Por Bernardo Aurélio
Esses dias coloquei uma frase no facebook que dizia mais ou
menos assim: “adquirir mídias físicas é um manifesto da identidade e da
materialidade”. Era de se esperar, que em meio a esse mundo virtual, que é a
própria experiência das redes sociais modernas, os detratores viessem com uma
enxurrada de “nãos”, negando minha máxima, mas qual não foi minha surpresa,
quando a discussão levou a outros rumos, cheios de “curtidas” e solidariedade
com minha opinião.
Eu estava falando de um tipo de manifesto. Ora, vejam só,
quem é que se manifesta hoje em dia? Principalmente: quem se manifesta diante
de um teclado que publica na “time line” do facebook? Normalmente são pessoas
raivosas, de opiniões radicais, fundamentalistas, mas em muitos outros casos,
são minorias. Um manifesto, às vezes, é apenas um grito ao vento buscando não
um grande público que faça eco, mas uma testemunha.
Recentemente assisti a um filme argentino que me escapa o
título, mas registro aqui que foi durante a I Mostra de Cinema do Artes de
Março, no Teresina Shopping, cujo um dos curadores culpados foi o cineasta
Douglas Machado. Era um documentário sobre um pequeno grupo de pessoas
incomodados com o fim da Kodak e, consequentemente, da produção de películas,
matéria prima para fazer cinema. A “fita” era sobre o incômodo de ser levado
por uma correnteza que tenta apagar experiências e tecnologias em troca de algo
novo e sobre como esse grupo resistiu. Uma resistência penosa, pois mesmo
quando vitoriosos os transformam em alienígenas do seu contexto. Isso porque
aquele grupo conseguiu produzir suas próprias películas e realizar um
longa-metragem todo em super 8, uma tecnologia completamente fora da curva do
tempo de hoje. Foi nesse filme que o “protagonista” disse que não queria um
público, mas sim testemunhas. Todo manifesto busca testemunhas.
Oh! Mas que bobagem tudo isso de defender coisas velhas que
ocupam espaço e juntam poeira, quando tudo pode caber em um pen drive, ou,
muito melhor, na “nuvem”. Não poderia haver nome melhor... Pra quê coisa mais
transitória que uma nuvem?
Outro dia um cliente veio se desfazer de 12 discos blue-ray
porque já os havia transcodificado todos para seu HD e não fazia mais sentido
tê-los. Sua indiferença com a singularidade do objeto, mesmo na era da
reprodutibilidade técnica, quando um disco é só mais um dentre milhares
produzidos, é de amargurar. Falta-lhe sensibilidade de perceber a troca de uma
coisa real por uma experiência de incontáveis bytes.
Alguém poderia perguntar “mas qual a importância do real se
todas as experiências são sentidas virtualmente?”. Matrix. Tudo isso é
demasiadamente pós-moderno pra mim, que acredito na colher e nas coisas
simples. O que importaria é a sensação da experiência e não o objeto em si. De
fato, o é. Aquilo que não nos toca, não nos diz nada. Aquilo que nos toca.
Tocar. Materialidade. O objeto é uma testemunha do tempo e nós estamos nos
tornado insensíveis a ele, substituindo o concreto pelo intangível, abandonando
a própria história e aplaudindo, precisando cada vez mais de novos HDs externos
ou mais contas em streamings...
A matéria tem história singular que nenhum histórico de blog
ou de outros sítios digitais podem permitir. Baixei todas minhas fotos do Orkut
quando o google permitiu, pois a rede social ia sair do ar. Mas não tenho mais
acesso às discussões, aos grupos, aos bate-papos à tudo aquilo que poderia dar
alguma personalidade ou informação à minha vida. Saiu do ar, fugiu da nuvem.
Transitório. Inacessível.
Matéria é testemunha primária. Materialismo não é
consumismo. Sendo bem ordinário, comprar um livro ou um DVD é um registro, é um
manifesto, é um nadar contra as ondas da world wide web. Ter é resistir ao
tempo. Ter não é mesquinho, não é feio, não é adorar uma coisa, é poder acessar
por todos os sentidos uma experiência que te coloca no tempo, mesmo quando
somos anacrônicos em nossos filmes em super 8 ou em nossos discos de vinil ou
em nossas revistinhas de papel. É abrir um livro e ler a dedicatória de um pai
para um filho, coisa que nenhum pdf ou senha do netflix substitui.
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