terça-feira, 11 de novembro de 2008

Por Dentro da Máscara de Ferro Parte 1

Dedico às primeiras namoradas,
Às boas garotas depois disso,
Aos grandes e melhores amigos
E a todos os sonhos perdidos.

PARTE I
ACELERANDO EM MARCHA RÉ...

O rapaz puxa uma pesada corrente através das roldanas, levantando o incrível motor do velho maverick ferido à sua frente. Era apaixonante o olhar carinhoso que ele transmitia para aquela peça. O motor sangrava seu óleo negro e algumas peças soltas caíam pelo chão enquanto, habilmente, era orquestrado de um lado para o outro pelas mãos do maestro, dono da oficina.
Tudo ali era sua cara. Era uma oficina suja, cheia de graxa, como devem parecer as boas oficinas. Peças, bigornas, maçaricos, pneus, correias, calhas de bicicletas impinduradas pelo teto, câmeras de ar, remendos espalhados por aí... O que diferenciava aquela das outras oficinas eram os calendários: não haviam fotografias de mulheres seminuas em estúdio artificiais, com coqueiros e folhas de plástico. Ele gostava muito de personagens coloridos de histórias em quadrinhos. Poderiam ser reconhecidos naquelas paredes, um ou outro ícone pop das artes seqüências norte-americanas. Desenhos de heróis e heroínas com corpos perfeitos revestidos em colantes que acentuavam mais ainda as curvas de seus músculos.
Como um médico legista sobre uma mesa de autópsia, seu olhar meticuloso olhava curioso, procurando excluir todas as possibilidades que não explicassem aquele falecimento. A diferença era que aquela peça fria sobre a mesa poderia ser consertada, poderia voltar a respirar, explodir, esquentar... Bastava para ele, tempo suficiente, e aquele coração voltaria a bombear. A noite seria longa.


Ela chorava em seu quarto. A noite fria obrigava-a a curvar-se sobre o próprio corpo. Ela só queria que ele estivesse ali. Quantas vezes durante todos aqueles anos de namoro foi só o que ela pediu: mais atenção, mais demonstrações de carinho.
O colchão ficava estirado sobre o piso, cheio de livros, revistas e roupas sujas ao redor. Alguns cd’s românticos.
Mas nada disso importa, dessa descrição física. Apenas, ela chorava...


Quando se encontraram no outro dia, o motor ainda estava sobre a mesa. Ele sorriu. “Não vou desistir desta beleza”, disse enquanto dava um tapinha no coração de aço.
─ Cleiton, Cleiton... Se conseguirmos fazer este carro voltar a andar eu... Eu nem sei cara!
─ Nada que mais um pouco de paciência não resolva... Novidades?
─ Te trouxe uma raridade: O Evangelho do Coiote! Conhece?
“Fala sério!”, Cleiton agarrou a edição ensebada das mãos do amigo. DC 2000, nº 07. A capa, brilhantemente ilustrada por Brian Bolland, apresentava um cara loiro, de óculos estranhos, deitado no chão, de braços estendidos como se crucificado numa encruzilhada no meio do deserto. Metalingüisticamente, uma mão externa, de um artista criador, retocava as últimas cores do uniforme amarelo da criatura, o herói. Na parte inferior havia a frase: “Homem-Animal e os caprichos de um Deus”. A edição ainda vinha recheada de uma estória escrita por Grant Morrison, e tratava sobre a revolta frustrante contra o desespero e angústia do cotidiano violento na vida de um coiote, que passa todos seus dias numa caça interminável e infrutífera contra um papa-léguas. “Cara, como tu conseguiu isso?”, continuou.
─ A gente consegue de tudo no mercado negro. Espero que isso não atrase o conserto do potente aí...
─ Mas nem se preocupe.
Joaquim era um amigo de antigamente. Conheceram-se chafurdando em sebos de antiguidades do centro velho de Theresina, nestes lugares onde se encontra de tudo que não vale nada e até algumas coisas curiosas. Descobriram que dividiam uma paixão em comum: histórias em quadrinhos, com o seguinte diferencial: Joaquim era um exímio operador de lápis e nanquim, produzindo pranchetas incrivelmente belas, contando histórias absurdamente surreais, autênticas e autorias. Enquanto Cleiton, não passava de um degustador e crítico, mais ligado à fase de colantes, capas e cuecas sobre as calças. Apesar da distante diferença de gostos, davam-se muito bem, principalmente quando travavam disputas titânicas sobre os gêneros, não chegando a lugar nenhum a respeito de qual deles estava mais correto, mas era essa toda a diversão...
“Vamos trabalhar?”, disse Joaquim, fazendo que arregaçava as mangas compridas imaginárias de sua camisa. “Ainda há muito que fazer pra esse bicho voltar a andar”. Já estavam nessa labuta desde o ano passado, completariam oito meses dali a uma semana, e tudo o que pareciam ter conseguido era espalhar peças de um lado para o outro. Mas tudo estava meticulosamente planejado, apesar das aparências dizerem o contrário. Todo aquele galpão parecia ser apenas para o maverick vermelho. Cada palmo do carro era revistado, procurando-se detalhar minuciosamente o que poderia estar faltando ali. Deixaram o motor para o final: a parte mais delicada. Todos os sucatões da cidade foram visitados em busca das peças certas. A busca de se construir a alma correta para aquele corpo passava não apenas pelo esforço de se realizar a restauração do carro, mas em se escolher desde o retrovisor correto, os pneus perfeitos até a mínima polca escondida sob a lataria escarlate.


Era uma paixão. Completar aquele carro era um sonho. Fazê-lo trilhar pelas rodovias do Piauí, era um outro sonho. Mantê-lo sempre assim seria o maior de todos os sonhos. Estavam decididos a entrar o ano novo numa fantástica viagem inaugural na nau robusta que apelidavam carinhosamente de Nancy, “a miúda e magricela Nancy, ela crescerá, encorpará”, recitava Joaquim, parafraseando com certa liberdade um texto que lera há muito tempo, numa dessas histórias em quadrinhos de que tanto gostava.


Seus estudos nunca lhe foram tão prejudiciais. Estudar nunca fora tão sufocante. Mas não era o estudo em si, era toda a dificuldade de conseguir estudar, de conseguir se concentrar, de conviver com os colegas de sala e com os professores.
A distância só piorava as coisas.
Não conseguia encontrar muito sentido naquelas palavras que os volumosos livros apresentavam à sua frente. A angústia do futuro incerto corroia-lhe a alma.
A distância só piorava as coisas.
Eles se encontraram numa pracinha.


A coisa foi tão assim. Tão decidida, tão certa do fim, que não sobrou, na hora da partida, tempo ou querer suficiente, para um último beijo de despedida.


Joaquim costumava aparecer sempre. Em alguns dias, vinha mais de uma vez. Ontem não aparecera, o amigo saíra com a namorada. Quando chegou, cedo da noite, preparado para passar uma madrugada de domingo sujando as mãos de graxa, encontrou-o deitado no banco traseiro da Nancy. Percebeu os olhos vermelhos.
─ Hoje não, Joaquim... Não tenho vontade... ─ disse Cleiton.
O amigo sentou na frente.
─ Diz aí!
A noite ainda foi longa, mas estavam trabalhando agora em outro coração que também parecia sangrar.


Ela chorava muito. Tomara uma decisão difícil. Precisava tomar.


Os dias seguiram-se sem muita pressa. Na verdade, muito mais demorado que o costumeiro. A oficina não apresentava motivos para animá-lo. Não dava mais conta da Nancy nem dos outros serviços. Nenhum dos conselhos era suficiente. Acreditou que aquilo logo passaria. Em sete anos, a segunda vez. Tudo poderia voltar. Ela mesma disse.
A princípio, além da falta de força, um profundo sentimento de culpa, mas esperanças. Depois, logo, raiva: brutal. Ódio! Explodir! Cair nas bocas. Fazer o que nunca havia feito...

...Fez.


─ Volta pra mim!, pegou em seu braço, mas sem a força que queria.
─ Não é assim. Não pode ser assim, nem conversamos...
─ Volta pra mim!, repetiu sem a força que precisava para ela acreditar.
─ Você não entende, não conseguiu...
─ Eu quero estar contigo...
─ Você já estava na rua...
─ Sem dona, interrompeu.
─ Não, concluiu.


Tinha vontade de abandonar a Nancy. Faltava-lhe tesão. Não havia inspiração alguma para o trabalho. Mal-humorado além do costume, procurava entreter-se lendo as velhas histórias em quadrinhos do baú. Era para isso suas únicas energias agora.


Um garoto entra na oficina. Trazia uma pequena bicicleta com o quadro quebrado.
─ Remenda?, arriscou o menino, fungando a secreção para dentro do nariz sujo.
De dentro da rede, cogitou, com o olhar, se disponibilizaria um pequeno esforço.
─ ...Deixa aí! Volta amanhã!, aceitando o desafio.


Certo dia, depois de acordar e de se sentar na rede com os pés descalços no frio piso do quarto, ele pôs as mãos em concha sob o queixo e voltou a pensar em assuntos que não conseguia enterrar.
Olhou para o lado e pegou suas sandálias de plástico. Vestiu uma camisa que estava enganchada no canto do armador. Não havia nenhuma imagem nela. Era simplesmente uma camisa azul com três botões.
Seu café era apenas puro, forte e com uma fatia de bolo de goma com manteiga, esquentado na cuscuzeira. Estava duro depois de duas noites dormidas.
Morava só. Os cômodos ficavam atrás da oficina, não passavam de dois: quarto-banheiro e cozinha-sala. A ordem estava no caos da arrumação. Tudo deveria estar onde fora jogado. Assim funcionava.
Ele foi caminhando até a bodega comprar algo para o almoço. Arrumando as prateleiras estava uma garota bonita, baixinha, com o rabo de cavalo muito bem feito. Parecia familiar. Voltando do caixa, ao se cruzarem novamente, ela sorriu e acenou, ele respondeu o gesto com um leve aceno de cabeça e com um sorriso, tentando ser simpático. Agora lembrara: havia estudado com ela alguns anos atrás. Masturbou-se muito pensando nela. Caiu numa paixão juvenil. Hoje, não lembra mais seu nome. Como um espadachim assassino que precisa saber o nome da vítima antes de executá-la, ele sabe que não irá mais se masturbar para ela. Apesar do passado recente, ela é apenas um rosto bonito, mas sem nome, quase esquecida.
Tentou conversar, mas nunca soube como. Sair com Joaquim e abordar umas garotas era diferente. No fim de festa só sobravam eles e elas. Ele tinha certeza do que todos queriam. Apenas se divertirem. Ela era apenas uma garota bonita, desconhecida, arrumando o balcão. Ele não sabe se ela quer se divertir com ele ou se aceita seu dinheiro.


─ Você acha que tem volta?
─ Porque?
─ Vai ficar assim até quando?
─ Quem pode saber?
─ Vamos sair?
─ De novo?
─ Não ajuda?
─ Ajuda?


O “nheeec-nhec” das engrenagens do monociclo espalhava-se pelo deserto. Trêmulo, ele se equilibrava. Distante, no horizonte: uma nuvem de poeira crescia.
À beira do asfalto no deserto, o monociclo aventurava-se.
Um grande veículo trazia a nuvem. Subiu no asfalto, um enorme caminhão truck vermelho. Em alta velocidade, chamou a atenção por que vinha em marcha ré.
Vruuuuum... Cruzou o monociclo.
Olhou para a boléia do caminhão. Viu a si mesmo, divertindo-se como na noite anterior, com as mesmas pessoas: Joaquim, ele e as garotas. Riam tão alto quanto o rancor do motor.
Passou.
“Nheeec-nhec...”.
Acordou.
─ Acelerando... Estou acelerando em marcha ré...


─ Se você não vai consertar a bicicleta, devolve! Eu não quero voltar de novo.
O quadro da bicicleta precisava de uma bela solda. Ele já havia começado duas vezes, mas não conseguia terminar.
─ Chega aqui, baixinho, traz aquela máscara ali...
O garoto alcança uma pesada máscara de solda de cima de uma mesa de madeira maciça, preta de graxa.
─ Sua bicicleta não precisa de muita solda não, tá vendo? São só umas gotas por aqui... Protege teus olhos com isso aí, vai!, vou te mostrar...
Posicionou a mão na frente do rosto, fazendo sombra nos olhos e colocou o bastão de solda sobre a parte quebrada. Algumas vezes, reforçando.
─ Aqui tá pronto, mas eu deixaria a bicicleta aqui por mais um dia... O garfo tá empenado, tá vendo? Tem muita folga no guidão e na corrente, sem falar que está tudo seco, precisando de uma graxa aqui e acolá...
─ Ih, seu moço, num vô ter dinheiro pra tudo isso não...
─ ...Hum... Faz assim, você quer sair daqui com essa bicicleta tinindo?
─ Quero!
─ Então me ajuda com o seu serviço aqui, me traz alguma coisa pra jantar e tamos conversado, feito?
─ Certo! Mas queria pedir mais uma coisa, moço...
─ O quê?
─ Posso ficar usando a máscara-de-ferro?
─ Claro! Nós somos uma dupla: o incrível Borracheiro e seu fiel ajudante mirim, o Máscara-de-Ferro.


─ Você não vai dizer nem “oi”?, disse ela.
─ Não sei se devo, respondeu.
Ela estava no corredor que leva à sala do cinema, conversando com uma conhecida atrás do balcão de bombons.
─ Eu adoro este lugar...
─ Pena que é a última vez que vem à Piripiri, respondeu.
Agora estavam de mão dadas, caminhando numa cidadezinha do interior, onde costumavam passar os feriados...
Ele acordou. Isso o angustiava. Queria parar de sonhar e simplesmente dormir. Apenas dormir, sem sonhar...


Joaquim chegou com o mesmo embrulho que, tão cuidadosamente, Cleiton havia carregado até a casa dela. Um embrulho que cabia no bolso.
─ Ela pediu que devolvesse...
Recebeu a contra-gosto.
─ ...Sequer abriu...
─ Disse que leu o bilhete e imaginou o que havia dentro... Não quis...
─ Ela não entendeu nada... Não era um pedido, era simplesmente um presente de despedida, uma prova de que eu acreditava em suas promessas, de que o ano que entra seria...
Calou-se. Jogou o embrulho dentro de uma caixa de sapato suja debaixo da cama. Voltou para o fundo da rede...
─ Ela ainda disse que tu não devia procurar ela mais, não... Que está dificultando as coisas pros dois...
─ Pros três: eu, ela e o outro cara...
─ Você sabe que isso não teve nada a vê com o fim de vocês, certo?
─ ...
─ Esse outro cara. Nada a ver. Certo, Cleiton?
─ ...Certo.

A madrugada foi cheia de demônios.

Ao amanhecer, a oficina era um caos. O que não fora destruído estava espalhado de um canto a outro. O corpo jogado de costas, encostado ao pneu do maverick, a Nancy. Algumas garrafas espalhadas pelo chão. Parecia o fundo do poço.
─ Sabia que’u não deveria ter te deixado só, disse Joaquim. Quando saí ontem, tudo me dizia para ficar por aqui...
─ Eu não consegui, Joaquim...
─ O quê?
─Destruir a porra deste carro!
Deu um soco na lataria da porta. De fato, era a única coisa intocada no local.
─ Todos os dias e noites que eu estava aqui, com você e o carro... As escolhas que me afastaram dela... Ela nunca se sentiu à vontade aqui, com a gente e nosso sonho, se sentia à parte. Eu não consegui trazê-la conosco, nem ficar com ela...
─ Não dependia só de ti, cara. Ela também não conseguiu chegar... Da minha parte...
Joaquim olhou para um lado e para o outro, encontrou e pegou um pesado cano de aço com um joelho de encanamento para tubulação numa das extremidades, levantou com força e golpeou com brutalidade o capô do carro, sem coração. Cleiton assustou-se e levantou de um salto, incrédulo.
─ Da minha parte, como estava dizendo: me desculpe. Nossos sonhos distantes e incomuns tem parte nisto, nessa merda toda.
Jogou o cano sob seus pés, que rolou, ecoando pela oficina. As mãos de Cleiton pousaram sobre ele. Agarrou-o. Não se tratava de loucura, era ódio puro, canalizado. Coitada da Nancy, nem pôde ver o quê a atingiu...

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