PARTE II
NOVOS SONHOS OU A AUSÊNCIA DELES
Quando aconteceu haviam passados alguns meses após o término do namoro. Precisava entender o que estava acontecendo. Não queria se enganar de novo nem enganar ninguém.
Por que toda garota nos primeiros encontros quer saber dos relacionamentos anteriores, do outro? Por que ele tinha de ser tão sincero se ela era tudo o que ele queria naquele momento: conforto? Talvez porque ele acreditasse que havia mais além do conforto que ele não podia acreditar que estava acontecendo. Assim, tão cedo?
Ele contou tudo que podia, tudo que queria ter contado daquela vez que tentou convencê-la a voltar. No fim, parecia a si mesmo que tentava exorcizar o querer e dar uma nova chance às ondas do mar o levarem...
...Mas não poderia arriscar-se a ser um náufrago e nem um pirata pretenso e faminto a ancorar na primeira ilha vistosa. E o pior é que ela sabia disto. Essa gaiata era muito esperta.
Divertiram-se enquanto puderam. Mesmo ele cedendo e pedindo, ela era esperta. Ficaram sem marcar compromissos. Estava bom assim. Sem expectativas ou esperanças...
─ Vai precisar rebocar.
─ Rebocar?!?
─ Éh...O estrago aqui foi feio. Preciso abrir o motor.
─ Não dá pra trazer as ferramentas aqui?
─ Cê sabe que o bairro aqui é perigoso, tá anoitecendo...e...Não dá mesmo!
─ Certo, certo...
A Kombi não era o carro certo para o serviço, mas era o que Cleiton tinha. Duas voltas da corda puxavam a velha parati. Não demoraram chegar. A oficina ainda estava um chiqueiro de porco. O cliente torceu o nariz: era demais, mesmo para uma oficina de esquina.
─ Que merda, heim?
─ Com toda certeza, patrão. Diga um negócio: o senhor tem tempo para esperar aqui pelo serviço ou volta daqui uma semana?
Estava de volta ao trabalho.
Algo ainda corroia-lhe a alma. Sentia-se envenenado. Achava que, apesar das cobranças dela para que ele estivesse mais presente, de si reclamar sentindo-se sozinha, achava que estavam progredindo. Os sonhos só aumentavam: morar juntos, escolher a mobília nova, onde ficariam suas coisas velhas, uma pequena reforma na casa, as conversas sérias com os pais da garota, tudo desembocava num futuro breve e unido. Ela esperou demais para terminar. Esperou demais até a semente germinar, a raiz enraizar... Mas o solo não parecia fértil para ela. A raiz arrancou, mas a cicatriz foi profunda.
Na verdade, apesar dos avisos, o sonho ruiu de uma frase para outra: um instante. Ela só precisava entender que ele precisava dela para dizer adeus também. Só precisava que ela entendesse e aceitasse aquele presente de despedidas, aquele cavalo de Tróia que ela não suportou. Se ela fosse forte o suficiente o aceitaria e faria o que quisesse com ele. Por que ela não aceitou aquele presente? “Fraca!”. Por que ela o fez acreditar em sonhos perdidos? “Falsa!”. Ele não queria, mas odiá-la era a saída mais fácil e ele sempre tendeu para o lado da fraqueza humana.
“Tém! Tém!”.
Marteladas no ar.
A oficina, depois do furacão de destruição das últimas semanas, encontrava-se, pelo menos, desarrumada como antigamente. A maior diferença que chamava a atenção de todos que costumavam passar por ali no último ano era a destruição e o desprezo pelo maverick vermelho num canto da oficina. Durante todo esse tempo ele fora o xodó do local. Os clientes mais próximos apostavam se o carro voltaria a andar, se o mecânico era bom o suficiente. Hoje, não havia mais o que discutir. Apostas encerradas. Quem ganhou, ganhou. Cleiton desistiu...
Mais de seis meses haviam se passado. Sem o carro para consertar, Joaquim ausentara-se durante um tempo considerável. Cada um esteve em seu canto, contando pedras...
─ Como estamos?
─ Estamos bem, Joaquim, respondeu a voz de dentro de um quarto com a porta entreaberta, durante o intervalo das marteladas, como se o tivesse visto ontem.
“Tém! Tém!”
─ O que está fazendo?
─ Serviço rotineiro..., enquanto saia da sala, esfregando as mãos no jeans da calça.
─ Voltou a trabalhar?
─ É preciso... Mas ultimamente tenho pensado em tentar coisa nova...
─ Como assim? Largar a oficina? Tu sabe fazer outra coisa da vida?, Joaquim sentou-se no capô amassado da falida Nancy.
─ Largar, largar mesmo, eu não queria. Preciso do dinheiro...
─ É uma merda, né?
─ O quê?
─ Precisar do dinheiro...
─ Nem fale, Joaquim... Mas ‘tou revendo meu tempo, sabe? Deixar as mulheres da minha vida ─ pôs a mão no carro e continuou depois de um suspiro ─ ...me deu um buracão. Ano novo e eu nunca estive tão perdido, sem perspectiva...
─ Caindo no buraco...
─ Pois é.
─ Mas e aí?
─ O problema é esse: não sei o que eu quero. Só sei que preciso sair dessa oficina vez ou outra, arrumar um outro trampo completamente diferente, trabalhar meio expediente...
─ Ou meio-meio expediente, caramba! Tu é teu patrão!
─ Pelo menos isso.
─ Um novo sonho?
─ ...Ou a ausência dele...
─ É, talvez seja apenas isso: a falta de expectativas gera o fim das decepções que pode levar à felicidade constante...
─ É, mas vâmo parar por aqui? Deixar de frescura?
Ela costumava passar diariamente por ali. Quando ia assistir suas aulas. Os ônibus velhos passavam, ela poderia estar ali. Grupos de alunos desciam andando em coletivos, ela poderia estar ali, passando, diariamente em frente à oficina.
As mãos nos bolsos. Um andar descompromissado. Uma noite de janeiro, de nuvens grossas, clareadas por uma lua escondida em degradê no escuro do céu e na densidade do ar que ameaçava uma forte precipitação.
O invisível em frente aos olhos, guiando. O inesperado em cada esquina. O silêncio dos sons noturnos da natureza. A calmaria, tão conhecida, que precede a tempestade.
─ Me solta, seu estúpido!, exigia a mulher.
Não estava muito longe. Pôde ouvir muito bem, o pedido. Achou comum, que não deveria se importar...
─ Eu disse: me solta, porra!, agora mais alto.
─ Te aqueta, égua!
O estralo de um tapa com a mão aberta no rosto de alguém, seguido do cair surdo de um corpo grande no chão.
Agora ele pôde ver, da esquina, ainda com as mãos nos bolsos. Ela, no chão. Uma mulher corpulenta, de seios cheios, bochecha corada pelo tapa. Ele, o outro cara: um perfeito estúpido mesmo.
─ O que tá olhando? É minha mulher..., falou como que se justificando.
Baixou a cabeça e continuou com os mesmos passos sem direção. Cruzou com os dois. “SLAP”! Outro tapa.
─ Levanta!
─ ...O-o senhor, n-não deveria. Não deveria...
─ O que foi, rapah? Quer ser heroizinho hoje, é?
─ E-eu acho que, simplesmente, o senhor...hã...Não de-deveria...
A mulher no chão esboçou um sorriso. Cleiton percebeu. Ela estava rindo dele. Ele não conseguiu não demonstrar indignação com isso. Ela percebeu. Piorou. Começou a gargalhar. O Estúpido olhou para a mulher e começou a sorrir também. Ele, o próprio Cleiton, não se conteve: viu graça, no início contida, depois explodiu como a mulher, num riso muito gostoso. Afinal, que idiotice! O que ele esperava conseguir?
─ Ontem aconteceu algo estranho, Joaquim.
─ O quê?
─ Eu quis me meter numa briga de casal, de marido e mulher...
─ Como?
─ Assim: ela tava lá, apanhando, eu, passando por ali, vi tudo e disse pra ele que não deveria fazer aquilo...
─ E aí?
─ Bom, todo mundo começou a rir. Eu tava com cara de panaca.
─ E ele parou?
─ Enquanto eu tava lá, sim...
─ Então, funcionou?
─ O importante é que eu gostei disso, entende?
─ O quê? Meter a colher?
─ Nããão! Quer dizer: sim! Gostei de ajudar. Gosto de ajudar as pessoas...
─ Iih...Sei não...
─ É sério! Acho que eu poderia ser policial...
─ Mas com essa cara de panaca? Qual é que seria? Tu ia fazer todos os mala sorrirem até tu conseguir algemá-los?
─ Porra! É sério, heim? Falar contigo é foda!
Ela poderia passar por lá todos os dias. É verdade que ele estava sempre ocupado atendendo alguém ou, muitas vezes, não estava por lá, indo trabalhar na casa dos clientes. Muitas vezes, na maioria delas, a atenção dele estava com a Nancy. Mas ela poderia passar por ali, estar por ali, ficar por ali, com igual ou maior freqüência que ele dispunha dentro da casa dela. Faria toda a diferença. Mas a questão não era apenas física. Ela queria com ele sua própria Nancy e não enxergava dedicação suficiente. Ela não enxergava, mas ele já acreditava com força nos sonhos que ela oferecia pra ele, acordada.
Transformação. Reinício. Justificar a alteração da alma numa chuva de janeiro. Mascarar o rosto frágil. Erguer-se com força no anonimato. Provar a si mesmo que é superior ao ódio. Submeter o ódio ao exercício de sublimar. Acreditar nas pessoas. Achar um novo caminho na ausência das coisas. Transformar a experiência em energia positiva, sem esperar nada em troca, a não ser superar a si próprio.
Era uma noite como a anterior. Céus densos e sem brilho de estrelas. Raios e trovões completavam o cenário. Começou com chuvisco raquítico que prometia molhar até as primeiras horas da manhã do dia seguinte.
A oficina estava às portas fechadas. O clarão dos relâmpagos iluminava as fachadas rachadas das paredes do quarteirão. Lá dentro, a luz trêmula das luzes incandescentes revelavam o processo de criação.
CA-BUUM!
Retumbavam graves, os trovões.
A garagem abre. Dois faróis acendem, ofuscando os olhos do narrador, por um instante. A Kombi ganha a rua. Dentro dela, pela primeira vez, a alma de um aventureiro encontra um botão de adrenalina escondido, que lhe injeta batidas fortes em seu peito.
É a primeira noite do Máscara-de-Ferro.
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