Arnaldo Albuquerque e sua obra
Por Bernardo Aurélio
No ano de 2002 eu tentava organizar a quarta edição de uma pequena, porém calorosa feira de quadrinhos no Piauí. Já tendo noção do que representava a obra de Arnaldo Albuquerque para a história da arte do Estado, decidi convidá-lo a ministrar algumas palavras no referido evento. Para me ajudar nesta missão, chamei ninguém menos que Antônio Amaral (autor do Hipocampo, revista vencedora do HQ Mix, Quadrinho Independente, em 2000), tornando a palestra ainda mais agradável e interessante, já que os dois são verdadeiros “monstros”.
Fomos eu, Pedro Victor (que me ajudava na organização) e Amaral, partimos ao encalço do Arnaldo. Em frente a uma casinha na rua José Santos e Silva, no centro de Teresina, nós três batíamos palmas firmemente. Com a naturalidade de quem estava habituado a isto, Amaral disse que ele não estava em casa, mas que seria facilmente encontrado, afinal, havia poucos botequins pela vizinhança. Na segunda parada, lá estava ele: alto, magro, cabelos grisalhos, barba por fazer, camisa quadriculada, sandália tipo franciscano e um enorme óculos, emoldurando seu rosto. Ali, sentado em um tamborete, com uma dose de branquinha ao lado, conversando com uns amigos no barzinho da dona Bebé, sua prima.
Falamos. Disse-lhe que queria uma palestra. Ele topou, não sei se ficou entusiasmado. Arnaldo e Amaral, dois artistas tão autorias, falariam para vários leitores de X-men e Dragon Ball Z. Tinha de ser um sucesso. No dia marcado, a meia hora de se iniciar a palestra, Amaral chega sozinho e perguntando por seu colega. “Se eu sei...”, respondo. Hora marcada e nada! Ele parte à caça de Arnaldo, mas nem sinal. Amaral faz a palestra sozinho, e hoje, quando pergunto a Arnaldo porque faltou ou aonde teria ido, ele responde: “Você já havia me procurado antes?”.
Dois anos depois, voltei àquela mesma casa, bati palmas e decidi ir até a dona Bebé. E lá estava. Quando lhe disse que eu organizava um evento, que queria uma exposição sobre o que havia produzido nas artes plásticas, porque queria homenageá-lo e criar um troféu com seu nome para premiar os melhores quadrinhistas que aparecessem, e mais, preparar uma reedição comemorativa de 30 anos de Humor Sangrento, publicação de sua autoria, além de dizer que seu trabalho era objeto de estudo da minha monografia de conclusão de curso, ele sorria para si mesmo, coçando levemente a cabeça, acanhado e repetindo: “...Quanta homenagem!...”.
Afinal de contas, o que este figurão tem de especial? Arnaldo, teresinense de 1952, é planejador gráfico, mas divide seu currículo em um considerável leque artístico que aponta o pluralismo de sua capacidade: faz pintura, publicidade, fotografia, cinema, jornalismo, quadrinhos e organizou importantes eventos musicais no Piauí. Nos mais completos catálogos de artistas plásticos regionais, seu nome está incluso, mostrando suas pinturas. As ilustrações estão presentes em inúmeras capas de livros e cartazes de eventos, são também responsáveis por lhe premiar no exterior, como na Argentina e México. Teve páginas inteiras, tiras e charges em jornais locais, como o O Dia, publicou no Pasquim, o mais importante periódico cultural do país e fez a diagramação do Grama (possivelmente o primeiro jornal mimeografado do Brasil, como teria dito Heloísa Buarque, segundo o próprio Arnaldo), além de participar em outros nanicos. Seu trabalho competente na fotografia lhe possibilitou filmar com super-8 uma quantidade considerável de curtas, um dirigido pelo próprio Torquato Neto (grande expoente do movimento tropicalista), que inclusive se tornou seu amigo e grande influência. Na década de 1970, organizou o Show Piau, evento de intenso caráter popular onde revelou grandes nomes da música piauiense, como Dovalino, Couto Filho, Geraldo Brito e Rosinha Lobo. Sua habilidade com desenho e câmera fizeram de Arnaldo um premiado em concursos no Maranhão, Sergipe, Acre e Espírito Santo, com a animação Carcará Pega Mata e Come. Além de tudo isto, no ano de 1977, nosso artista lança a revista Humor Sangrento, primeira publicação de quadrinhos do Piauí. Nas 36 páginas voltadas para o quadrinho na edição, foram produzidas 23 pequenas estórias. Fica claro que a grande maioria delas limitavam-se a apenas uma ou duas páginas, aliás, esta é uma das principais características do autor: ser breve, mas contundente. Para que se entenda melhor sua obra em quadrinhos é preciso conhecer mais um pouco sobre ele próprio.
A infância em Teresina, seu contata com o forte regionalismo nordestino, seja na música, no artesanato ou mesmo no simples modo de viver, a presença constante da leitura de quadrinhos, as inúmeras seções no cine Rex e, conseqüentemente, a paixão pelo cinema, a convivência com o período da ditadura militar, sua partida para o Rio de Janeiro em 1969, aos 17 anos, o contato com o novo na política e o engajamento artístico tanto em películas mais ousadas, como as de Glauber Rocha e Ruy Guerra, como nos quadrinhos underground de Robert Crumb e Gilbert Shelton, da lendária revista norte-americana Zap Comix, tudo isso, entre outros detalhes importantes, fez com que, em 71, quando Arnaldo retorna a Teresina, sua bagagem, repleta de cultura popular vanguardista, o colocasse em destaque no cenário cultural piauiense.
Em se tratando do conteúdo de Humor Sangrento, pode-se destacar suas características conceituais regionalistas, da mesma forma que o forte sentimento antiimperialista e a contextualização com a política da ditadura brasileira. Em De Como Meu Herói Matou o Bandido, por exemplo, percebe-se uma estória traçada em dois focos de acontecimentos simultâneos, culminando no confronto entre dois mundo ligeiramente semelhantes: O do cangaceiro contra o do velho oeste norte-americano. É tratado da defesa, como também, da luta e da “revalorização do nordestino”, enfrentando e conquistando seu espaço, não apenas na vida, mas também no mercado editorial brasileiro. Carcará, uma outra estória, tem suas semelhanças com De Como Meu Herói Matou o Bandido mostrando a luta contra os quadrinhos estrangeiros, quando Capitão América é morto por uma pedrada de baladeira, mas é bem mais que isso: mostra a imposição imperialista norte-americana, simbolizada claramente pela águia, retirando a vida e as possibilidades de um nordestino recém-nascido, como também uma luta desigual, da mesma forma que Davi versus Golias. Cabeça de Cuia e Num Se Pode são releituras de lendas piauienses, atualizando nosso folclore. Em Censurado e Deduragem, temos um belo retrato de como Arnaldo poderia apresentar nosso país a quase trinta anos. Isso, sem ainda se aprofundar na quantidade de técnicas que utilizou para edificar sua obra: se fossem bem analisadas as estórias Hara-Kiri, De Como Meu Herói Matou o Bandido, A Cavalaria Passa. O Cão que Ladra Morre, Parir Sempre e mais uma ou duas sem título que se encontra na revista, poucos afirmariam, com plena certeza, que se trataria do mesmo autor.
Humor sangrento é um único exemplo de onde já se é possível visualizar o pluralismo da concepção artística de Arnaldo, afinal, como ele próprio considera, a revista é um grande manual que apresenta ao leitor diferentes técnicas de construção do quadrinho.
Arnaldo Albuquerque, para nossa felicidade, ainda produz, alguns de seus super-8 estão sendo trabalhados para uma possível restauração. Os desenhos que originaram as animações, centenas de papezinhos manteiga, aguardam serem novamente animados. Suas telas estão espalhadas em casas de amigos e desconhecidos. Infelizmente, o que você tem em mãos contempla apenas uma parte de sua produção nas artes gráficas, ficando ainda desprestigiado, de forma merecida na história, grande parte de sua obra em outras áreas.
Em 2007 a Humor Sangrento contempla 30 anos de lançamento e sua reedição reformulada e ampliada é um presente e uma introdução ao mundo do Arnaldo... Aproveite!
Um comentário:
lindo artigo,
que tal trazer o scanner e em fim aproveitarmos nossas férias para trabalhar nessa restauração... hummm isso bem que poderia ser de frente para o mar ^^
linda narrativa,
arnal é mesmo uma pessoa singular no plural!
até já menino surfista!
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