Seguindo a linha de publicações que farei nas próximas semanas, trago a segunda entrevista que fiz durante o o 30º Salão Internacional de Humor. Dessa vez, minha conversa com Klevisson Viana, um dos convidados que esteve em Parnaíba durante o evento. Gravamos no dia 14 de novembro de 2013.
Nossa conversa é sobre as origens dele, sobre políticas culturais e sobre o Salão de Humor. Aproveitem!
Bernardo Aurélio: Primeiro, vamos fazer as
apresentações, como você pode se apresentar?
Klevisson
Viana: Eu nasci na zona rural, no município de Quixeramobim, que é importante
na região central do Estado do Ceará, sendo que o acesso para a cidade de
Canindé era bem mais viável do que o propriamente para a sede do município de
Quixeramobim. Geralmente são municípios muito grandes e a zona rural maior
ainda e eu vivi na zona rural e só vim ter contato com televisão aos oito anos
de idade e com as histórias em quadrinhos também, mas de certa forma eu já
tinha um interesse muito grande pelo desenho: uma coisa que já nasceu comigo, porque
eu ia visitar um primo do meu pai que era vaqueiro e as paredes do alpendre da
casa dele eram cheias de cenas, de desenhos, ele tinha por hábito registrar
cenas do cotidiano dele, como os homens primitivos faziam nas cavernas. A vida
cotidiana dele com o gado ele registrava nas paredes da casa dele. Era uma
coisa muito interessante isso, e aquilo era muito marcante pra mim. Ele era uma
pessoa muito querida na comunidade e esse dom, esse talento que os sertanejos,
as pessoas de lá, não compreendiam muito bem, mas aquilo alí já tocava meu
coração muito cedo. Eu despertava para aquelas imagens.
A minha mãe fazia um trabalho de
bordado e ela pegava aquelas linhas de várias cores e eu achava bonito aquela
mistura. Era uma coisa meio como Van Gogh, que para pintar as telas dele,
pegava novelos e mais novelos e misturava tudo para se inspirar. As cores do
Van Gogh vem dos novelos de fios, como ele pinta, como ele descreve as cenas...
Então, tem muito dessa coisa, essa minha primeira infância na zona rural foi muito
marcante porque foi muito lúdica e tomando banho de barreiro e andando em lombo
de cavalo sem cela, essas coisas, né? Sendo que quando eu tinha 3 para 4 anos
chegou um grupo de mais ou menos 20 vaqueiros encourados e aquilo foi uma cena
muito marcante. Era como se fosse pessoas de outro mundo que estavam chegando
ali. Era aquela coisa do cavaleiro medieval, que meu pai gostava de contar
histórias e, apesar de ser um homem simples e agricultor, ele tinha uma leitura
muito vasta. Lia de tudo e lia sempre muito pra gente. Ele acabou, sem intenção
nenhuma, formando uma família de leitores, dando exemplos. Até hoje ele é
leitor. Largou a agricultura porque a saúde já não é mais tão boa, mas ele
continua leitor. Isso influenciou muito.
Em 1980, eu tinha 7 anos, e nós
fomos embora pro Canindé porque eu tinha mais 4 irmãos e nós tínhamos
necessidade de estudar, e a escolinha rural lá só tinha até o terceiro ano, aí
não teria pra onde seguir. Lá foi um
choque cultural muito grande, porque a gente acostumado a morar numa casa, onde
o vizinho mais próximo ficava a 1km de distância e, de repente, você vai murar
numa cidade com quase 100mil habitantes... E outra coisa, quando chegava o
período dos festejos de São Francisco a cidade era milhões de visitantes, gente
de toda parte do Brasil. Caldeirão cultural. Sem precedentes. Penitentes.
Curiosos. Turistas. Então, eu cresci dentro dessa efervescência. Quando chegava
nesse período, vinha os vendedores de folhetos e de toda sorte de bugiganga que
camarada possa imaginar que exista na face da Terra. Se torna uma grande
Medina, né? Um grande mercado. Aquilo ali foi muito importante.
Já em Canindé eu passei a me
juntar com outros meninos que gostavam de desenhar e, na escola mesmo, eu usei
muito isso pra ganhar merenda. Às vezes, o cara tinha dinheiro pra comprar
merenda e dizia: “Desenhe aqui o Popeye pra mim que eu lhe dou um lanche
(risos). Desenhe o Superman que eu lhe dou um lanche!” Então os meus primeiros
cachês foram esses.
Até quando foi em 1985, por aí,
eu passei a desenhar com mais frequência. Quando foi em 1988 meu irmão mais
velho criou uma revista, um fanzine chamado “Tramela”, aí eu estreei nesse
fanzine com uma tira, que era de um pedinte, chamado Negativo. Aí, quando o
fanzine acabou, eu não me conformei e criei um só pra mim, chamado Arapuca, que
teve várias edições, até uma em offset.
O Arapuca abriu muitas portas, já naquela época eu ficava muito atento
a publicações como o PQP, que era um jornal importante na região norte, o
jornal da Puta Que Pariu, que publicava muito quadrinho, cartum, humor. Tinha
também o Torre de Babel, que era um jornal dos mineiros, o pessoal do Planeta
Diário, do Casseta Popular, da revista Mad, tudo isso aí influenciou bastante.
E já nos anos oitenta eu gostava muito de quadrinhos do Daniel Azulay, dos quadrinhos do Eli
Barbosa e, principalmente aquela equipe dos grandes cartunistas que trabalhavam
nos Trapalhões, como Cárcamo, o Bira Dantas... Então, aquilo alí foi o que
forjou, em parte, o que eu sou hoje. Foi muito importante para minha formação.
E a Mad também, que foi uma descoberta tardia, mas que eu passei a comprar e
esperar ansiosamente todo mês nas bancas. Quando você mora numa cidade que só
tem uma banca de revista, se a revista não vem, o cara esquece de trazer, é uma
tragédia, você não tem outra opção. Às vezes a gente até escrevia para a
editora, para comprar, e vinha pelo correio.
Aí eu criei a Arapuca e comecei a produzir meus próprios trabalhos sem
depender de ninguém pra publicar, aí ela foi tomando forma. Quando eu tava com
16 anos, sendo o irmão mais novo, eu ganhava dinheiro com fanzine. Eu fazia
200, 300 cópias e botava debaixo do braço e ai nas repartições públicas, nas
agências bancárias e vendia aquele produto ali e era uma coisa viável pra mim.
Porque a família batia muito de frente, meu pai queria que eu trabalhasse no
comércio, aquela pressão, mas quando ele viu que eu tava ganhando alguma coisa
ele recuou e me deixou à vontade. Eu entendo a preocupação, porque meu pai é
uma pessoa que passou dos 70 anos mas ele passou a vida inteira doente, então
ele pensava sempre assim: “se eu faltar, você tem que saber se virá”. Então,
depois ele ficou tranquilo quando percebeu que você ganha alguma coisa e pode
bancar sua própria despesa... Engraçado que essas pessoas doentes vivem muito
porque elas passam a vida inteira cuidando da saúde, né? Quando os muito
saudáveis morrem de repente! (risos)
BA: Quando você percebeu que era um
profissional dessa área, dos desenhos e publicações?
KV: Eu
sempre quis ser profissional. Nunca me vi como amador. Diferentemente de muitas
pessoas que mesmo quando se profissionalizam continuam com a cabeça de amador.
Eu sempre pensei a coisa profissionalmente. Pra mim, a arte é aquela que se
autofinancia. Essa coisa de que o Estado tem de ficar sempre colocando dinheiro
é... Eu tava lendo uma entrevista com o Fagundes, numa revista da TAM, e ele
tava dizendo que “eu faço sempre questão de ter lucro ou prejuízo, mas não vou
atrás de patrocinador, porque se eu for atrás de patrocinador o meu trabalho
cai de qualidade, porque a maioria dos profissionais dizem, isso aqui já tá
pago mesmo, eu faço de qualquer jeito”. Tá entendendo? Só pra prestar contas.
Mas quando você tem que agradar a simpatia do público e conseguir êxito no que
você tá fazendo, aí você tem que se virar, tem que fazer o melhor que você é
capaz de fazer. Nesse aspecto, eu não tiro as razões dele, porque o incentivo
nessas leis pode lhe ajudar muito, mas eu vejo também que o dinheiro é muito
desperdiçado por isso. Porque excelentes profissionais pegam dinheiro, mas como
é dinheiro público ele não se esforça pra fazer uma coisa melhor. Isso não é
regra, né? Tem aquelas pessoas que utilizam o dinheiro muito bem e, às vezes,
com dinheiro público, chega a fazer milagre. Mas eu acho que se você consegue
fazer um trabalho que se sustente, é melhor ainda, e essa é apolítica que eu
levo até hoje. Tenho uma editora desde 1995 e meu trabalho não tem subsídio
público, e se mantém. Acho isso bacana.
BA: Que tipo de publicações são?
KV: Eu publico
literatura popular e histórias em quadrinhos também. Publiquei um álbum muito
bonito do Sérgio Lima, um desenhista importantíssimo daquela geração do Eugênio
Colonesse, do Jaime Cortez. Então, o Sérgio Lima morreu na década de 1970 e eu
peguei uma HQ dele que havia sido publicada precariamente em papel jornal,
negociei com a editora que era proprietária dos direitos autorais, restaurei
todinho o trabalho do cara e publiquei em um álbum de luxo: O Pavão Misterioso.
Só depois eu
vim saber que o Sérgio Lima foi o primeiro cartunista do Brasil que se vestia
de mulher, antes do Laerte.
BA: E como você começou a participar de
Salões pelo Brasil?
KV: Eu
comecei a participar de Salões porque nessa época, por volta de 1987, 88, eu
peguei um jornal do PQP e eu vi o anúncio do Salão de Humor do Piauí (não era
nem internacional). Aí eu fiquei doido pra conhecer esse Salão. Aí tinha um
senhor lá que era o professor, muito amigos dos alunos e tal, muito amigo da
gente, ele gostava de tá incentivando a gente a desenhar, e às vezes até dava
dinheiro pra gente comprar o papel e a tinta, era um mecenas assim, dentro das
possibilidades dele ele tava metendo a mão no bolso. Por sinal, ele chama-se
Laurismundo e foi um dos fundadores do Salão de Humor de Canindé. Ele tinha um
carro velho, botou gasolina, encheu de menino e a gente veio pra Teresina, pro
Salão de Humor, com a cara e com a coragem. Aí nós encontramos o Albert Piauhy,
um cara extremamente carismático, uma pessoa que, como todo ser humano, tem defeitos,
mas ele nos acolheu tão bem, aquilo ali foi tão bom pra gente, tão positivo,
porque se a gente tivesse chegado ali e não tivesse tido a menor atenção, eu
acredito que muitos ali não teriam ido adiante, teriam desistido e no entanto
nós fomos bem acolhidos. Ele não tinha grana pra botar em Hotel, então ele nos
botou na casa da mãe dele, tá entendendo? A gente tinha um cômodo lá. De certa
forma eu sou um filhote do Salão de Humor do Piauí, porque eu tava começando e
o Salão foi muito importante pra mim.
Aliás, antes disso, tinha caído
em minhas mãos um catálogo do Salão de Humor de Pernambuco. Aí eu disse assim:
“Rapaz eu vou fazer um Salão de Humor em Canidé”. Aí juntei os meninos tudim
que sabiam desenhar, aí tinha uma casa velha lá, nós fizemos uma galeria lá,
chamamos de Salvador Daqui, em homenagem a Salvador Dali que tinha acabado de
morrer. Aí nós organizamos a “Primeira Mostra Canideense de Humor”. Quando foi
no dia da abertura, nós havíamos mandado releases pros jornais, quem aparece
lá? O Mino, o Albert Piauhy e o José Elias. Aí eles viram a mostra e nos
convidaram para vir o Salão de Humor do Piauí, aí nós viemos nesse carro velho
e quando chegamos aqui ele hospedou a gente, muito bem hospedados. Então isso
foi um ponto muito bacana, positivo.
Eu trazia uma pasta de desenhos e lembro que esse Salão foi muito
impressionante a quantidade de artistas incríveis. O cara trouxe bem uns 60
grandes nomes do Cartum nacional. Lembro que tinha uma mesa assim, gigantesca
no Clube dos Diários, só com a nata do cartum nacional. Os maiores nomes
estavam ali: Ziraldo, Jaguar, Fortuna, os Carusos, Jayme Leão, Jô Oliveira, só
cara fera! Aí eu cheguei ali com a pasta de desenhos, encabulado pra caramba,
sentei perto do Ziraldo, mostrei os desenhos pra ele e mineiro é assim: dá
tchau com a mão fechada. Uma coisa horrível. Atravessam o canal da mancha com
uma sonrisal intacta na mão. Mas Ziraldo foi muito generoso, porque ele pegou
minha pasta e olhou desenho por desenho e comentava onde podia melhorar. Aquilo
ali foi extremamente importante, porque ele, um cara já lendário nas histórias
em quadrinhos e no cartum, parar 60 minutos ou mais para dar atenção a uma
pessoa que está começando, eu acho que aquilo ali foi muito importante. Então
tenho um carinho muito grande por ele e pelo Albert, porque me acolheram dentro
da profissão, do meio. O Mino também, do Pasquim, tenho a revista dele até hoje.
Aí quando foi no início de 90, passou um primo da minha mãe lá em casa,
um senhor já, e ele viu meus desenhos e ficou perturbado. Achou que tinha por
obrigação de fazer alguma coisa por esse menino. Ele foi pra Fortaleza,
conversou com o filho dele que trabalhava numa rede de escolas particulares e
conseguiu uma vaga pra mim na gráfica do Colégio Capital e eu fui lá, trabalhar
ilustrando apostilhas. Era um trabalho extremamente sacal, porque as vezes você
fazia ilustrações mas também fazia gráficos, desenhar mapas, que eu não gostava
de fazer. Trabalhei um mês e pouco, e era uma exploração muito grande, não
pagava nem um salário, eu ainda tinha que pagar o almoço, e o transporte era do
meu bolso e morava muito distante, na periferia da periferia.
Aí um dia eu disse assim: “Eu vou lá no jornal O Povo”. Liguei pro
trabalho e disse: “Eu não vou trabalhar hoje não porque amanheci doente e tal”.
Dei uma desculpa esfarrapada. Fui bater lá no jornal O Povo. Eu tava passando
na praça e, parece a providência, né? Na hora que você está tão desejoso de uma
coisa que parece que todo o universo conspira pra dar certo. Na praça eu
encontro com o Valber Benevides, um grande caricaturista, disse assim: “olha
rapaz, José do Egito, lá no jornal O Povo, precisa de um desenhista. Vá lá
conversar com ele”. Aí eu fui, cheguei na editoria de arte do jornal, entrei,
mostrei a pasta de desenhos pra ele Aí ele pegou os desenhos e saiu espalhando
pra jornalistas. Eu fiquei meio assim angustiado. Demorou uns 10 minutos e ele
disse: “Bora aqui na sala do editor”. O editor disse assim: “Você quer
trabalhar aqui?”. Eu disse: “Quero”. Ele disse: “Aqui eu só posso pagar tanto.
Se quiser, bem, se não quiser...”. Eram quatro salários mínimos (risos).
BA: Tu tinha quantos anos?
KV: Eu tinha
17 anos, nasci no final de 1972. Menino, comecei a ganhar 4 salários mínimos. Meu
pai veio do interior pra assinar minha carteira.
BA: Costumam comparar o Salão de Humor do
Piauí com o de Piracicaba. Afinal, qual o mais importante?
KV: Eu
conheço o Salão de Piracicaba, é muito bonito, mas eu achei um pouco elitizado,
ao passo que o Salão do Piauí, nos seus bons tempos, era o Salão mais lindo do
mundo. Porque era no meio de uma praça, democrático, mesmo aquelas pessoas que
não eram habituadas com arte iam passando na rua e viam um desenho bonito,
paravam pra olhar. E o Salão foi responsável por revelar dezenas de desenhistas
bons aqui no Piauí, criou uma geração de bons ilustradores e desenhistas. Foi
uma coisa espetacular o que o Salão fez pelo estado do Piauí. Hoje, que ele
está numa situação delicada, depois de passar por tantas tempestades, está
sobrevivendo. Lógico que o tempo mudou e o Salão não podem mais permanecer
naquele formato original, eu até entendo em certo ponto o Albert, ele é um
visionário. Às vezes você pensa que o cara está errando [sobre o fato de tirar
o Salão de Teresina e trazer para Parnaíba], mas ele pode estar um passo à
frente e o tempo prova que ele está com a razão. Eu tava falando com ele ontem
e me disse que não tem mais interesse em mostra competitiva, quer fazer salões
com mega exposições de grandes artistas convidados, tá entendendo? Eu acho isso
aí bacana porque as mostras competitivas, de certa forma, estão um pouco
desacreditadas, e são sempre as mesmas pessoas que ganham. O cartunista, como
qualquer outra categoria, é meio coorporativista, acaba votando no colega dele.
É difícil julgar isso, porque os desenhos são todos assinados e você conhece
todo mundo, acaba convivendo com todos eles. Acaba puxando a brasa pra sua
sardinha, não tem nem escapatória. Então, eu acho que essa coisa da mostra
competitiva não é tão necessária quanto se pensa. Se você faz um grande evento,
com apresentações, oficinas, palestras, um grande encontro do humor, com
excelentes exposições que você possibilite que o cara aprenda com elas, acho
que isso pode dar uma contribuição muito maior. É um novo formato. Um novo
conceito de Salão, porque, normalmente a mostra competitiva prevalece. Eu acho
que tem margem, espaço para um evento nessa natureza. Você economiza tempo e
dinheiro. Porque você não paga prêmio, não gasta com correios, não levará tanto
tempo pra selecionar e julgar. Tudo isso é custo. Acho que é como nós fizemos
em Canindé: uma mostra.
BA: Quantas vezes você veio ao Salão do
Piauí?
KV: Rapaz,
não tenho esse dado. Vinha com muita frequência, vim muitas vezes. E raro são
os anos que não vinha. Quando não vim tinha de acompanhar pela imprensa. Nos
últimos 10 anos foi quando parei um pouco, faltei umas três vezes, porque o
Salão entrou em declínio e isso dificultou. Porque o Salão mudou de
coordenadores algumas vezes, com alguns a gente se dava muito bem, outros nem
tanto. Como minha ligação era mais com o Zé Elias e com o Albert, quando eles
se afastavam um pouco eu acabava me afastando também.
BA: Qual a
melhor lembrança do Salão?
KV: Ter
conhecido o Fortuna, pra mim é uma pessoa que não teve o reconhecimento
merecido, pela dimensão e grandiosidade do trabalho dele. Ele era uma pessoa
muito calado, na dele... Ziraldo nem se fala, porque é um patrimônio nacional,
não cartunista mais famoso do que Ziraldo. Talvez só Maurício, na fama, sendo
que o público de Ziraldo é muito mais diversificado, que pega desde a criança
ao adulto e o Mauricio tem um foco na criança e no adolescente. Também tive o
prazer de conhecer outros artistas, como João Cláudio Moreno, quando ele não
era nem humorista, ele é meu amigo desde 88, quase todo dia a gente se fala
pelo facebook. E essa ligação profunda que tenho com o Estado do Piauí. Acho
assim: primeiro lugar o Ceará e segundo lugar o Piauí. E eu digo sempre, quando
vejo as pessoas falando mal de Teresina, falando que é quente: que o calor de Teresina
é proporcional ao calor humano, porque não tem povo melhor, mais humilde e
hospitaleiro do que o do Piauí. As pessoas são sempre muito agradáveis, gentis.
Acho que o Piauí tem muito o que ensinar ao resto do Brasil. Em termos
culturais nem se fala, porque aqui a gente tem uma escola fantástica de
escultura em madeira e barro, os santeiros, fabulosos. A escultura no Piauí é
uma das escolas mais fortes. Um dia eu cheguei no mercado tava um cara fazendo
uma escultura lindíssima, e ele tava todo empacotadinho, todo arrumadinho com
uma roupinha branca, manga comprida, com o “canivetezim” na mão, uma toalha
forrando as pernas Eu disse: “O senhor trabalha desse jeito, todo “arrumadim?”.
Ele disse: “É! Eu não me sujo.” O cara era um puta mestre.
BA: E qual a pior lembrança?
KV: Uma
lembrança ruim e ao mesmo tempo cômica. É que o Lapi uma vez foi jurado e tinha
um cartunista lá de Alagoas, o Manuel Viana, que veio para o Salão e falou
muito que era rico que tinha ganho na loteria não sei quantas vezes, e que
tinha comprado uma fazenda e colocado os paus da fazenda tudo em formato de
lápis e quando foi à noite, o Manuel Viana tava concorrendo e o Lapi era um dos
jurados. Só por sacanagem o Lapi disse assim: “Eu não lhe dou o prêmio não
porque você já é rico”. Aaah, meu amigo,
saíram os dois nos tabefes em frente ao Theatro 4 de Setembro. Foi Biratan
Porto quem apartou a briga. Sabe o que Manuel Viana fez quando a briga foi
apartada? Correu no hotel, pegou a mala dele e foi embora no mesmo instante.
Nunca mais veio ao Salão.
Muita gente
faz humor, mas nem todos tem senso de humor.
BA: Qual a importância do Estado, dos
governos, para a realização do Salão?
KV:É muito
importante porque, mesmo que entre dinheiro da iniciativa privada, o governo tem
que bancar uma parte. O Salão é um evento que contribui, principalmente, para a
educação do povo. Eu vejo com muita tristeza essa escalada da violência no país
e o governo investindo cada vez mais em armamentos e o povo gastando o que não
tem com segurança e todo mundo apavorado. Como é que você vai combater fogo com
fogo? Você vai combater violência com mais violência? Se as pessoas estão
violentas você vai bater mais ainda nas pessoas? Eu vejo o seguinte: o policial
é maltratado dentro do quartel, ele é cobrado, quando chega no cidadão comum
ele faz a mesma coisa. O mesmo tratamento que ele recebeu dentro do quartel ele
quer dar ao cidadão comum, ou então quando pega um bandido, desconta nele. Aí o
bandido pega o cidadão, que não tem nada a ver com nada, e trata “ôh, seu
vagabundo!”. Quer dizer, a inversão dos papeis e dos valores. Isso é terrível.
Enquanto o Estado não
compreender que a educação, a cultura e o esporte é a chave pra livrar a gente
dessa situação terrível que a gente tá vivendo, a gente não vai sair do canto e
a tendência é só piorar. E eu acho que a saída está, principalmente na cultura.
Você acha que uma pessoa que entra para uma escola de dança ou uma orquestra
ele vai virar marginal? Dificilmente! Um cara que entra numa escola de pintura,
de artesanato, que encontra um meio pra viver dignamente do seu trabalho, que
bota a autoestima dele lá pra cima, acho que ele vai se envolver com coisas
negativas? Não vai, cara! A arte é a chave, o caminho.
Então, um evento desse é de uma
importância social fantástica. Quando ele traz para uma cidade como Parnaíba,
uma cidade bacana, de porte médio, mas que não acontece nada, eu acho que pode
ser um caminho pro Salão permanecer.
Eu acho que o Salão não tem
recebido mais atenção dentro da cidade de Teresina porque acabou se tornando
uma coisa comum, é tipo um parente próximo, que tá todo dia ali e você não dá
mais o devido valor que ele merece, afinal de contas, o cabra já completou
trinta anos e já pode se virar sozinho (risos).
BA: Depois de 29 anos o Salão mudou de
cidade. Quais são suas impressões sobre isso?
KV: Eu acho
que o Salão está tímido, mas é um caminho, está procurando se renovar pra não
morrer. Isso eu vejo com excelentes olhos. Também não era de se esperar uma
mega participação popular se é o primeiro [em Parnaíba]. Às vezes também há
falha na divulgação, mas também há pessoas que não querem sair de sua zona de
conforto para irem ver nada. Mas eu acho que o Salão tá no rumo certo, se ele
quiser se manter ele tem que procurar renovar, se modificar, uma vez que o
formato que havia sido trabalhado esses anos todos já não estava mais surtindo
o mesmo efeito, tava se tornando uma coisa repetitiva. Tem que procurar outros
caminhos mesmo. Eu achei meio tímido mas tem muitos méritos nessa nova
proposta.
BA: O Albert criou uma fundação para gerir
o Salão, tirando-o do Estado. Que acha sobre isso?
KV: A
criação da Fundação Nacional de Humor era pra ter acontecido desde o primeiro
momento. Acho que o Estado não tem condição de gerir um certame dessa natureza,
porque mudam os governantes e os gestores com muita frequência e muitas vezes
aquele que entra não tem o mesmo entusiasmo de manter o evento naqueles mesmos
moldes. Lembro quando o José Elias Arêa Leão era o diretor da FUNDAC o Salão
era um mimo em todos os aspectos, nada faltava para o Salão. O Albert era
aquele cara, o curador que imaginava coisas mirabolantes e o Zé Elias ia atrás
tentando encontrar a grana para viabilizar esses sonhos. O Albert tinha a
cabeça de artista e o Zé Elias era o gestor. Então, esse braço faltou para o
Salão. Porque as pessoas envelhecem, vão perdendo o entusiasmo... O Zé Elias tá
velhinho, abandonou há muito tempo o Salão. Quando o Zé tava junto, que ele era
o braço político do Salão, não houve nenhum Salão no Brasil maior que o do
Piauí, nessa fase de ouro. Mas o Salão pode voltar a experimentar outros
momentos tão bons quanto esses. Depende de perseverar, de continuar na batalha.
BA: Como funciona a relação de uma
iniciativa privada, que é a Fundação Nacional de Humor, gerir dinheiro público
para realizar um evento público como o Salão?
KV: O Estado
se mete nas coisas com o pretexto de ajudar e, às vezes, até atrapalha, como
por exemplo: tem um grupo tradicional lá no Ceará chamado Penitentes, lá em
Barbalha, que são beatos, numa comunidade que já tem mais de 100 anos. Aí o
Estado pega um elemento daquela coletividade e transforma em Mestre da Cultura.
Você já causa um mal-estar, porque outros mereciam também e não recebem o mesmo
reconhecimento, e aquele que recebe o reconhecimento fica se sentindo em um
patamar mais elevado, superior aos demais, o que vai causando atritos. Ao invés
de agregar acaba desagregando aquele grupo. Tanto que o Estado acabou
reconhecendo seu erro e agora dá o prêmio para o grupo todo, reconhecendo-o como
um tesouro vivo da cultura, o que é mais sensato.
Um projeto com esse do Salão, agora que nasceu de novo, mas sempre tem
as coisas que precisam ser ajustadas, na próxima edição já pode ser melhorado
tal ponto porque isso aqui não funcionou, elimina umas coisas, cria outras, e
vai ajustando até chegar a um ponto que a máquina fique bem azeitadinha pra
poder ir adiante. Mas o poder do Estado na cultura é fundamental desde que os
gestores não se intrometam tanto no trabalho dos produtores. Porque esse negócio
de você dizer como o produtor tem de fazer seu trabalho é de “lascar”. Ou você
dá o dinheiro ou você não dá, cara. Porque nem sempre o Estado está qualificado
ou tem pessoas corretas pra estarem dando essa opinião, no entanto, eles
decidem o que será apoiado e o que não vai, e nem sempre aquelas pessoas que
estão lá são imparciais, às vezes elas estão favorecendo alguém que é colega de
alguém, que é filho de fulano, tá entendendo? Por vias tortas...
BA: Qual é a melhor maneira do Estado
selecionar e decidir o que será apoiado?
KV: Eu ainda
acho que os editais é a maneira mais democrática. Porque eu lembro que antes
dos editais, os pequenos produtores culturais sequer tinham acesso ao
Secretário de Cultura Marcavam uma reunião e jamais eram atendidos e quando
levavam uma pautazinha mínima de reivindicações, eles diziam logo que não
tinham dinheiro, enquanto pra outras coisas sempre havia dinheiro. Isso
acontece muito nas pequenas cidades, por exemplo: o cara traz uma banda pra cá
e paga 150mil reais. O cara esquece que com 150 mil reais o cara fomenta
durante o ano inteiro grupos de teatro, dança, pintura... Tá entendendo? Ele
faria uma verdadeira revolução dentro do município dele com essa mixaria, que
ele gasta em poucas horas de um show, muitas vezes com um grupo que se
apresenta e se você perguntar 15 minutos pra um elemento daqueles qual o nome
da cidade que ele se apresentou ele não se lembra mais. Ele vai embora e não deixa nada para aquele
município.
Há o interesse muito grande dos
gestores por coisas caras. Por que que não falta dinheiro para o cinema, uma
arte tão cara? Porque num filme de R$3milhões o cara pode desviar R$500mil.
Agora no projeto de um livro, que interesse é que tem um gestor corrupto na
impressão de um livro que custa R$15mil? O máximo que ele vai conseguir tirar
dali é 3 contos! Então ele quer é projetos grandes, mirabolantes, que envolva
grandes montantes que ele possa tirar o dele ali sem ser percebido.
E a lei do Mecenato no Ceará?
Rapaz é uma lei que precisa passar urgente por umas mudanças. Porque você é
aprovado na lei e recebe uma carta de captação de R$100mil e eles lhe dão 90
dias pra captar. Esse tempo, às vezes, só a empresa que você pretende que lhe
apoie leva para analisar seu projeto. Aí acaba seu prazo e o Estado publica no
diário oficial que o Estado deu R$100mil pra instituição tal fazer tal coisa.
Não deu porra nenhuma! Porque se o Estado quisesse ajudar de verdade ele
arrecadava esse dinheiro das empresas e já destinava logo à cultura, sem
precisar que o produtor cultural vá com o pires na mão de empresa em empresa passar
por essa humilhação e, muitas vezes não dá certo. Se o Estado tem o dispositivo
pra fazer isso, automaticamente. Essa burocracia é tão grande e é criada para
que seu projeto não dê certo. 90% das iniciativas naufragam, que é pra esse
dinheiro ir para o Estado e não para a cultura. Eles ficam posando: “Olha!
Destinamos R$5milhões para a cultura”, sendo que o que é captado ali não dá nem
R$1milhão. Nós mesmos não conseguimos captar um projeto de R$100mil, perdemos a
carta de captação.
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