quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Entrevista com Klevisson Viana

Seguindo a linha de publicações que farei nas próximas semanas, trago a segunda entrevista que fiz durante o o 30º Salão Internacional de Humor. Dessa vez, minha conversa com Klevisson Viana, um dos convidados que esteve em Parnaíba durante o evento. Gravamos no dia 14 de novembro de 2013.



Nossa conversa é sobre as origens dele, sobre políticas culturais e sobre o Salão de Humor. Aproveitem!



Bernardo Aurélio: Primeiro, vamos fazer as apresentações, como você pode se apresentar?
Klevisson Viana: Eu nasci na zona rural, no município de Quixeramobim, que é importante na região central do Estado do Ceará, sendo que o acesso para a cidade de Canindé era bem mais viável do que o propriamente para a sede do município de Quixeramobim. Geralmente são municípios muito grandes e a zona rural maior ainda e eu vivi na zona rural e só vim ter contato com televisão aos oito anos de idade e com as histórias em quadrinhos também, mas de certa forma eu já tinha um interesse muito grande pelo desenho: uma coisa que já nasceu comigo, porque eu ia visitar um primo do meu pai que era vaqueiro e as paredes do alpendre da casa dele eram cheias de cenas, de desenhos, ele tinha por hábito registrar cenas do cotidiano dele, como os homens primitivos faziam nas cavernas. A vida cotidiana dele com o gado ele registrava nas paredes da casa dele. Era uma coisa muito interessante isso, e aquilo era muito marcante pra mim. Ele era uma pessoa muito querida na comunidade e esse dom, esse talento que os sertanejos, as pessoas de lá, não compreendiam muito bem, mas aquilo alí já tocava meu coração muito cedo. Eu despertava para aquelas imagens.
                A minha mãe fazia um trabalho de bordado e ela pegava aquelas linhas de várias cores e eu achava bonito aquela mistura. Era uma coisa meio como Van Gogh, que para pintar as telas dele, pegava novelos e mais novelos e misturava tudo para se inspirar. As cores do Van Gogh vem dos novelos de fios, como ele pinta, como ele descreve as cenas... Então, tem muito dessa coisa, essa minha primeira infância na zona rural foi muito marcante porque foi muito lúdica e tomando banho de barreiro e andando em lombo de cavalo sem cela, essas coisas, né? Sendo que quando eu tinha 3 para 4 anos chegou um grupo de mais ou menos 20 vaqueiros encourados e aquilo foi uma cena muito marcante. Era como se fosse pessoas de outro mundo que estavam chegando ali. Era aquela coisa do cavaleiro medieval, que meu pai gostava de contar histórias e, apesar de ser um homem simples e agricultor, ele tinha uma leitura muito vasta. Lia de tudo e lia sempre muito pra gente. Ele acabou, sem intenção nenhuma, formando uma família de leitores, dando exemplos. Até hoje ele é leitor. Largou a agricultura porque a saúde já não é mais tão boa, mas ele continua leitor. Isso influenciou muito.
                Em 1980, eu tinha 7 anos, e nós fomos embora pro Canindé porque eu tinha mais 4 irmãos e nós tínhamos necessidade de estudar, e a escolinha rural lá só tinha até o terceiro ano, aí não teria pra onde seguir.  Lá foi um choque cultural muito grande, porque a gente acostumado a morar numa casa, onde o vizinho mais próximo ficava a 1km de distância e, de repente, você vai murar numa cidade com quase 100mil habitantes... E outra coisa, quando chegava o período dos festejos de São Francisco a cidade era milhões de visitantes, gente de toda parte do Brasil. Caldeirão cultural. Sem precedentes. Penitentes. Curiosos. Turistas. Então, eu cresci dentro dessa efervescência. Quando chegava nesse período, vinha os vendedores de folhetos e de toda sorte de bugiganga que camarada possa imaginar que exista na face da Terra. Se torna uma grande Medina, né? Um grande mercado. Aquilo ali foi muito importante.
                Já em Canindé eu passei a me juntar com outros meninos que gostavam de desenhar e, na escola mesmo, eu usei muito isso pra ganhar merenda. Às vezes, o cara tinha dinheiro pra comprar merenda e dizia: “Desenhe aqui o Popeye pra mim que eu lhe dou um lanche (risos). Desenhe o Superman que eu lhe dou um lanche!” Então os meus primeiros cachês foram esses.
                Até quando foi em 1985, por aí, eu passei a desenhar com mais frequência. Quando foi em 1988 meu irmão mais velho criou uma revista, um fanzine chamado “Tramela”, aí eu estreei nesse fanzine com uma tira, que era de um pedinte, chamado Negativo. Aí, quando o fanzine acabou, eu não me conformei e criei um só pra mim, chamado Arapuca, que teve várias edições, até uma em offset.
O Arapuca abriu muitas portas, já naquela época eu ficava muito atento a publicações como o PQP, que era um jornal importante na região norte, o jornal da Puta Que Pariu, que publicava muito quadrinho, cartum, humor. Tinha também o Torre de Babel, que era um jornal dos mineiros, o pessoal do Planeta Diário, do Casseta Popular, da revista Mad, tudo isso aí influenciou bastante. E já nos anos oitenta eu gostava muito de quadrinhos do Daniel Azulay, dos quadrinhos do Eli Barbosa e, principalmente aquela equipe dos grandes cartunistas que trabalhavam nos Trapalhões, como Cárcamo, o Bira Dantas... Então, aquilo alí foi o que forjou, em parte, o que eu sou hoje. Foi muito importante para minha formação. E a Mad também, que foi uma descoberta tardia, mas que eu passei a comprar e esperar ansiosamente todo mês nas bancas. Quando você mora numa cidade que só tem uma banca de revista, se a revista não vem, o cara esquece de trazer, é uma tragédia, você não tem outra opção. Às vezes a gente até escrevia para a editora, para comprar, e vinha pelo correio.



Aí eu criei a Arapuca e comecei a produzir meus próprios trabalhos sem depender de ninguém pra publicar, aí ela foi tomando forma. Quando eu tava com 16 anos, sendo o irmão mais novo, eu ganhava dinheiro com fanzine. Eu fazia 200, 300 cópias e botava debaixo do braço e ai nas repartições públicas, nas agências bancárias e vendia aquele produto ali e era uma coisa viável pra mim. Porque a família batia muito de frente, meu pai queria que eu trabalhasse no comércio, aquela pressão, mas quando ele viu que eu tava ganhando alguma coisa ele recuou e me deixou à vontade. Eu entendo a preocupação, porque meu pai é uma pessoa que passou dos 70 anos mas ele passou a vida inteira doente, então ele pensava sempre assim: “se eu faltar, você tem que saber se virá”. Então, depois ele ficou tranquilo quando percebeu que você ganha alguma coisa e pode bancar sua própria despesa... Engraçado que essas pessoas doentes vivem muito porque elas passam a vida inteira cuidando da saúde, né? Quando os muito saudáveis morrem de repente! (risos)


BA: Quando você percebeu que era um profissional dessa área, dos desenhos e publicações?
KV: Eu sempre quis ser profissional. Nunca me vi como amador. Diferentemente de muitas pessoas que mesmo quando se profissionalizam continuam com a cabeça de amador. Eu sempre pensei a coisa profissionalmente. Pra mim, a arte é aquela que se autofinancia. Essa coisa de que o Estado tem de ficar sempre colocando dinheiro é... Eu tava lendo uma entrevista com o Fagundes, numa revista da TAM, e ele tava dizendo que “eu faço sempre questão de ter lucro ou prejuízo, mas não vou atrás de patrocinador, porque se eu for atrás de patrocinador o meu trabalho cai de qualidade, porque a maioria dos profissionais dizem, isso aqui já tá pago mesmo, eu faço de qualquer jeito”. Tá entendendo? Só pra prestar contas. Mas quando você tem que agradar a simpatia do público e conseguir êxito no que você tá fazendo, aí você tem que se virar, tem que fazer o melhor que você é capaz de fazer. Nesse aspecto, eu não tiro as razões dele, porque o incentivo nessas leis pode lhe ajudar muito, mas eu vejo também que o dinheiro é muito desperdiçado por isso. Porque excelentes profissionais pegam dinheiro, mas como é dinheiro público ele não se esforça pra fazer uma coisa melhor. Isso não é regra, né? Tem aquelas pessoas que utilizam o dinheiro muito bem e, às vezes, com dinheiro público, chega a fazer milagre. Mas eu acho que se você consegue fazer um trabalho que se sustente, é melhor ainda, e essa é apolítica que eu levo até hoje. Tenho uma editora desde 1995 e meu trabalho não tem subsídio público, e se mantém. Acho isso bacana.



BA: Que tipo de publicações são?
KV: Eu publico literatura popular e histórias em quadrinhos também. Publiquei um álbum muito bonito do Sérgio Lima, um desenhista importantíssimo daquela geração do Eugênio Colonesse, do Jaime Cortez. Então, o Sérgio Lima morreu na década de 1970 e eu peguei uma HQ dele que havia sido publicada precariamente em papel jornal, negociei com a editora que era proprietária dos direitos autorais, restaurei todinho o trabalho do cara e publiquei em um álbum de luxo: O Pavão Misterioso.
Só depois eu vim saber que o Sérgio Lima foi o primeiro cartunista do Brasil que se vestia de mulher, antes do Laerte.

Peguei essa foto no face do Kenard Kruel, com a seguinte legenda: "I Salão Nacional de Humor de Fortaleza - 1992 Organizado pelo cartunista cearense Klévisson Viana (cartunistas convidados - Paulo Caruso,Carlos Amorim, Atorres Graphic) - via JBosco Azevedo"

BA: E como você começou a participar de Salões pelo Brasil?
KV: Eu comecei a participar de Salões porque nessa época, por volta de 1987, 88, eu peguei um jornal do PQP e eu vi o anúncio do Salão de Humor do Piauí (não era nem internacional). Aí eu fiquei doido pra conhecer esse Salão. Aí tinha um senhor lá que era o professor, muito amigos dos alunos e tal, muito amigo da gente, ele gostava de tá incentivando a gente a desenhar, e às vezes até dava dinheiro pra gente comprar o papel e a tinta, era um mecenas assim, dentro das possibilidades dele ele tava metendo a mão no bolso. Por sinal, ele chama-se Laurismundo e foi um dos fundadores do Salão de Humor de Canindé. Ele tinha um carro velho, botou gasolina, encheu de menino e a gente veio pra Teresina, pro Salão de Humor, com a cara e com a coragem. Aí nós encontramos o Albert Piauhy, um cara extremamente carismático, uma pessoa que, como todo ser humano, tem defeitos, mas ele nos acolheu tão bem, aquilo ali foi tão bom pra gente, tão positivo, porque se a gente tivesse chegado ali e não tivesse tido a menor atenção, eu acredito que muitos ali não teriam ido adiante, teriam desistido e no entanto nós fomos bem acolhidos. Ele não tinha grana pra botar em Hotel, então ele nos botou na casa da mãe dele, tá entendendo? A gente tinha um cômodo lá. De certa forma eu sou um filhote do Salão de Humor do Piauí, porque eu tava começando e o Salão foi muito importante pra mim.
                Aliás, antes disso, tinha caído em minhas mãos um catálogo do Salão de Humor de Pernambuco. Aí eu disse assim: “Rapaz eu vou fazer um Salão de Humor em Canidé”. Aí juntei os meninos tudim que sabiam desenhar, aí tinha uma casa velha lá, nós fizemos uma galeria lá, chamamos de Salvador Daqui, em homenagem a Salvador Dali que tinha acabado de morrer. Aí nós organizamos a “Primeira Mostra Canideense de Humor”. Quando foi no dia da abertura, nós havíamos mandado releases pros jornais, quem aparece lá? O Mino, o Albert Piauhy e o José Elias. Aí eles viram a mostra e nos convidaram para vir o Salão de Humor do Piauí, aí nós viemos nesse carro velho e quando chegamos aqui ele hospedou a gente, muito bem hospedados. Então isso foi um ponto muito bacana, positivo.
Eu trazia uma pasta de desenhos e lembro que esse Salão foi muito impressionante a quantidade de artistas incríveis. O cara trouxe bem uns 60 grandes nomes do Cartum nacional. Lembro que tinha uma mesa assim, gigantesca no Clube dos Diários, só com a nata do cartum nacional. Os maiores nomes estavam ali: Ziraldo, Jaguar, Fortuna, os Carusos, Jayme Leão, Jô Oliveira, só cara fera! Aí eu cheguei ali com a pasta de desenhos, encabulado pra caramba, sentei perto do Ziraldo, mostrei os desenhos pra ele e mineiro é assim: dá tchau com a mão fechada. Uma coisa horrível. Atravessam o canal da mancha com uma sonrisal intacta na mão. Mas Ziraldo foi muito generoso, porque ele pegou minha pasta e olhou desenho por desenho e comentava onde podia melhorar. Aquilo ali foi extremamente importante, porque ele, um cara já lendário nas histórias em quadrinhos e no cartum, parar 60 minutos ou mais para dar atenção a uma pessoa que está começando, eu acho que aquilo ali foi muito importante. Então tenho um carinho muito grande por ele e pelo Albert, porque me acolheram dentro da profissão, do meio. O Mino também, do Pasquim, tenho a revista dele até hoje.
Aí quando foi no início de 90, passou um primo da minha mãe lá em casa, um senhor já, e ele viu meus desenhos e ficou perturbado. Achou que tinha por obrigação de fazer alguma coisa por esse menino. Ele foi pra Fortaleza, conversou com o filho dele que trabalhava numa rede de escolas particulares e conseguiu uma vaga pra mim na gráfica do Colégio Capital e eu fui lá, trabalhar ilustrando apostilhas. Era um trabalho extremamente sacal, porque as vezes você fazia ilustrações mas também fazia gráficos, desenhar mapas, que eu não gostava de fazer. Trabalhei um mês e pouco, e era uma exploração muito grande, não pagava nem um salário, eu ainda tinha que pagar o almoço, e o transporte era do meu bolso e morava muito distante, na periferia da periferia.
Aí um dia eu disse assim: “Eu vou lá no jornal O Povo”. Liguei pro trabalho e disse: “Eu não vou trabalhar hoje não porque amanheci doente e tal”. Dei uma desculpa esfarrapada. Fui bater lá no jornal O Povo. Eu tava passando na praça e, parece a providência, né? Na hora que você está tão desejoso de uma coisa que parece que todo o universo conspira pra dar certo. Na praça eu encontro com o Valber Benevides, um grande caricaturista, disse assim: “olha rapaz, José do Egito, lá no jornal O Povo, precisa de um desenhista. Vá lá conversar com ele”. Aí eu fui, cheguei na editoria de arte do jornal, entrei, mostrei a pasta de desenhos pra ele Aí ele pegou os desenhos e saiu espalhando pra jornalistas. Eu fiquei meio assim angustiado. Demorou uns 10 minutos e ele disse: “Bora aqui na sala do editor”. O editor disse assim: “Você quer trabalhar aqui?”. Eu disse: “Quero”. Ele disse: “Aqui eu só posso pagar tanto. Se quiser, bem, se não quiser...”. Eram quatro salários mínimos (risos).


BA: Tu tinha quantos anos?
KV: Eu tinha 17 anos, nasci no final de 1972. Menino, comecei a ganhar 4 salários mínimos. Meu pai veio do interior pra assinar minha carteira.


BA: Costumam comparar o Salão de Humor do Piauí com o de Piracicaba. Afinal, qual o mais importante?
KV: Eu conheço o Salão de Piracicaba, é muito bonito, mas eu achei um pouco elitizado, ao passo que o Salão do Piauí, nos seus bons tempos, era o Salão mais lindo do mundo. Porque era no meio de uma praça, democrático, mesmo aquelas pessoas que não eram habituadas com arte iam passando na rua e viam um desenho bonito, paravam pra olhar. E o Salão foi responsável por revelar dezenas de desenhistas bons aqui no Piauí, criou uma geração de bons ilustradores e desenhistas. Foi uma coisa espetacular o que o Salão fez pelo estado do Piauí. Hoje, que ele está numa situação delicada, depois de passar por tantas tempestades, está sobrevivendo. Lógico que o tempo mudou e o Salão não podem mais permanecer naquele formato original, eu até entendo em certo ponto o Albert, ele é um visionário. Às vezes você pensa que o cara está errando [sobre o fato de tirar o Salão de Teresina e trazer para Parnaíba], mas ele pode estar um passo à frente e o tempo prova que ele está com a razão. Eu tava falando com ele ontem e me disse que não tem mais interesse em mostra competitiva, quer fazer salões com mega exposições de grandes artistas convidados, tá entendendo? Eu acho isso aí bacana porque as mostras competitivas, de certa forma, estão um pouco desacreditadas, e são sempre as mesmas pessoas que ganham. O cartunista, como qualquer outra categoria, é meio coorporativista, acaba votando no colega dele. É difícil julgar isso, porque os desenhos são todos assinados e você conhece todo mundo, acaba convivendo com todos eles. Acaba puxando a brasa pra sua sardinha, não tem nem escapatória. Então, eu acho que essa coisa da mostra competitiva não é tão necessária quanto se pensa. Se você faz um grande evento, com apresentações, oficinas, palestras, um grande encontro do humor, com excelentes exposições que você possibilite que o cara aprenda com elas, acho que isso pode dar uma contribuição muito maior. É um novo formato. Um novo conceito de Salão, porque, normalmente a mostra competitiva prevalece. Eu acho que tem margem, espaço para um evento nessa natureza. Você economiza tempo e dinheiro. Porque você não paga prêmio, não gasta com correios, não levará tanto tempo pra selecionar e julgar. Tudo isso é custo. Acho que é como nós fizemos em Canindé: uma mostra.



BA: Quantas vezes você veio ao Salão do Piauí?
KV: Rapaz, não tenho esse dado. Vinha com muita frequência, vim muitas vezes. E raro são os anos que não vinha. Quando não vim tinha de acompanhar pela imprensa. Nos últimos 10 anos foi quando parei um pouco, faltei umas três vezes, porque o Salão entrou em declínio e isso dificultou. Porque o Salão mudou de coordenadores algumas vezes, com alguns a gente se dava muito bem, outros nem tanto. Como minha ligação era mais com o Zé Elias e com o Albert, quando eles se afastavam um pouco eu acabava me afastando também.

Turma que veio para o 30º Salão. Klevisson, segundo na coluna de cima.

BA: Qual a melhor lembrança do Salão?
KV: Ter conhecido o Fortuna, pra mim é uma pessoa que não teve o reconhecimento merecido, pela dimensão e grandiosidade do trabalho dele. Ele era uma pessoa muito calado, na dele... Ziraldo nem se fala, porque é um patrimônio nacional, não cartunista mais famoso do que Ziraldo. Talvez só Maurício, na fama, sendo que o público de Ziraldo é muito mais diversificado, que pega desde a criança ao adulto e o Mauricio tem um foco na criança e no adolescente. Também tive o prazer de conhecer outros artistas, como João Cláudio Moreno, quando ele não era nem humorista, ele é meu amigo desde 88, quase todo dia a gente se fala pelo facebook. E essa ligação profunda que tenho com o Estado do Piauí. Acho assim: primeiro lugar o Ceará e segundo lugar o Piauí. E eu digo sempre, quando vejo as pessoas falando mal de Teresina, falando que é quente: que o calor de Teresina é proporcional ao calor humano, porque não tem povo melhor, mais humilde e hospitaleiro do que o do Piauí. As pessoas são sempre muito agradáveis, gentis. Acho que o Piauí tem muito o que ensinar ao resto do Brasil. Em termos culturais nem se fala, porque aqui a gente tem uma escola fantástica de escultura em madeira e barro, os santeiros, fabulosos. A escultura no Piauí é uma das escolas mais fortes. Um dia eu cheguei no mercado tava um cara fazendo uma escultura lindíssima, e ele tava todo empacotadinho, todo arrumadinho com uma roupinha branca, manga comprida, com o “canivetezim” na mão, uma toalha forrando as pernas Eu disse: “O senhor trabalha desse jeito, todo “arrumadim?”. Ele disse: “É! Eu não me sujo.” O cara era um puta mestre.


BA: E qual a pior lembrança?
KV: Uma lembrança ruim e ao mesmo tempo cômica. É que o Lapi uma vez foi jurado e tinha um cartunista lá de Alagoas, o Manuel Viana, que veio para o Salão e falou muito que era rico que tinha ganho na loteria não sei quantas vezes, e que tinha comprado uma fazenda e colocado os paus da fazenda tudo em formato de lápis e quando foi à noite, o Manuel Viana tava concorrendo e o Lapi era um dos jurados. Só por sacanagem o Lapi disse assim: “Eu não lhe dou o prêmio não porque você já é rico”.  Aaah, meu amigo, saíram os dois nos tabefes em frente ao Theatro 4 de Setembro. Foi Biratan Porto quem apartou a briga. Sabe o que Manuel Viana fez quando a briga foi apartada? Correu no hotel, pegou a mala dele e foi embora no mesmo instante. Nunca mais veio ao Salão.
Muita gente faz humor, mas nem todos tem senso de humor.

Ilustração de Klévisson Viana.

BA: Qual a importância do Estado, dos governos, para a realização do Salão?
KV:É muito importante porque, mesmo que entre dinheiro da iniciativa privada, o governo tem que bancar uma parte. O Salão é um evento que contribui, principalmente, para a educação do povo. Eu vejo com muita tristeza essa escalada da violência no país e o governo investindo cada vez mais em armamentos e o povo gastando o que não tem com segurança e todo mundo apavorado. Como é que você vai combater fogo com fogo? Você vai combater violência com mais violência? Se as pessoas estão violentas você vai bater mais ainda nas pessoas? Eu vejo o seguinte: o policial é maltratado dentro do quartel, ele é cobrado, quando chega no cidadão comum ele faz a mesma coisa. O mesmo tratamento que ele recebeu dentro do quartel ele quer dar ao cidadão comum, ou então quando pega um bandido, desconta nele. Aí o bandido pega o cidadão, que não tem nada a ver com nada, e trata “ôh, seu vagabundo!”. Quer dizer, a inversão dos papeis e dos valores. Isso é terrível.
                Enquanto o Estado não compreender que a educação, a cultura e o esporte é a chave pra livrar a gente dessa situação terrível que a gente tá vivendo, a gente não vai sair do canto e a tendência é só piorar. E eu acho que a saída está, principalmente na cultura. Você acha que uma pessoa que entra para uma escola de dança ou uma orquestra ele vai virar marginal? Dificilmente! Um cara que entra numa escola de pintura, de artesanato, que encontra um meio pra viver dignamente do seu trabalho, que bota a autoestima dele lá pra cima, acho que ele vai se envolver com coisas negativas? Não vai, cara! A arte é a chave, o caminho.
                Então, um evento desse é de uma importância social fantástica. Quando ele traz para uma cidade como Parnaíba, uma cidade bacana, de porte médio, mas que não acontece nada, eu acho que pode ser um caminho pro Salão permanecer.
                Eu acho que o Salão não tem recebido mais atenção dentro da cidade de Teresina porque acabou se tornando uma coisa comum, é tipo um parente próximo, que tá todo dia ali e você não dá mais o devido valor que ele merece, afinal de contas, o cabra já completou trinta anos e já pode se virar sozinho (risos).

Lampião, por Klevisson.

BA: Depois de 29 anos o Salão mudou de cidade. Quais são suas impressões sobre isso?
KV: Eu acho que o Salão está tímido, mas é um caminho, está procurando se renovar pra não morrer. Isso eu vejo com excelentes olhos. Também não era de se esperar uma mega participação popular se é o primeiro [em Parnaíba]. Às vezes também há falha na divulgação, mas também há pessoas que não querem sair de sua zona de conforto para irem ver nada. Mas eu acho que o Salão tá no rumo certo, se ele quiser se manter ele tem que procurar renovar, se modificar, uma vez que o formato que havia sido trabalhado esses anos todos já não estava mais surtindo o mesmo efeito, tava se tornando uma coisa repetitiva. Tem que procurar outros caminhos mesmo. Eu achei meio tímido mas tem muitos méritos nessa nova proposta.


BA: O Albert criou uma fundação para gerir o Salão, tirando-o do Estado. Que acha sobre isso?
KV: A criação da Fundação Nacional de Humor era pra ter acontecido desde o primeiro momento. Acho que o Estado não tem condição de gerir um certame dessa natureza, porque mudam os governantes e os gestores com muita frequência e muitas vezes aquele que entra não tem o mesmo entusiasmo de manter o evento naqueles mesmos moldes. Lembro quando o José Elias Arêa Leão era o diretor da FUNDAC o Salão era um mimo em todos os aspectos, nada faltava para o Salão. O Albert era aquele cara, o curador que imaginava coisas mirabolantes e o Zé Elias ia atrás tentando encontrar a grana para viabilizar esses sonhos. O Albert tinha a cabeça de artista e o Zé Elias era o gestor. Então, esse braço faltou para o Salão. Porque as pessoas envelhecem, vão perdendo o entusiasmo... O Zé Elias tá velhinho, abandonou há muito tempo o Salão. Quando o Zé tava junto, que ele era o braço político do Salão, não houve nenhum Salão no Brasil maior que o do Piauí, nessa fase de ouro. Mas o Salão pode voltar a experimentar outros momentos tão bons quanto esses. Depende de perseverar, de continuar na batalha.


BA: Como funciona a relação de uma iniciativa privada, que é a Fundação Nacional de Humor, gerir dinheiro público para realizar um evento público como o Salão?
KV: O Estado se mete nas coisas com o pretexto de ajudar e, às vezes, até atrapalha, como por exemplo: tem um grupo tradicional lá no Ceará chamado Penitentes, lá em Barbalha, que são beatos, numa comunidade que já tem mais de 100 anos. Aí o Estado pega um elemento daquela coletividade e transforma em Mestre da Cultura. Você já causa um mal-estar, porque outros mereciam também e não recebem o mesmo reconhecimento, e aquele que recebe o reconhecimento fica se sentindo em um patamar mais elevado, superior aos demais, o que vai causando atritos. Ao invés de agregar acaba desagregando aquele grupo. Tanto que o Estado acabou reconhecendo seu erro e agora dá o prêmio para o grupo todo, reconhecendo-o como um tesouro vivo da cultura, o que é mais sensato.
Um projeto com esse do Salão, agora que nasceu de novo, mas sempre tem as coisas que precisam ser ajustadas, na próxima edição já pode ser melhorado tal ponto porque isso aqui não funcionou, elimina umas coisas, cria outras, e vai ajustando até chegar a um ponto que a máquina fique bem azeitadinha pra poder ir adiante. Mas o poder do Estado na cultura é fundamental desde que os gestores não se intrometam tanto no trabalho dos produtores. Porque esse negócio de você dizer como o produtor tem de fazer seu trabalho é de “lascar”. Ou você dá o dinheiro ou você não dá, cara. Porque nem sempre o Estado está qualificado ou tem pessoas corretas pra estarem dando essa opinião, no entanto, eles decidem o que será apoiado e o que não vai, e nem sempre aquelas pessoas que estão lá são imparciais, às vezes elas estão favorecendo alguém que é colega de alguém, que é filho de fulano, tá entendendo? Por vias tortas...


BA: Qual é a melhor maneira do Estado selecionar e decidir o que será apoiado?
KV: Eu ainda acho que os editais é a maneira mais democrática. Porque eu lembro que antes dos editais, os pequenos produtores culturais sequer tinham acesso ao Secretário de Cultura Marcavam uma reunião e jamais eram atendidos e quando levavam uma pautazinha mínima de reivindicações, eles diziam logo que não tinham dinheiro, enquanto pra outras coisas sempre havia dinheiro. Isso acontece muito nas pequenas cidades, por exemplo: o cara traz uma banda pra cá e paga 150mil reais. O cara esquece que com 150 mil reais o cara fomenta durante o ano inteiro grupos de teatro, dança, pintura... Tá entendendo? Ele faria uma verdadeira revolução dentro do município dele com essa mixaria, que ele gasta em poucas horas de um show, muitas vezes com um grupo que se apresenta e se você perguntar 15 minutos pra um elemento daqueles qual o nome da cidade que ele se apresentou ele não se lembra mais.  Ele vai embora e não deixa nada para aquele município.
                Há o interesse muito grande dos gestores por coisas caras. Por que que não falta dinheiro para o cinema, uma arte tão cara? Porque num filme de R$3milhões o cara pode desviar R$500mil. Agora no projeto de um livro, que interesse é que tem um gestor corrupto na impressão de um livro que custa R$15mil? O máximo que ele vai conseguir tirar dali é 3 contos! Então ele quer é projetos grandes, mirabolantes, que envolva grandes montantes que ele possa tirar o dele ali sem ser percebido.

                E a lei do Mecenato no Ceará? Rapaz é uma lei que precisa passar urgente por umas mudanças. Porque você é aprovado na lei e recebe uma carta de captação de R$100mil e eles lhe dão 90 dias pra captar. Esse tempo, às vezes, só a empresa que você pretende que lhe apoie leva para analisar seu projeto. Aí acaba seu prazo e o Estado publica no diário oficial que o Estado deu R$100mil pra instituição tal fazer tal coisa. Não deu porra nenhuma! Porque se o Estado quisesse ajudar de verdade ele arrecadava esse dinheiro das empresas e já destinava logo à cultura, sem precisar que o produtor cultural vá com o pires na mão de empresa em empresa passar por essa humilhação e, muitas vezes não dá certo. Se o Estado tem o dispositivo pra fazer isso, automaticamente. Essa burocracia é tão grande e é criada para que seu projeto não dê certo. 90% das iniciativas naufragam, que é pra esse dinheiro ir para o Estado e não para a cultura. Eles ficam posando: “Olha! Destinamos R$5milhões para a cultura”, sendo que o que é captado ali não dá nem R$1milhão. Nós mesmos não conseguimos captar um projeto de R$100mil, perdemos a carta de captação. 

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