segunda-feira, 12 de março de 2018

CONSTRUINDO UMA RELAÇÃO COM A HISTÓRIA ORAL


Bernardo Aurélio, julho de 2013

Resumo: Este artigo apresenta um relato da minha relação com as entrevistas que realizei durante minha produção acadêmica, percorrendo desde a graduação, especialização e mestrado, entre os anos 2000 e 2013, traçando um paralelo com as leituras teóricas que fiz sobre História Oral procurando revelar onde se firmaram meus erros e acertos em minhas práticas com o tema abordado.
Palavras-chave: história oral, método e relato.

            Escrever sobre teoria da história oral não é mais nenhuma novidade. A bibliografia é bastante extensa e várias são as discussões introdutórias em torno do tema. Entre as perguntas mais recorrentes, questionam se, afinal de contas, ela é uma técnica, uma metodologia ou uma disciplina. Para quem ela é feita? Para os iletrados que não puderam construir discursos escritos? Ela é tão válida como fonte quanto qualquer outro tipo de fonte?  De quem é a autoria da entrevista? Do entrevistado ou do entrevistador? Quais os cuidados e as sensibilidades na relação estabelecida entre os dois lados envolvidos na produção de uma entrevista? Quais os processos técnicos e metodológicos básicos para se realizar história oral?
            Para contribuir com essa discussão, sem entretanto, querer responder a todas esses perguntas, tomarei como ponto de partida a minha relação com o tema, de como fui sendo introduzido no mundo da pesquisa, das entrevistas e da oralidade até o ponto onde ela tornou-se fundamental para o desenvolvimento da minha dissertação.

A PRIMEIRA “ENTREVISTA HISTÓRICA”
            Formei-me em licenciatura em história em 2005, pela Universidade Estadual do Piauí. Naquela época, participei de congressos, encontros, seminários e sempre haviam discussões sobre história oral que eu esquivava, passando pela tangente, mais interessado em outras questões específicas envolvendo a micro história cultural. Para mim, história oral tratava-se de um método interessante, mas desconhecido e aparentemente bastante trabalhoso de lidar. Mais trabalhoso que o normal, na história. Afinal de contas, seria preciso realizar várias entrevistas e transcrevê-las na íntegra... Definitivamente: não!
            Naqueles anos de graduando, desenvolvi meu trabalho de conclusão de curso chamado “Quadrinhos Pós-68”, que tinha três objetos de pesquisa principais. Três pessoas, autores de quadrinhos que moravam na minha mesma cidade e que estavam completamente acessíveis a mim. Estava trabalhando com história do tempo presente, meu recorte iria de 1964 até o início dos anos 1990, seria proveitoso me valer da história oral, pois como diz Bernstein, o historiador do tempo presente é um privilegiado que “praticamente jamais corre o risco de se encontrar privado dos documentos necessários para seu trabalho” (BERNSTEIN, MILZA, 1999, p.129), tamanha a abundância de fontes. Porém, é bem verdade que nem sempre temos acesso a uma fonte produzida no tempo presente, como por exemplo: diários pessoais ou documentos internos de órgãos públicos que ainda não se tornaram acessíveis. Mas o fato é que, comigo, devido a tanta fonte que consegui, como recortes de jornais, fotografias, revistas, acabei me afastando da ideia de precisar gravar entrevistas com meus objetos de pesquisa.
            Dos três autores com quais trabalhei em meu trabalho de conclusão de curso (TCC), dois eu conheci pessoalmente. Do terceiro, só tinha ouvido falar e lido alguns de seus quadrinhos. Arnaldo Albuquerque e Antônio Amaral são pessoas sobre as quais não é difícil encontrar textos em revistas locais, jornais ou internet, além disso eu já os conhecia bem antes de decidir fazer minha monografia. Juntei recortes, fotografias, tirei cópias, fui na casa de um, na casa de outro, coletei ali mais material. Li, comparei com outros textos, analisei, enfim: historiei da melhor maneira que pude, mas não gravei nenhuma entrevista.
            Amauri Pamplona, o terceiro deles, nascera em 1942 e Arnaldo Albuquerque, em 1952. Já Amaral nascera em 1962, portanto, tratava-se de uma criança em 68, o ano-chave da minha pesquisa, e só viria tornar-se um adolescente mais consciente de sua posição enquanto sujeito do mundo no tempo na primeira metade da década de 80. Talvez por isso, Amaral seja o menos afetado diretamente pelos fatos da ditadura militar e, por conta desse distanciamento temporal, senti a necessidade de fazer uma entrevista para entender melhor como ele sentia a ditadura militar. Parece-me que quanto mais presente a história, mesmo com a profusão de outras fontes, mais necessário é a realização de entrevistas para uma melhor apreensão das coisas no tempo.
            Posso dizer que, com Amaral, realizei minha primeira entrevista objetivando uma pesquisa histórica, pois considero que ainda estava muito longe de fazer história oral. Mandei as perguntas por e-mail: muito mais prático. Mandei e esperei as respostas devidamente digitadas. Por um lado, eu não teria a necessidade incômoda da transcrição, é verdade, mas por outro lado tive as limitações que uma lista de perguntas pré-estabelecidas determina, com a frieza da distância e sem a plasticidade que tem o exercício oral.
            Das 15 perguntas que fiz para Amaral, apenas uma era voltada diretamente para minha pesquisa[1]: “A ditadura militar interferiu de alguma forma na sua vida artística?” Esperava encontrar, na resposta que ele me daria, uma explanação de como o modo de viver o período militar influenciou sua vida, de que forma aquela experiência foi latente no seu cotidiano. Hoje, percebo que o padrão lógico rigidamente estruturado da minha pergunta poderia ter inibido de tal modo a memória do depoente que sua fala poderia ter se tornado monossilábica ou muito curta (THOMPSON, 2002, p. 257), ou seja, poderia ter se limitado a um “sim” ou “não”, sem aprofundamento nenhum.  Atencioso como foi, a resposta do Amaral me deixou relativamente satisfeito.
            Nessa entrevista com Amaral, as 14 outras perguntas eram especificamente sobre o Hipocampo, revista em quadrinhos de sua autoria que também foi fonte de pesquisa para meu TCC. Então, praticamente toda a entrevista foi útil para minha pesquisa, entretanto, nem de longe essa primeira “entrevista histórica” que fiz se aproximava da metodologia da história de vida ou história temática que a história oral procura compreender a partir de um recorte muito mais amplo e aberto.
Pelo menos com o Amaral eu fiz uma entrevista. Com Arnaldo Albuquerque, me dei por satisfeito com o que encontrei em jornais e revistas. Simplesmente, não tive a necessidade de entrevistá-lo porque a variedade de fontes materiais supria minha necessidade. Até então era dessa forma que eu entendia a história oral, como uma “complementação” à pesquisa das fontes materiais. Ou seja, sequer uma entrevista por e-mail me ocorreu, já que meus documentos impressos me satisfaziam. Entretanto, cabe aqui um parêntese, ou dois pontos: eu conhecia Amaral e Arnaldo, já tinha conversado com eles várias vezes, já tinha escutado histórias deles e sobre eles. De alguma forma, essas histórias, as reminiscências das experiências que tive com eles ficaram marcadas em minha memória na hora de escrever os respectivos capítulos destinados a eles em meu TCC. Por outro lado, com Amauri Pamplona foi diferente, como veremos a seguir.

A HISTÓRIA ORAL QUE EU DEVERIA TER FEITO
Amauri Pamplona era o menos conhecido dos três, tanto para mim quanto para o púbico amante da nona arte, praticamente um inédito, só tinha encontrado sobre ele dois pequenos textos e histórias em quadrinhos: uma publicada na revista chamada Pulsar e outra na Zig Zag. Não fosse o fato de ter sido me entregue emprestado quase 500 páginas de quadrinhos originais produzidos por Amauri ainda em 1969 e outros fanzines da década de 70 e 80, provavelmente eu o teria procurado em sua casa e teria tido contado com ele como tive com os outros dois autores. O fato é que fiquei completamente encantado com todas aquelas páginas virgens do olhar do historiador e extasiei-me, solitariamente, debruçando-me sobre aquelas páginas amareladas. Novamente a abundância de fontes materiais me impediram de fazer a entrevista, afinal, pra quê realizá-la se tudo de que precisava para fazer minha análise estava bem ali, diante de mim e ao alcance das mãos? A história oral, erroneamente ainda é considerada por muitos, como foi por mim naqueles anos de graduando, como um recurso “tapa-buraco”: se você tem as fontes materiais suficientes, para que entrevistar pessoas? Para quê criar fonte se em suas mãos estão documentos impressos muito mais “fidedignos” e “confiáveis” para o historiador?
Lembro-me que pouco depois da defesa do meu TCC tomei conhecimento de que Amauri Pamplona morrera. Morrera alguém sobre qual trabalho eu dedicara boa parte dos dois anos que passei produzindo minha monografia, texto pelo qual nem o ranço do tempo nem a rígida auto-crítica conseguiram me fazer escondê-lo na gaveta, e talvez, somente por esse carinho egocêntrico que tenho pelo meu trabalho, pesou-me forte a consciência histórica. Não conheci Pamplona pessoalmente, mas poderia tê-lo feito. Poderia ter produzido um registro histórico mais próximo dele através da oralidade. A entrevista deveria ter sido feita, e hoje isto é fato pra mim, mas não só pelo remorso de pesquisador: deveria ter sido feita simplesmente pelo fato de que não poderia ter me privado de conhecer pessoalmente o “objeto” principal de um capítulo inteiro de minha pesquisa, pelo simples fato de que o autor dos textos que eu analisava estava vivo, próximo e disponível. Trata-se de uma irresponsabilidade histórica pela qual aqueles que trabalhem com tempo presente não devem jamais se dar ao luxo de cometer.
Durante a pesquisa que realizei sobre Amauri Pamplona, a partir das minhas interpretações de seus quadrinhos, de conversas com pessoas que o conheceram (como o próprio Amaral ou a professora Graça Vilhena, sua prima), pude compreender que se tratava de uma pessoa angustiada pelos tormentos da vida e que nunca teve o reconhecimento devido pela arte que fez. Na época, eu não tinha leituras que me dessem essa compreensão, mas hoje penso que se tivesse desenvolvido bem meu papel como historiador talvez pudesse ter contribuído de alguma forma através do caráter terapêutico que a história oral pode proporcionar, como diz Thompson:

Recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade; continuar lidando com essa lembrança pode fortalecer, ou recapturar, a autoconfiança. A dimensão terapêutica do trabalho da história de vida tem sido uma descoberta que sempre se repete (2002, p. 208).

Talvez, durante uma entrevista de uma ou duas horas percorrendo o labirinto da memória, encontrar o Minotauro não teria sido tão ruim, e falar sobre ele próprio a partir de uma distância segura poderia ser engrandecedor, revelador e ter feito bem ao Amauri. Ou talvez, ainda, de outro ponto de vista mais egocêntrico, ter realizado essa entrevista teria contribuído sobremaneira para minha monografia, e, consequentemente, teria feito de minha pesquisa algo melhor para a história que  contei.

O PRIMEIRO CONTATO COM O GRAVADOR
Anos depois, em 2008, enquanto cursava uma especialização em artes pela UFPI, fomos dirigidos a produzir dois artigos, cada qual sobre um artista piauiense contemporâneo. Os textos produzidos deveriam ter um caráter biográfico, melhor dizendo: catalográfico. De alguma maneira inconsciente, eu tive certeza de que precisaria recorrer à entrevistas e, pela primeira vez, decidi usar um gravador de áudio para realizá-la. É claro que o simples fato de você usar um gravador para capturar sua entrevista não faz de você um historiador que usa a história oral como método. Aproveitando este final de parágrafo, fica aqui esclarecido o meu direcionamento em entender a história oral como metodologia de pesquisa, nem pura e simplesmente técnica, nem uma disciplina específica e independente. Entendo a história oral como um método diferente de trabalhar determinados objetos, mas em 2008 eu não sabia disso: apenas fiz entrevistas com um gravador.
Decidi entrevistar meu irmão, Caio Oliveira, que é um excelente quadrinista, se é que o meu julgamento parcial poderia falar aqui. No meu entender, ele enquadrava-se na proposta de criarmos, de acordo com o trabalho da turma da especialização que cursava, um catálogo de recentes ou desconhecidos artistas locais. Caio já tinha uma produção significativa, com trabalhos autorias e em parceria com produtores independentes do Brasil, da Escócia e Estados Unidos. O segundo que eu deveria entrevistar seria o Albert Piauí, cartunista e chargista na imprensa piauiense principalmente durante as décadas de 1970 e 1980, além de organizador do Salão de Humor do Piauí, evento que em 2013 chegou a sua 30ª edição.
Comecei pelo meu irmão. A entrevista foi realizada dia 12 de outubro de 2008 e é incrível o nível de amadorismo registrado durante toda a entrevista, que não durou sequer 20 minutos. A conversa não seguiu uma linha de pesquisa de história de vida, nem poderia aprofundar conhecimentos realmente significativos do entrevistado. É sabido que durante uma entrevista de história oral você pode produzir um roteiro de perguntas, mas também é aceito que o entrevistador não precisa prender-se a ele, pois você pode realizar uma entrevista livre. Thompson diz que, com relação a uma entrevista livre, o “fluir fica mais forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações ou evidências que valham por si mesmas, mas fazer um 'registro' subjetivo de como um homem ou mulher, olha para trás e enxerga a própria vida”, e conclui dizendo que nenhuma entrevista deve ser completamente livre, sendo “essencial o planejamento antecipado das perguntas a fazer” (2002, p. 258 e 259). Não foi o que eu fiz.
Minha primeira experiência com um gravador, pelo fato de ser meu irmão o entrevistado, simplesmente aconteceu. Sem preparação prévia, minha ou do meu irmão, sentei ao lado de onde ele estava, disse que precisava realizar um trabalho entrevistando-o, ele aceitou e comecei a gravar. Tudo que eu precisava dizer era “tenta responder como se eu não fosse teu irmão. Como se eu não soubesse de nada” e depois perguntar sobre que quadrinhos ele fez, que projetos estava fazendo... Um apanhado completamente superficial que dificilmente ajudaria em qualquer boa análise sobre vida e obra do interlocutor. Tudo que consegui com ele serviu realmente mais para a elaboração de um catálogo do que de um artigo biográfico.
Por duas vezes eu dei a entrevista por encerrada, depois lembrava de algo e fazia outra pergunta. Minha segunda pergunta foi “O que tu acha que te levou a ser desenhista?”. Caio respondeu que foi a influência do pai. Quase no final da entrevista, depois de 15 ou 16 outras perguntas, dentro de um contexto onde a entrevista já se dava por encerrada, eu retomei a essa influência do pai porque julguei a mais relevante de toda a entrevista e reforcei: “como tu acha que ele te influenciou, te ajudou de alguma forma?”, entretanto, esse pergunta àquela altura, revelava a completa falta de organização e direcionamento no que eu estava fazendo.
O telefone tocou, eu tive de sair para atender e disse “continua falando aí...”  e saio da sala, deixando-o sozinho com o gravador. Nem preciso comentar o quanto isso é errado. Quando retorno, menos de 1 minuto depois, interrompo-o perguntando: “Tá falando sobre o que?”. E ele responde: “Sobre tua pergunta, que eu nem lembro mais qual foi”. Em outro momento, como se minha entrevista não fosse ruim o suficiente, eu gritei: “Mãe, abaixe só um pouquinho aí!”, cortando o início de uma fala do Caio, porque o volume da TV do quarto da nossa mãe estava atrapalhando, o que deixa claro que o local e o momento em que estava sendo realizada a entrevista eram impróprios.
Por causa da ausência de um roteiro, em alguns momentos eu ficava em silêncio tentando formular a próxima pergunta e, não por menos, coisas assim aconteceram: “Como tu se colocaria dentro do cenário cultural piauiense? Dentro dessas artes plásticas, você poderia se conceituar, nesse cenário?”. E ele respondeu: “Hmmm... Não sei nem se entendi a pergunta”. Falta de clareza e objetividade. Depois eu tentei consertar, explicando: “Se tu consegue enxergar tua produção dentro de um cenário no Piauí.” Ele respondeu em apenas três linhas sucintas, que começou com “acho que seria muita pretensão da minha parte” e concluiu com “se alguém disser que é arte, fico envaidecido. Eu prefiro me calar”. Provavelmente por causa das minhas perguntas mal elaboradas, as respostas de Caio eram curtas, sem problematização. Talvez isso se deva ao fato de uma timidez do entrevistado diante de um gravador, pela falta da prática narrativa através da oralidade, que Benjamin adverte que está se perdendo nos dias atuais (BENJAMIN, apud MONTENEGRO, 2010, p. 51). Caio é acostumado a falar através dos seus desenhos, de suas histórias em quadrinhos. Sua narrativa é prioritariamente desenvolvida no campo visual, desde criança, por isso, não afeita à fala. Talvez isso tenha feito dele um narrador ruim diante do obstáculo do microfone[2].
Talvez a proximidade familiar entre mim e o entrevistado tenha estabelecido uma inconsciente certeza de que “nós conhecemos a história que estamos contando”. Ouvindo novamente a entrevista que realizei há quase cinco anos, percebo que se estabeleceu um contrato de confidência entre nós, onde ele apenas confirmava o que eu esperava e sabia que ouviria. Isso me impediu de realizar perguntas básicas. Em determinado momento, Caio fala que tem um produtor dos Estados Unidos interessado em seu trabalho. Eu sabia de quem ele estava falando e sabia das circunstâncias como se conheceram, por isso não me preocupei em questioná-lo sobre isso. O resultado foi que a entrevista acaba e não sabemos o nome deste homem nem quais trabalhos fizeram dele um “semi-profissional” no exterior, como Caio diz. Permitam-me incluir aqui essa informação que pode ser útil para um eventual curioso: chama-se Mike Kennedy e um dos seus trabalhos mais conhecidos é Lone Wolf 2100.
É provável que sendo outro o entrevistador, esse contrato de confidência não existiria e Caio teria, espontaneamente, dito o nome do editor norte-americano, ou seria questionado sobre isso. Sendo o entrevistado um bom narrador ou não, cabe a quem pergunta dirigir a entrevista e tentar torná-la mais produtiva.

O MAIS PERTO QUE CHEGUEI
            Minha entrevista com o Albert, apesar ter sido apenas dois dias depois da realizada com Caio, foi um pouco diferente. Posso até dizer que substancialmente melhor realizada, melhor pensada, primeiro porque eu estava tratando com uma pessoa que não conhecia tão bem como meu irmão, isso exigia de mim mais preparo e me munia de mais curiosidade, segundo porque eu sabia que se tratava de um encontro marcado, uma oportunidade que não seria tão facilmente articulada ao prazer das minhas necessidades e, terceiro, porque eu sabia, de antemão, que haviam tramas históricos com Albert que me interessavam a priori, haviam temas preciosos e histórias de vida de outros personagens que cruzavam a dele e que, para mim, que estudava o contexto da  arte pós-68 desde o meu trabalho de graduação, seria muito rico.
            Partindo desse ponto, estabeleci uma lista de 20 perguntas, um roteiro, com questões tipo: “quando e como percebeu a inclinação para as artes e para o desenho?”, mais voltada para o objetivo do artigo a ser desenvolvido para a disciplina da especialização em artes, mas também inclui na lista algo assim: “Como foi o período da ditadura militar para o seu cotidiano? Para o seu trabalho? Teve algum problema com a polícia?”, pergunta que claramente denunciava um interesse bem maior que o de construir um catálogo de artistas modernos e contemporâneos do Piauí. Percebi que meu “Quadrinhos Pós-68” tem um viés político-cultural e o nome do Albert aparecia nas leituras que fiz para aquela pesquisa. Eu queria saber mais sobre essa história...        
            Marcamos o dia da entrevista: 14 de outubro de 2008. Eu fiquei de encontrá-lo em sua casa, mas poucos antes, quando estava me preparando para sair, liguei para reconfirmar com ele e avisá-lo que estava indo ao seu encontro. Disse-me que esperasse numa esquina, há alguns quarteirões de distância da casa dele. Chego e espero. Era uma esquina qualquer, que levava pra algum lugar da zona norte da cidade. De um lado tinha um terreno sem cerca com uma pequena casa de reboco debaixo de um enorme pé de manga, do outro, tinha um boteco vagabundo. Ele veio fumando seu cigarrinho de palha, apontou pro barzinho e falou com aquele jeito pausado típico que tem: “Vamos conversar ali. Porque... é melhor...” Achei que foi uma péssima a ideia mesmo sem nunca ter lido Thompson, que diz:

Em primeiro lugar, procure utilizar um cômodo tranquilo em que você não seja perturbado por vozes de outras pessoas e onde não haja ruídos fortes ou problemas acústicos causados por superfícies rígidas. O barulho do tráfego de fora pode ser abafado com o uso de cortinas, mas o crepitar do fogo soará surpreendentemente forte na fita gravada (2002, p. 269).

            A verdade é que esse tipo de problema não passou pela minha cabeça quando pretendi gravar com o meu irmão no quarto onde funciona seu “estúdio”, e lá veio o inesperado e provável som da TV e da nossa mãe nos gritando por mais uma vez. Entretanto, era óbvio que gravar em um bar, em frente a uma rua movimentada, com várias mesas e vários clientes seria um grave problema para a qualidade da captação do áudio. Como disse, ainda não havia lido Thompson, mas ele mesmo adverte que a entrevista deve ser feita em um lugar onde o entrevistado sinta-se à vontade, normalmente é em sua própria casa, mas às vezes, o local de trabalho ou um bar pode ativar memórias ou tornar a conversa menos burocrática (2002, p. 265). Imaginei, com minha compreensão intuitiva, que teria de ser ali mesmo, onde ele achasse melhor, porque, mesmo sem o conhecimento específico em teoria da história oral, sabia que era importante deixar o entrevistado sentir-se confortável. Sentamos, pedimos uma cerveja e começamos a conversar.
            A conversa fluiu bem e em determinados momentos nem parecia uma entrevista formal. Lembro-me, novamente, de Thompson dizendo que “uma entrevista não é um diálogo, ou uma conversa. Tudo o que interessa é fazer o informante falar. Você deve ficar o mais possível em segundo plano” (2002, p. 271) ou que, acima de tudo, é preciso disposição para ficar calado e saber ouvir (2002, p. 254). A verdade é que em certos momentos eu apareci mais do que deveria durante as perguntas, ou sugerindo uma palavra ou outra em momentos onde o Albert construía, mentalmente, suas frases. Mas erros como esses foram apenas em alguns poucos momentos, não me crucifiquem! E o mais importante é que Albert ajudou bastante, pois é um grande narrador. Como um artesão, foi “tecendo histórias suas e de outros, as quais se constituem como que em anéis que vão sendo transmitidos a todos os que dispõem a ouvi-los” (MONTENEGRO, 2010, p. 61). E assim, Albert falou sobre seus pais, sobre sua educação, sobre Arnaldo Albuquerque, sobre o Salão de Humor do Piauí, sobre os jornais onde trabalhou e sobre arte.
            Reescutando a entrevista, quase cinco anos depois, percebi que “refletir acerca de uma história de vida a partir do relato oral de memória é debruçar-se sobre fragmentos que o narrador – ainda que com a participação do entrevistador – selecionou para construir uma imagem, uma identidade” (MONTENEGRO, 2010, p. 63). Dessa maneira, Albert apresenta-se como um cartunista que idealizou e que realizou durante décadas um dos maiores eventos de humor do Brasil, mas ao mesmo tempo dizia que “não me acho importante dentro da arte piauiense”, porque sua grande evolução como artista estava guardada e inalcançada pelo público, dizia ainda: “...eu acho que no Piauí, com relação ao desenho de humor, quem mais avançou fui eu, até hoje. Sério. Só que a maioria dos meus desenhos eu não botei pra fora, não é publicado”. Mais tarde, falando sobre si e sobre seu trabalho, disse sorrindo que as pessoas “não conhecem e nem querem, mas elas me adoram”.
            Quando Albert foi perguntado sobre a década de 1970, a ditadura militar e os movimentos de esquerda, ele disse ser frequentador assíduo da casa de Antonio José Medeiros, um dos fundadores do PT no Piauí e nome forte durante os oito anos do governo petista de Wellington Dias no Estado. Disse que ele, “o Antonio José Medeiros, Jorge Riso, Pierre Baiano, Ritinha Cavalcante. Nós fomos presos pela ditadura”.  Sobre essa experiência, Albert relatou:

Começaram a fazer pergunta sobre o Antonio José Medeiros. “Você tava no dia tal, local tal?”. Eu disse: “Estava”. Eles sabiam onde eu sempre estava. Folhearam os desenhos começaram a fazer mais perguntas sobre o Antonio José Medeiros: “Antonio José é comunista?”, Eu disse que ele não era, porque ele nunca foi. Antonio José nunca foi comunista. Sempre foi de direita, ou melhor: não de direita fundamentalista, mas nunca foi de esquerda, entendeu?

            Para Albert, aquelas pessoas que se reuniam na casa do Antonio José em grupos de estudos para ler Fernando Henrique de Cardoso e Celso Furtado não representavam uma ameaça comunista ou revolucionária, ele dizia que “todo mundo era de esquerda, claro! Todo mundo era contra o sistema, mas ninguém queria ser contra o sistema jogando bomba, matando gente”. Ele mesmo disse que não tinha “saco” para aquelas leituras e que ia mais para o grupo porque gostava de uma garota que estava lá (Helena), com quem se casaria depois. Entretanto, saber se eram eles comunistas ou se representavam algum tipo de perigo para a ditadura militar, não cabe apenas a Albert dizer, pois a lembrança do passado é resgatada pelo presente e “como afirma Bergson (1990), não há percepção pura, assim como não há memória pura. Nossa percepção do presente e as lembranças do passado estão marcadas pelas nossas histórias cotidianas, que são sempre individuais e coletivas” (MONTENEGRO, 2010, p. 64).
            A passagem que considerei mais marcante da fala de Albert, pela qualidade narrativa, foi quando de sua prisão por conta deste envolvimento com o “pessoal da casa do Antonio José”. É longa a citação, mas é gostosa de ler. Ele disse:

Eu andava no meio da rua, ainda hoje eu me lembro, eu estava com o José Leite e um amigo meu. Passamos por vários bares de Teresina. Notei que tinha um pessoal que sempre estavam nos mesmos bares que nós. Terminamos no Luxor Hotel, para um leilão de arte e eles estavam lá. O Leite me deixou na casa de Antonio José Medeiros. Eu fiquei lá, conversando um pedacinho. Quando eu saí, para ir pra casa, uns cinco quarteirões depois, vários homens armados saíram de um fusquinha e me prenderam. Rasgaram a cintura da minha calça, eu que era magrinho, para não correr. Aqueles homens fortes, assim, super-armados, me puseram no carro e tcham! (gesticula com a mão, um carro saindo em disparada). Então me levaram para Polícia Federal. Quando eu cheguei, tive a surpresa de ver vários amigos meus já presos, sabe? Nenhum de nós queria pegar em armas e derrubar o sistema, Derrubar o sistema somente com ideias e palavras. Vários amigos presos. Todos que tinham contato com a casa do Antonio José Medeiros começaram a ser presos. Eu fui colocado em uma despensa escura, suja, sabe? Era assim, suja! Porque acho que era uma dispensa. Suja. Ainda hoje eu lembro, que eu estava de roupa branca. Eu fiquei em pé, no escuro. E eu tinha bebido a noite todinha e estava iniciando uma ressaca. A minha vontade mesmo era deitar e dormir. Eu me sentei naquele cubículo escuro e pensei: “Sabe de uma coisa, vou me deitar”. Mas deitar significava que eu ia ficar todo sujo. Era essa exatamente a ideia: ficar sujo e você perder a autoestima?

            Albert apresenta-se como um grande narrador, de afirmações hiperbólicas, coisas como: em Luzilândia o time de futebol dele era o melhor, invicto ou que “poucos conhecem os meus desenhos. Elas não conhecem e nem querem conhecer, mas elas me adoram”, revelando um lado épico que não está interessado em transmitir o “puro em si” da coisa narrada, como um artista da pedra, transformando a informação em narrativa, desenhando em palavras, reconstruindo através delas e imprimindo sua marca na própria fala, “como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN apud MONTENEGRO, 2010, p. 53 e 54). Além disso, como diria Montenegro, seu relato aponta “um exercício de reconstrução do passado recomposto. Nesse aspecto, seus relatos de memória oral apontam ainda para o exercício de reviver experiências, acontecimentos, fatos, possibilitando ao ouvinte transportar-se para o cenário, o contexto reinventado” (2010, p. 56).
            Posso até dizer que minha experiência com a entrevista de história oral foi relativamente bem-sucedida com o Albert Piauí. Meu receio com relação ao local onde foi realizada, um bar em frente a uma rua movimentada, não foi comprovado inteiramente. De fato, sons de carros e caminhões não atrapalharam tanto quanto o descarregamento de várias grades de cervejas que aconteceram durante a conversa. Da mesma forma, uma ou outra frase mais alta das mesas ao lado também não roubaram nossa atenção, bem como o garçom aparecendo e perguntando se trazia outra cerveja ou mesmo quando Albert disse “a saideira e um conhaque”. Detalhes que foram intencionalmente recortados da edição final da transcrição da entrevista.
            Já o roteiro que fiz foi fundamental porque me dava segurança e objetividade na linha do que eu estava querendo, entretanto, as 20 perguntas[3] previamente escritas transformaram-se em quase 60 participações minhas que orientaram sua fala. Mas houveram problemas dignos de nota: Depois de quase 2 horas de conversa, a bateria do gravador acabou. Sorte minha que em momentos oportunos fizemos uma pausa que aproveitei para salvar o arquivo no aparelho mp4. A entrevista foi registrada em 3 arquivos de áudio, o último tem exatamente 32 minutos e, quando a bateria acabou, fiquei desesperado porque não sabia se o aparelho fez um autosave naqueles últimos instantes de energia, ou seja: eu poderia ter simplesmente perdido a última meia hora de conversa, respostas que seriam tão caras pra mim. Não aconteceu, ainda bem.
Eu mantive aqueles últimos 32 minutos que a bateria do gravador registrou, entretanto, as palavras finais do Albert registradas na entrevista foram: “Quando a gente fala de desenho de humor, ninguém conhece esses caras. E outra coisa...”. Essa “outra coisa” ficou nas reticências: o esquecimento providenciado pela falta de bateria. Como a entrevista foi realizada há quase cinco anos é provável que nem o próprio Albert lembre-se do que falou e não ficou registrado.
            Lembro-me que Thompson diz que “nunca comece fazendo uma abertura formal ao microfone: 'Esta é a fita de Fulano entrevistando Beltrano em tal lugar'; isso é uma coisa que formaliza e esfria o ambiente”, ele aconselha que essas informações sejam adicionadas depois (2002, p.270). Esse erro eu cometi, tanto na entrevista com meu irmão como com o Albert.
            A distância entre o dia da gravação e o da transcrição é outro problema. Se tivesse sido transcrito em dias próximos àquele 14 de outubro de 2008, poderia ser que o próprio Albert completasse seu raciocínio e concluísse o parágrafo posteriormente. Entretanto, o processo de transcrição aconteceu no último final de semana na transição entre junho e julho de 2013. E hoje, 7 de julho, Albert deve estar lendo as 15 páginas de texto da sua entrevista e fazendo as correções que acha necessárias antes de assinar o termo de concessão de uso da entrevista para mim. Não preciso nem comentar o quanto tudo isso é errado e dificulta a prática da história oral.
            Determinada hora, Albert fala sobre um assunto delicado e depois de muito dizer sobre ele, afirma, em um dos raros momentos de seriedade de seu depoimento: “eu sei que você não vai publicar isso em seu trabalho”. Eu sorri e, talvez pela liberdade que tinha com o Albert, brinquei: “talvez não”. Ele então reafirmou: “Não, você não vai usar isso!”. É claro que todo caso é um caso, mas “para entrevistar é preciso comportar-se como adulto; não se pode estar com brincadeiras” (THOMPSON, 2002, p. 220) e essa minha fala é o tipo de coisa que pode trancar o entrevistador e levá-lo, inclusive, a recusar-se a falar ou sequer assinar o termo de cessão e uso da entrevista. É preciso estar atento a este tipo de atitude que pode comprometer todo um trabalho.
            Sei que a essa altura do meu relato, fica claro que em nenhum dos casos, nem mesmo na entrevista com meu irmão, eu produzi um termo de cessão de uso para que os entrevistados assinassem. O termo deve ser feito com antecipação e disponível para assinatura, de preferência,  após a gravação ou imediatamente após a aprovação do texto final pelo interlocutor. Acontece que essa “aprovação do texto” acontece durante um processo de construção que envolve quem pergunta e quem responde. Como transcrevi recentemente toda a entrevista que realizei com o Albert, mandei-a por e-mail para que fizesse as alterações que achasse necessárias, ou seja, para que ele corrigisse o que disse, alterasse o seu relato, mudasse o que estava dito e gravado em áudio. À primeira vista isso parece um crime histórico, mas vamos entender isso metodologicamente...
            Em todos esses casos de entrevistas que realizei, não posso afirmar com certeza que havia exercitado a prática da historia oral como rezam os métodos científicos. Primeiro porque não os havia transcrito, segundo porque não os havia analisado sob o prisma de um olhar crítico e histórico. Vamos entender como funciona essa transcrição, já que o arquivo de áudio é uma fonte primária e transcreve-la para o papel exige um processo chamado de transcriação:

O conceito de transcriação é uma mutação, “ação transformada, ação recriada” de uma coisa em outra (…) Nesse sentido, aplica-se à prática da transformação do oral no escrito; a metáfora da água que transmuda do líquido para o gasoso. A palavra também varia na forma do oral para o escrito. É assim que se justificam as variantes de uma mesma fonte, a palavra, que ao perder sua condição etérea ganha dimensões plásticas, viram letras grafadas (MEIHY, 2011, p. 133)

            É nessa dimensão colocada por José Carlos Meihy que entendemos esse processo. A entrevista escrita é outra coisa que deve ser a mesma coisa que em seu “estado” oral, poesia não é poema, “o poema é outro e o mesmo, a entrevista transcriada é outra e a mesma” (2011, p.134). O processo de plastificação da fala pressupõe, claro, outra estética e não se reduz simplesmente a uma transcrição pura. Valendo-se do que disse Frank Kermode, Meihy diz que a fidelidade absoluta da transcrição não implica no ato de saber escrever bem, que a transcrição não deve pretender retratar uma verdade absoluta (2011, p. 135). Bem mais interessante é entender e manter o sentido da fala do interlocutor, retirando os erros gramaticais desnecessários, reparando as palavras sem peso semântico, ignorando os sons, ruídos e interrupções que não contribuem para a entrevista, bem como apresentar o texto transcrito em sua versão final para a autorização do colaborador (2011, p. 139 a 143), o que, de fato, seria a comprovação de um trabalho bem feito.
            Se tiverem curiosidade de observar nos anexos deste meu relato, observarão que a entrevista com o Amaral não foi uma experiencia de oralidade, portanto não houve nem transcrição, muito menos transcriação. Na experiencia com meu irmão, fiz questão de manter os erros que poderiam ter sido corrigidos posteriormente pelo simples caráter didático que ele traz. Mas com relação à entrevista com o Albert, procurei, mesmo muito tardiamente, a seguir o manual de como fazer e como pensar a história oral colocada por Meihy.
            Então, entendendo que “criar” é um verbo sinônimo a “ficcionar”, o processo da entrevista em história oral pode ser entendido como um ato de ficção que envolve o entrevistador e o depoente. Segundo Meihy, “ressalta-se que na prática operacional da produção do texto/documento o entrevistado tenha a função de um operador que em consonância com o colaborador/entrevistador ajude a produzir um texto capaz de dimensionar o encontro” (2011, p. 121) dos dois. Diz ainda que “caso o entrevistado/colaborador, por exemplo, queira tirar algo de seu texto final, ainda na fase anterior à autorização, este poderá exercer seu direito” (2011, p. 121). Por conta disso, o texto foi enviado para Albert visando que ele fizesse as alterações que achasse necessárias sob meu único pedido de “tente apenas manter ao máximo a informalidade e espontaneidade da sua fala”. Meihy ainda afirma que “a textualização final da entrevista é de autoria do historiador, sendo o depoente um colaborador para a fabricação desse novo documento. Pensando o texto final como uma obra que fazemos juntos” (2011, p. 157), deixando bem claro que é função da história oral fabricar fontes, em um processo inteiramente participativo, elaborativo, que foge ao estigma de catalogador de dados e fontes a que o historiador normalmente é pré-julgado.
            Ainda como falei antes, para minha experiência com a oralidade tornar-se mais próxima de uma prática histórica, além da transcriação, falta ainda uma análise crítica. Sobre isso, Verena Alberti, no livro Ouvir Contar, fala-nos a respeito da experiência do senhor Hans Joachim Schröder, que fez uma volumosa pesquisa sobre “Os anos roubados. Histórias narradas e narrativa histórica na entrevista: a segunda guerra mundial do ponto de vista de ex-soldados de tropas”, que é também o enorme título do trabalho que realizou. O livro traz uma vasta pesquisa documental que confirmavam o conteúdo dos depoimentos recolhidos, demonstrando que

a análise das entrevistas consiste em comparar trechos selecionados com conteúdos de livros, artigos e romances sobre a Segunda Guerra e sobre outras guerras. Tais comparações tem o objetivo corroborar o caráter não efêmero das entrevistas, mas acabam dando a impressão de que todo o trabalho era dispensável, já que as informações fornecidas já se encontravam alhures (ALBERTI, 2004, p.62).

            Cabe ao historiador, claro, buscar construir um novo conhecimento ou mesmo uma nova perspectiva sobre a coisa analisada. Não faz sentido produzir um trabalho envolvendo a história oral, a partir de qualquer abordagem que seja (como técnica, metodologia ou disciplina), se não for procurando iluminar um tema a partir de novos olhares. A história oral não deve servir apenas como prova subjetiva de fontes materiais.
            Outra lição aprendida com a leitura sobre Schröder diz respeito, novamente, à problematização das entrevistas. Depois de provar que as falas de seus entrevistados eram válidas para a história apenas comparando-as com outras fontes disponíveis, o autor disponibilizou grande quantidade delas publicando-as em seu livro para que servissem de fonte para outras pesquisas. Segundo Verena Alberti:

A incapacidade de lidar com o saber do outro fica clara pelo fato de o pesquisador deixar as entrevistas falarem por si, como se o trabalho de colhê-las já demonstrasse esforço intelectual suficiente. Quer-se realmente conhecer o saber dos outros, ou quer-se apenas provar que aquilo que se faz é legítimo e, em seguida, oferecer o material coletado para outras pesquisas? (2004, p.67)

            Diante de tudo exposto até aqui e julgando que minha entrevista com o Albert pode ser considerada uma boa entrevista de história oral (permitam-me aqui uma auto-avaliação) chego ao imbróglio de Schröder: e agora? O que fazer com minha entrevista? Compará-la a outras fontes? Publicá-la na integra para servir a outras pesquisas? Sim, claro! Mas o que aprendemos com Verena é que não podemos nos limitar a isso. A entrevista bem feita e a transcriação são apenas os primeiros passos de um processo. Cabe a mim, agora, ciente do que foi aqui colocado, passar a diante, para a análise histórica, que na história oral não é diferente de nenhuma outra.
            O Salão de Humor do Piauí é o objeto de pesquisa do mestrado que curso nestes dias de 2013, e o Albert Piauí é uma das mais caras fontes de pesquisa para mim. Entretanto, a análise histórica do Salão de Humor ainda nem começou. Há muitas pessoas a entrevistar, muitas outras fontes a verificar, muitas informações para serem cruzadas, verificadas, analisadas e muita história ainda a escrever. Os próximos semestres me aguardam.

Referência bibliográfica
MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. São Paulo: Contexto, 2010.
MEIHY, José Carlos Sebe B. História Oral: Como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto. 2ª ed. 2011.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e terra, 3ª ed. 2002.
BERNSTEIN, Serge, MILZA, Pierre in CHAUVEAU, Agnes, TETART, Philippe. Questões para a história do presente. Bauru: EDUSC, 1999.
ALBERTI. Verena. Ouvir Contar: Textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV. 2004.


[1]Maiores informações sobre a entrevista com  Amaral em minha monografia, de 2005, disponível na biblioteca da UESPI.
[2]Se bem que usei um mp4 para capturar a entrevista direto no aparelho, sem a utilização de um microfone externo, talvez por isso a qualidade ruim do áudio original. Entretanto, me permiti a liberdade de usar a palavra “microfone” porque coube bem no texto. Às vezes a estética narrativa sobrepõe-se à verdade histórica.
[3]As perguntas que formulei originalmente estão em anexo.

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