
─ Dezenas, centenas de super-heróis...
─ Pessoas, Cleiton. Estou falando de pessoas como a gente... Não gente de papel, bidimensional, sem profundidade.
─ Que decepção!
─ Como assim?
─ Pensei que você entenderia...
─ Mas não tem sentido.
─ Quer saber, não há o que entender. Escolhi fazer isso como alguém escolhe ajudar um cego a atravessar a rua, ou uma dondoca rica que começa a fazer sopões aos pobres, tentando achar um lugar no céu... Eu escolhi.
─ Tu quer um lugar no céu? Só isso?
Preferi não responder.
─ Tu não tem grandes poderes nem responsabilidades, teus pais não foram assassinados. Tu só perdeu a namorada. Coisa de adolescente. Isso acontece e passa. Simplesmente, não tem sentido. Sem lógica. Mal escrito.
─ Alguma vez, da altura desses teus vinte e poucos anos, tu já sentiu alguma maldita certeza de que queria fazer alguma coisa na vida e que só o que te impedia era tu mesmo? Alguma vez tu sentiu que poderia viver com isso por que a vida te dava todas as possibilidades pra isso acontecer? Sair por aí, como se alguma coisa tivesse te escolhido e que você não se sente nem um pouco usado em si dividir com isso, como se tivesse nascido e sido preparado para isso? Cúmplice.
─ PORRA! TU É UM MECÂNICO!
─ QUE MERDA! Qual o sentido em fazer uma viagem pelo Piauí num carro vermelho? Me diz! Qual o sentido? Sentir o vento no cabelo? Se furar o pneu, remendar? E depois, voltar pra casa? Qual o sentido nessa merda toda? Em passar os dias consertando os carros dos outros?
Acho que pisei em ferida aberta. Ele olhou para o chão. Riscou um círculo na areia com a ponta do pé. É estranho. Todo esse silêncio depois duma gritaria... Então, ele perguntou:
─ E essa Kombi? Vai precisar de uns reparos se quiser se comparar ao Batmovel...
Era tudo que eu precisava ouvir.
Os dias em Theresina são tão quentes, que quando amanhecem como os dias de janeiro, úmidos e nublados, com cheiro de molhado, depois de uma madrugada chorona, quando o céu amanhece cinza e não azul, quando o sol surge opaco e não inclemente, raras vezes no ano, nós agradecemos. Hoje foi um dia assim. Onze da manhã parecia seis e meia. Eu estava soldando uma placa de aço na lateral da Kombi. Um reforço para o serviço noturno. Uma Kombi blindada.
Era janeiro. Normalmente é período de férias. Mas eram os últimos dias. Período especial, sei lá, por isso não me surpreendi tanto quando vi estudantes descendo do ônibus. Eles foram migrando, devagar. Eu sabia que devia continuar olhando. Ela não estava parada, mas caminhava bem devagar, distanciando-se lentamente dos outros, como se estivesse boiando na correnteza.
Eu estava com a máscara. Ela, do outro lado da rua. Olhando e fingindo não olhar. Não olhando, querendo encarar, mas eu estava com a máscara e, mesmo com ela, eu podia ver bem seu rosto. Depois de sete anos, eu via seu rosto limpo e não a enxergava. Depois de sete anos ela era uma nova estranha. Eu via uma máscara. Vi que não a conheci profundamente e, mesmo sabendo o sabor do seu sorvete preferido, como ela gostava de se vestir quando ia arrumar a casa ou cozinhar, mesmo sabendo como ficava seu rosto quando ela sorria ou quando estava zangada, mesmo sabendo que o brilho dos seus olhos já foram intensos por mim e como a fazia infeliz por não saber acompanhar a dança da sua música, mesmo sabendo o gosto de cada centímetro de seu corpo, até como ficavam seus dedos enrolados no lençol e sua boca úmida quando ia dormir, eu sabia que não a conhecia e que nunca a conheceria profundamente o suficiente para que esta impressão da máscara em seu rosto sumisse. Eu olho para os outros ao seu redor, penso no Joaquim, nos meus velhos pais, em mim mesmo, e sinto a mesma coisa.
Mesmo com a máscara, ela sabia que era eu, mas não podia ver meu rosto. Não poderia ser enganada por ele, pelo meu rosto. Ele era de ferro. Ela não fazia a menor idéia de como eu estava por dentro, por dentro da máscara de ferro.
Era a primeira vez que a via desde uns três ou quatro meses. Um sentimento forte apossou-se de mim. Consumiu-me. Devorou-me. Eu levantei. Deixei a solda de oxigênio no chão. Ela estava do outro lado da rua. Pensei em tudo pelo que havia passado nos últimos seis meses. Levantei a mão. Acenei.
─ Feliz ano novo! Muito boa sorte.
Ela não fazia a menor idéia de como eu estava por dentro, por dentro da máscara de ferro, mas agora ela podia imaginar que eu estava sorrindo, porque eu estava. Mas ela não via meu rosto. Não via as curvas do meu rosto desejando, com sinceridade, que ela fosse feliz. Nunca vai conseguir ver por trás da máscara que eu agora só tenho a esperança que todo o tempo que passamos juntos funcione como uma experiência incrível da jornada de nossas vidas e que, pensar nisso, dessa forma, faz tudo valer a pena.
Ela sorriu.
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