terça-feira, 11 de novembro de 2008

Por Dentro da Máscara de Ferro Parte 3

PARTE III
POR DENTRO DA MÁSCARA-DE-FERRO


Não posso explicar o que estou fazendo sem parecer ridículo. Me encontrei meio perdido, sem saber o que fazer. Só o que vinha à minha cabeça era raiva e fornicação. Raiva e fornicação. Às vezes, uma coisa impedia a outra, mas sentia que algo estava muito errado.
De repente, encontrei a fraqueza dentro de mim mesmo e por um bom tempo, eu gostei. Depois, percebi, realmente, que estava tudo muito errado, mas não consegui mudar. A noite escura me envolvia e eu corri de ré, olhando pra trás, sem sonhos...
Não quero nem preciso explicar essa merda toda. Só quero acertar a cabeça de alguém e encontrar uma desculpa bonita que justifique isso como heroísmo. Afinal de contas, eu sou um herói, ou preciso ser. Herói e vilão de mim mesmo. Procuro uma motivação aqui dentro e só enxergo egoísmo: preciso me salvar...


Não tenho grandes talentos na vida, mas sei que preciso aprender melhor a distinguir o que é certo do errado, aprender a superar conflitos e me sobressair como um vencedor na luta que todos nós travamos. Se existe uma moral nisto tudo, talvez seja apenas isso, e esta noite vou começar a aprender melhor sobre superar a própria vida...
Já estou acostumado a usar a máscara. Ela cai bem em meu rosto, principalmente depois de alguns retoques. O visor não é nenhum quartzo de rubi, mas também não atrapalha minha visão. Também respiro sem problema. Não sou nenhum Darth Vader. Ela serve para proteger e esconder meu rosto. É o suficiente.


Nunca havia parado para pensar como eu tenho coisas aqui que podem me ajudar. Em poucos minutos eu monto um cinto de utilidades com um pequeno maçarico, umas chaves de boca, de roda, outras inglesas, um martelo, pregos e polcas. Ao lado da Nancy estava, inerte, um cano. A arma do crime. Ele caiu muito bem em minhas mãos. Posso carregar tudo isso comigo, e ainda tenho a Kombi. Nela, vai o mais pesado: o antigo 38 do meu velho pai. Para as grandes emergências.
Lembro das longas discussões com Joaquim, tentando me provar que a grande maioria dos super-heróis são loucos. Penso no Rorshach. Penso no próprio Batman. Será que temos de ser loucos para sermos heróis? Será que todos não usamos máscaras? Será que todos não somos loucos? Será que todos não podemos ser heróis? Será que quando ponho esta máscara agora não sou apenas mais verdadeiro que os outros que fingem que estar tudo bem?


Começa a chover lá fora. Já me disseram que a chuva simboliza renascimento. Há dias ameaça chover. Porque esperaram até esta noite?
Abro a porta da garagem. Acendo os faróis do carro. Alguém parece me olhar do outro lado da rua. Sorte dele. Isto é inédito. A origem. A primeira aparição do super-herói. Uma edição raríssima.


Deixo o carro numa esquina próxima. Maldita Theresina com seus prédios sem escadas de incêndio. Acho que não fomos criados mesmo para a cultura dos super-heróis. Para chegar até o teto tenho de subir pelas escadas nos corredores do prédio. Nada heróico. Mal começo.
Mesmo com a máscara eu podia sentir a noite fria e molhada. A lua, desfocada pelas nuvens, ainda conseguia brilhar forte no céu. Eu podia ver meu perfil recortado sob a luz azul da lua e a água da chuva como num desenho de Frank Miller ou Mike Mignola. Eu podia sentir a energia das mãos de um deus criador em cima de mim.
Lembrei de Grant Morrison. Lembrei do Coitote. Eu sou o Coiote e esta noite quero acertar umas contas com a vida. Entender um pouquinho mais a eterna caça violenta que somos obrigados a viver. Entender os caprichos de um Deus.


Como deveria funcionar? Ficar de tocaia, observando, no ponto mais alto do lugar mais perigoso da cidade? Acho que isso era suficiente... Era assim que realmente funcionava. Eu só precisava contar agora com a natureza humana.
Duas horas depois eu descubro o quanto isso é chato. Mais uma hora e meia de espera e eu calculo que só pegaria uma gripe, até que o sereno da madrugada toma outras proporções e anuncia que tudo está apenas começando.
O coração soca o peito com força quando vejo, do outro lado da rua, no prédio residencial mais baixo, as luzes de uma briga. Droga! Marido e mulher, de novo. Mas a situação estava bem pior. Era uma covardia. Muita agressão física desnecessária. Lembrei dos filmes policiais onde os vizinhos ligam denunciando essas situações e algum oficial barrigudo e bigodudo entra na sua viatura reclamando, enquanto derrama seu café e enfia goela abaixo o donnut’s de morango ou chocolate. Afinal, era apenas uma crise domiciliar.
Penso em descer as escadas, atravessar a rua, subir as escadas do prédio vizinho e bater na porta do apartamento, mas acho que não seria muito heróico. Pena que não há clarabóias por aqui, então conto as janelas para não errar.
Quando olho para o abismo entre os prédios, tenho a impressão de que o lixão lá no fundo está olhando para dentro de mim.
Era esse o momento: o início de uma lenda ou o fim, pouco depois de começar...
Antes de correr para saltar eu lembrei do Neo no primeiro Matrix e percebi o quanto minha cabeça está cheia de cultura pop enlatada e, por um instante, pude me orgulhar disso sem me sentir culpado por alguma coisa existencial. Quando começo a correr lembro que o Neo caiu de cara no chão quando tentou algo parecido pela primeira vez. Oh-ou! Nada bom...
Eu salto.
Nada me prende ou segura no ar.
Magia.
O vidro estilhaça ao contato com minha bota. Agradeço a carga dramática pela janela ter vidro. Entro na sala do apartamento. O impulso da queda me faz rolar.
Paro como uma aranha. Faço uma pausa teatral antes de levantar calmamente a máscara.
Cacos de vidro escorrem do meu ombro. A cena é impressionante... Pena, porque só agora percebo, olhando para a garotinha à minha frente, que errei a merda da janela.
“Aaaaaah!”.
A garotinha grita. Eu não sabia se tapava sua boca com as mãos ou se saia correndo. Como não apareceu ninguém, achei melhor fingir que não era comigo. “Desculpe, desculpe...”, e fui saindo pela porta. “Aaaaaah!”, ela continuava numa única e assustadora nota interminável.
Erro de cálculo. Tudo bem. Azar de principiante. Uma janela acima ou à baixo. Tento na de cima. Ao subir os vinte e cinco lances da escada com um único salto, pude ouvir o barulho das mobílias sendo destruídas por trás da porta à minha frente. Eles nem se importavam com o grito da criança histérica.
Ok! Segunda chance de uma grande entrada. Pulo contra a porta. O ombro contra a madeira. “BUMP!” Meu corpo contra o chão do corredor. Tenho de me segurar no corrimão para não cair escada abaixo... Tudo isso só parece retardar o fim do terrível sofrimento da vítima dentro do apartamento.
─ O que você tá fazendo nesta porta?, gritou uma voz rouca de mulher.
─ Mas querida, você não ouviu baterem?, respondeu a voz do baixinho.
─ Você tá querendo escapar da conversa, seu vagabundo?, uma palma enorme atinge o ouvido dele, e eu até pude ouvir um zumbido no ar. A criaturinha minúscula tropeçou nos próprios pés e cambaleou pelo corredor, tentando equilibrar-se com os braços estendidos como uma vara de equilibrista. ─ Deve ser um desses seus amigos vagabundos que aparecem por aqui pra ti salvar o pescoço. Olhe, mas você se cuide, neguinho, se cuide!
“BAM!”. Fecha a porta.
─ Cara, tu tá lascado, disse.
─ Nah! Bobagem...
O carinha levava na esportiva. Com uma mão coçando o ouvido e a outra tentando subir as calças derreadas abaixo dos quadris, ele até esboçava um sorriso.
─ De qualquer forma, muito obrigado, agradeceu.
─ Não há de quê...
─ A propósito, por que tu tá com essa máscara de solda na cabeça?
─ Pra proteger meu rosto e minha identidade.
─ Pra quê?
─ Super-herói...
─ Ãh... Fantasia de carnaval?
─ Não! Super-herói, mesmo...
Só agora noto que o grito hiper-sônico da garotinha parou... A tempo apenas de perceber o que aconteceria depois.
─ Foi isto aqui, filhinha?
─ Fôôôi, pai!
Dengosa maldita.
Engrenagens de carne com cinco pontos de pressão fecharam sobre minha gola. Queria saber ao certo quantos malditos degraus haviam naquela escada. Minhas costas ainda doem. Não sabia mais onde começavam minhas pernas. Ele era um verdadeiro troll, um golen, um gárgula, um orc, uma criatura tolkieniana... E estava só de toalha, ensaboado. Quando saltou lá de cima, apontando seu joelho para meu estômago, eu pude comprovar que ele estava, realmente, só de toalha.
Meu umbigo nunca mais foi o mesmo. Instantaneamente, o ácido do meu estômago, misturado ao cuscuz, espirrou pela minha garganta num jato forte, mas não encontrou escape fácil, tendo de escorrer pela máscara.
“Ooouuurg...”, implorei.


Caminhar até o carro foi a parte mais difícil. Havia sido minha primeira noite como super-herói e eu sabia, acreditava que nem só em vitórias vive-se o cotidiano, por isso voltei feliz até o carro, pensando nos pontos positivos que conseguia enxergar. Primeiro, impedi aquela mulher infernal de continuar abusando de seu pacato marido. Segundo, havia finalmente começado. Eu era o Máscara-de-Ferro.


Na manhã seguinte:
─ Tu tá um caco! Que houve contigo, cara?
─ Nada, não..., respondi.
Faz parte do dia-a-dia dos mascarados esconder dos amigos sua identidade secreta.
─ Olha aqui, Joaquim...
─ O quê?
─ O que você está vendo?
─ Tu? Tua máscara de solda?, perguntou sem entender.
─ Eu sou o Máscara-de-Ferro...
Falei com um sussurro, como Michael Keaton no primeiro Batman de Tim Burton. Não pude manter o segredo.
─ Tu quê?
─ Sou o Máscara-de-Ferro. Máscara-de-Ferro! Não tá vendo?
─ Tou? É...?
Era difícil, mas eu esperava que o Joaquim entendesse. Ele foi forjado no mesmo fogo que eu, apesar ter se desviado do caminho e começado a apreciar quadrinhos afeminados, sentimentalistas e chorões, eu sabia que podia contar com o apoio dele.
─ Eu sou um super-herói.
─ Como é que é?
─ Ontem a noite eu sai. Estava chovendo forte. Eu saltei de um prédio para outro. Entrei no apartamento de alguém pela janela e impedi que uma psicopata assassinasse um pobre coitado.
Propositalmente, omiti algumas coisas e exagerei outras.
─ Você tá brincando?
─ Nunca falei tão sério em minha vida.
─ Você se mascarou e saiu por aí, como um vigilante?
─ Isso.
─ Como assim? Com qual sentido?
─ Mas eu já te falei. Eu gosto de ajudar...
─ Hã?
─ E-eu gosto de ajudar as pessoas. Me sinto mais útil que aqui, nesta oficina, onde só ganho dinheiro. Estou fazendo algo realmente prazeroso...
─ Mas isso é loucura. É ficção! Quantas pessoas você conhece que fazem isso?
─ Dezenas, centenas de super-heróis...
─ Pessoas, Cleiton. Estou falando de pessoas como a gente... Não gente de papel, bidimensional, sem profundidade.
─ Que decepção!
─ Como assim?
─ Pensei que você entenderia...
─ Mas não tem sentido.
─ Quer saber, não há o que entender. Escolhi fazer isso como alguém escolhe ajudar um cego a atravessar a rua, ou uma dondoca rica que começa a fazer sopões aos pobres, tentando achar um lugar no céu... Eu escolhi.
─ Tu quer um lugar no céu? Só isso?
Preferi não responder.
─ Tu não tem grandes poderes nem responsabilidades, teus pais não foram assassinados. Tu só perdeu a namorada. Coisa de adolescente. Isso acontece e passa. Simplesmente, não tem sentido. Sem lógica. Mal escrito.
─ Alguma vez, da altura desses teus vinte e poucos anos, tu já sentiu alguma maldita certeza de que queria fazer alguma coisa na vida e que só o que te impedia era tu mesmo? Alguma vez tu sentiu que poderia viver com isso por que a vida te dava todas as possibilidades pra isso acontecer? Sair por aí, como se alguma coisa tivesse te escolhido e que você não se sente nem um pouco usado em si dividir com isso, como se tivesse nascido e sido preparado para isso? Cúmplice.
─ PORRA! TU É UM MECÂNICO!
─ QUE MERDA! Qual o sentido em fazer uma viagem pelo Piauí num carro vermelho? Me diz! Qual o sentido? Sentir o vento no cabelo? Se furar o pneu, remendar? E depois, voltar pra casa? Qual o sentido nessa merda toda? Em passar os dias consertando os carros dos outros?
Acho que pisei em ferida aberta. Ele olhou para o chão. Riscou um círculo na areia com a ponta do pé. É estranho. Todo esse silêncio depois duma gritaria... Então, ele perguntou:
─ E essa Kombi? Vai precisar de uns reparos se quiser se comparar ao Batmovel...
Era tudo que eu precisava ouvir.


Os dias em Theresina são tão quentes, que quando amanhecem como os dias de janeiro, úmidos e nublados, com cheiro de molhado, depois de uma madrugada chorona, quando o céu amanhece cinza e não azul, quando o sol surge opaco e não inclemente, raras vezes no ano, nós agradecemos. Hoje foi um dia assim. Onze da manhã parecia seis e meia. Eu estava soldando uma placa de aço na lateral da Kombi. Um reforço para o serviço noturno. Uma Kombi blindada.
Era janeiro. Normalmente é período de férias. Mas eram os últimos dias. Período especial, sei lá, por isso não me surpreendi tanto quando vi estudantes descendo do ônibus. Eles foram migrando, devagar. Eu sabia que devia continuar olhando. Ela não estava parada, mas caminhava bem devagar, distanciando-se lentamente dos outros, como se estivesse boiando na correnteza.
Eu estava com a máscara. Ela, do outro lado da rua. Olhando e fingindo não olhar. Não olhando, querendo encarar, mas eu estava com a máscara e, mesmo com ela, eu podia ver bem seu rosto. Depois de sete anos, eu via seu rosto limpo e não a enxergava. Depois de sete anos ela era uma nova estranha. Eu via uma máscara. Vi que não a conheci profundamente e, mesmo sabendo o sabor do seu sorvete preferido, como ela gostava de se vestir quando ia arrumar a casa ou cozinhar, mesmo sabendo como ficava seu rosto quando ela sorria ou quando estava zangada, mesmo sabendo que o brilho dos seus olhos já foram intensos por mim e como a fazia infeliz por não saber acompanhar a dança da sua música, mesmo sabendo o gosto de cada centímetro de seu corpo, até como ficavam seus dedos enrolados no lençol e sua boca úmida quando ia dormir, eu sabia que não a conhecia e que nunca a conheceria profundamente o suficiente para que esta impressão da máscara em seu rosto sumisse. Eu olho para os outros ao seu redor, penso no Joaquim, nos meus velhos pais, em mim mesmo, e sinto a mesma coisa.
Mesmo com a máscara, ela sabia que era eu, mas não podia ver meu rosto. Não poderia ser enganada por ele, pelo meu rosto. Ele era de ferro. Ela não fazia a menor idéia de como eu estava por dentro, por dentro da máscara de ferro.
Era a primeira vez que a via desde uns três ou quatro meses. Um sentimento forte apossou-se de mim. Consumiu-me. Devorou-me. Eu levantei. Deixei a solda de oxigênio no chão. Ela estava do outro lado da rua. Pensei em tudo pelo que havia passado nos últimos seis meses. Levantei a mão. Acenei.
─ Feliz ano novo! Muito boa sorte.
Ela não fazia a menor idéia de como eu estava por dentro, por dentro da máscara de ferro, mas agora ela podia imaginar que eu estava sorrindo, porque eu estava. Mas ela não via meu rosto. Não via as curvas do meu rosto desejando, com sinceridade, que ela fosse feliz. Nunca vai conseguir ver por trás da máscara que eu agora só tenho a esperança que todo o tempo que passamos juntos funcione como uma experiência incrível da jornada de nossas vidas e que, pensar nisso, dessa forma, faz tudo valer a pena.
Ela sorriu.


FIM

Nenhum comentário: