quinta-feira, 22 de março de 2018

Manifesto das reminiscências físicas num mundo virtual



Por Bernardo Aurélio

Esses dias coloquei uma frase no facebook que dizia mais ou menos assim: “adquirir mídias físicas é um manifesto da identidade e da materialidade”. Era de se esperar, que em meio a esse mundo virtual, que é a própria experiência das redes sociais modernas, os detratores viessem com uma enxurrada de “nãos”, negando minha máxima, mas qual não foi minha surpresa, quando a discussão levou a outros rumos, cheios de “curtidas” e solidariedade com minha opinião.

Eu estava falando de um tipo de manifesto. Ora, vejam só, quem é que se manifesta hoje em dia? Principalmente: quem se manifesta diante de um teclado que publica na “time line” do facebook? Normalmente são pessoas raivosas, de opiniões radicais, fundamentalistas, mas em muitos outros casos, são minorias. Um manifesto, às vezes, é apenas um grito ao vento buscando não um grande público que faça eco, mas uma testemunha.

Recentemente assisti a um filme argentino que me escapa o título, mas registro aqui que foi durante a I Mostra de Cinema do Artes de Março, no Teresina Shopping, cujo um dos curadores culpados foi o cineasta Douglas Machado. Era um documentário sobre um pequeno grupo de pessoas incomodados com o fim da Kodak e, consequentemente, da produção de películas, matéria prima para fazer cinema. A “fita” era sobre o incômodo de ser levado por uma correnteza que tenta apagar experiências e tecnologias em troca de algo novo e sobre como esse grupo resistiu. Uma resistência penosa, pois mesmo quando vitoriosos os transformam em alienígenas do seu contexto. Isso porque aquele grupo conseguiu produzir suas próprias películas e realizar um longa-metragem todo em super 8, uma tecnologia completamente fora da curva do tempo de hoje. Foi nesse filme que o “protagonista” disse que não queria um público, mas sim testemunhas. Todo manifesto busca testemunhas.

Oh! Mas que bobagem tudo isso de defender coisas velhas que ocupam espaço e juntam poeira, quando tudo pode caber em um pen drive, ou, muito melhor, na “nuvem”. Não poderia haver nome melhor... Pra quê coisa mais transitória que uma nuvem?

Outro dia um cliente veio se desfazer de 12 discos blue-ray porque já os havia transcodificado todos para seu HD e não fazia mais sentido tê-los. Sua indiferença com a singularidade do objeto, mesmo na era da reprodutibilidade técnica, quando um disco é só mais um dentre milhares produzidos, é de amargurar. Falta-lhe sensibilidade de perceber a troca de uma coisa real por uma experiência de incontáveis bytes.

Alguém poderia perguntar “mas qual a importância do real se todas as experiências são sentidas virtualmente?”. Matrix. Tudo isso é demasiadamente pós-moderno pra mim, que acredito na colher e nas coisas simples. O que importaria é a sensação da experiência e não o objeto em si. De fato, o é. Aquilo que não nos toca, não nos diz nada. Aquilo que nos toca. Tocar. Materialidade. O objeto é uma testemunha do tempo e nós estamos nos tornado insensíveis a ele, substituindo o concreto pelo intangível, abandonando a própria história e aplaudindo, precisando cada vez mais de novos HDs externos ou mais contas em streamings...

A matéria tem história singular que nenhum histórico de blog ou de outros sítios digitais podem permitir. Baixei todas minhas fotos do Orkut quando o google permitiu, pois a rede social ia sair do ar. Mas não tenho mais acesso às discussões, aos grupos, aos bate-papos à tudo aquilo que poderia dar alguma personalidade ou informação à minha vida. Saiu do ar, fugiu da nuvem. Transitório. Inacessível.

Matéria é testemunha primária. Materialismo não é consumismo. Sendo bem ordinário, comprar um livro ou um DVD é um registro, é um manifesto, é um nadar contra as ondas da world wide web. Ter é resistir ao tempo. Ter não é mesquinho, não é feio, não é adorar uma coisa, é poder acessar por todos os sentidos uma experiência que te coloca no tempo, mesmo quando somos anacrônicos em nossos filmes em super 8 ou em nossos discos de vinil ou em nossas revistinhas de papel. É abrir um livro e ler a dedicatória de um pai para um filho, coisa que nenhum pdf ou senha do netflix substitui.

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