quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Estrada para Perdição: preferências entre diferenças

Iniciado 18/08/2014 e concluído em 20/08/2014.

Obs: Este texto contém informações que podem prejudicar a leitura tanto do filme, quanto do quadrinho aqui citados. Ou seja: tá cheio de spoilers.

Introdução

Acabei de ler o quadrinho Estrada para Perdição, escrito por Max Allan Collins e desenhado por Richard Piers Rayner. Há dois dias atrás revi, depois de vários anos, o filme homônimo dirigido por Sam Mendes. Essa agradável pesquisa só foi realizada por causa do convite do amigo Aristides Oliveira para que eu participasse de um encontro sobre cinema, literatura, quadrinhos e história. A ideia era que eu sugerisse um filme inspirado ou baseado em quadrinhos, que seria exibido durante a programação do evento, e depois pudesse traçar alguns comentários acerca do original e sua adaptação. Qual filme eu deveria escolher? Pensei durante uns três minutos e decidi que deveria ser um filme que poucos tivessem conhecimento de sua ligação com os quadrinhos Não queria nada óbvio como Batman ou Homem-Aranha. Algumas opções como American Splendor e Terror na Antártida passaram pela minha cabeça. Me decidi por Estrada para Perdição, pela boa repercussão entre a crítica que o filme teve, estrelado por gente como Paul Newman, Tom Hanks, Jude Law e Daniel Craig.



Enquanto escrevo estas linhas, penso: qual versão eu gostei mais? O quadrinho de Estrada para Perdição ou o filme? Na maioria das vezes fujo desse tipo de pergunta, sempre levantando a hipótese de que se tratam de linguagens muito diferentes, logo não dá para compará-las. A cada dia que passa, penso que esse tipo de escanteio é uma forma de não tratar nossas preferências pessoas com mais juízo e critério. É evidente que são coisas diferentes: um é quadrinho e o outro é cinema. Por isso, gosto deles de maneiras diferentes, mas também com intensidades diferentes. Entretanto, se eu parar para avaliar as diferenças narrativas entre as versões poderei julgar qual das obras me agrada mais, afinal, elas surgem no contraponto das semelhanças, e nesse questão, as duas obras tem bastante coisas em comum: obviamente, elas contam, a princípio, a mesma história do assassino da máfia escocesa Michael Sullivan tentando vingar a morte de sua família, enquanto dirige pelas estradas de Nova Iorque da depressão pós-29, acompanhado do seu filho. Considerando apenas isso, podemos julgar, usando critérios rigorosos, temperadas por doses reguladas de preferências pessoais, quem conta melhor essa história. Outra semelhança que permite o comparativo vai além da obra e recorta-se nos limites da forma: ambas são narrativas. Uma boa tela a óleo possui narrativa. Cinema e quadrinhos, assim como a literatura ou teatro possuem um “contar sobre” que coloca essas artes todas construídas sobre a base das narrativas. A leitura narrativa dessas artes são ligeiramente semelhantes, o verbal, o imagético e o temporal, seja durante uma projeção, encenação ou leitura, estabelecem um processo narrativo. Toda arte é narrativa. Se não narrar algo, não merece ser chamada de arte.

Em sendo Estrada para Perdição, quadrinho e filme, ambos, ótimas narrativas sobre o mesmo tema, é possível decidir criticamente qual deles é o melhor em suas versões. Percebam que não estou escolhendo uma arte em detrimento da outra. Não se trata de dizer qual arte é mais importante, mais eficaz ou melhor. Esse tipo de discussão é infantil e não leva a lugar nenhum. A ideia é julgar as diferenças, mas não as linguísticas e suas limitações, e sim as diferenças no âmbito do drama narrativo envolvendo a história contada: a adaptação cinematográfica, por vir depois, escolhe e constrói essas diferenças. Por que isso é feito? Com quais intenções? São mudanças que melhoram a narrativa original ou a empobrecem? Enfim, as diferenças nos permite decidir qual versão nos agrada mais, mesmo que o julgamento seja feito baseado em critérios pessoais, ele deve ser feito com clareza, responsabilidade e respeito por ambas as obras.



Comparando a diferença com o original

Para efeito de melhor compreensão, vamos chamar o assassino da máfia de Sullivan e seu filho de Michael, já que eles possuem o mesmo primeiro nome. Pois bem, tanto no quadrinho como o filme, Michael é o narrador da história. É ele quem conta a história do pai. Acontece que no quadrinho a presença do narrador é muito mais forte, eventualmente aparecendo enquanto escreve suas memórias. No filme, a narrativa de Michael aparece, salvo engano, em apenas dois momentos: no começo e no fim. O filme conta a história através da narrativa das imagens utilizando menos a presença do narrador. Isso me agrada mais. O narrador sempre foi, para mim, uma figura indecisa, que não sabe até onde vai seu conhecimento, mesmo quando é onisciente. Não me agrada muito a presença do narrador em artes como quadrinhos e cinema, frutos de uma narrativa muito mais imagética do que textual. Assim como também não me agrada os balões ou voz em off representando pensamentos. Mas eu disse que tentaria não explorar os limites linguísticos, então, o que importa é que o filme parece mais interessante quando explora menos o Michael narrador.



O começo do quadrinho preocupa-se em apresentar os personagens, a cidade, a depressão, a corrupção, o tráfico, de forma bem rápida e na nona página já somos levados ao ponto de virada da história, quando Michael, curioso, entra no carro do pai para tentar descobrir o que ele faz para ganhar a vida. O filme tem uma certa delicadeza em apresentar esses elementos. O Sr. Looney, patrão de Sullivan, é introduzido no filme de forma muito especial, tratando Michael e seu irmão como se fossem netos e o próprio Sullivan como se fosse um filho. Aliás, a representação de Looney no filme é o ponto mais destoante em comparação à versão original. No filme, mesmo sendo um chefão do crime, ele é sereno, melancólico e até mesmo doce, a figura de um avô divertido, enquanto no quadrinho ele é nervoso, que não evita gritar quando necessário e representa um poder opressor.



Já que estamos falando de Looney, cabe aqui dizer que no filme ele não toma parte no assassinato da família de Sullivan. É tudo trama do seu filho, Connor. Isso também é uma diferença gigantesca entre as versões. No filme, Looney ama Sullivan como a um filho (o que fica evidente na cena em que tocam piano juntos). No quadrinhos, Sullivan é apenas o Anjo da Morte, um bom assassino que precisava ser apagado: queima de arquivo. No filme, Looney agride Connor por ter atacado a família de Sullivan. No quadrinho, Looney é quem entrega a Sullivan o envelope que traz a ordem escondida para que o próprio seja assassinado. Quem entrega o envelope, no filme, é Connor, deixando subentendido que o real motivo para a tentativa de assassinato de Sullivan é a inveja que Connor sente dele por conta da relação fraternal que existe entre Looney e Sullivan.



Tudo isso é muito diferente entre o filme e o quadrinho, por conta disso o desenrolar da história tem perspectivas divergentes. No filme, Sullivan sabe que Looney não deu a ordem de morte. Existe um respeito entre os dois, por isso, é muito emocionante a cena da chuva, quando Sullivan descarrega todos os tiros de uma thompson sobre Looney e seus capangas. Antes de morrer, Looney diz algo mais ou menos assim para Sullivan: “Que bom que foi você.” No quadrinho, Looney foge para o México e para Sullivan conseguir atingi-lo precisa revelar o esconderijo do mafioso para a polícia, que vai ao seu encalço. Looney não morre no quadrinho, é apenas preso por um policial em serviço. Na ocasião ele diz: “Por que ele não veio pessoalmente? Eu seu que quer me matar...”. O Policial responde: “Ele me disse que quer que você sofra... Que sobreviva sabendo que seu filho morreu violentamente”. No quadrinho, você não sente nenhuma simpatia por Looney e pode até ficar satisfeito com a vingança elaborada por Sullivan. No filme, você sente a perda, tanto de Sullivan quanto do próprio Looney. É uma tragédia shakespeariana. Tom Hanks sofre ao disparar a thompson. Prefiro a forma como foi adaptada no cinema.

               Filho esperando o pai, depois que ele mata algumas dezenas de pessoas.

A relação entre Michael e Sullivan é fundamental para a história. Durante o tempo em que eles passam na estrada, o sentimento de pai e filho é construído mais fortemente, como se a tragédia os tivesse aproximado. Isso é bem construído e é essencialmente semelhante tanto no quadrinho quanto no filme. Entretanto, há uma diferença significativa. No filme, Michael não quer segurar uma arma, nem como auto defesa, quando seu pai a oferece pela primeira vez. No quadrinho (2002, vol 1, p. 69), quando Sullivan diz que os assassinos de sua mulher e filho podem voltar, Michael pede: “Então me dê uma arma! A gente espera esses canalhas! Aqui é o nosso lar!”. Antes disso, quando Michael descobre o que o pai faz, Sullivan diz que é um soldado de Looney, como que tentando justificar seus crimes. Michael diz que não quer ser soldado, Sullivan responde: “ótimo!” (2002, vol 1, p. 36).  Sullivan não quer que o filho torne-se um assassino. No filme, Michael recusa naturalmente a arma, enquanto que no quadrinho ele quer uma. É uma diferença sensível no personagem. Acontece que no filme, Michael não mata ninguém e no quadrinho ele tira a vida de dois capangas, em cenas diferentes. A primeira morte pelas mãos de Michael acontece na metade do segundo volume, ou seja, no meio da história. Na minha opinião isso diminui uma trama que é a de que, mesmo Michael sendo filho de Sullivan, ele poderia ter uma vida diferente da do pai, não se tornando um assassino.



       Tanto no filme quanto no quadrinho o objetivo de não macular a alma de Michael com o assassínio é bem trabalhada. Na cena em que Michael mata o primeiro (2002, vol. 2, p. 77 a 79), Sullivan diz: “Perdoe-me Annie”, pedindo desculpas à mulher por ter condenado o próprio filho nessa estrada, que é, literalmente, da perdição. Michael se arrepende e diz que não quer ir pro inferno, pois a bíblia diz “não matarás”. No filme, em cena de diálogo, Looney diz que todos os envolvidos naquele história irão para o inferno, ao que Sullivan responde algo parecido com isso: “Michael não. Ele pode se salvar”. No quadrinho, uma criança é condenada ao assassinato. No filme, não. De certa forma, no quadrinho seria mais interessante se não descobríssemos que Michael se arrepende e torna-se um padre ao final de toda a história. Talvez ele tenha sido absolvido. Um final feliz. Entretanto, prefiro o modo do filme, que leva a tensão sobre a alma do garoto até, praticamente, a última cena, quando Michael não consegue matar o assassino do próprio pai. No filme, antes de morrer, Sullivan atira em Maguire (Jude Law) pelas costas e morre feliz, em redenção porque conseguiu salvar o filho, evitando que ele torne-se como o próprio pai. Também, um final feliz.

Conclusão

Acredito que os pontos divergentes trabalhados até aqui são os essenciais, os que tornam, de fato, as narrativas diferentes no âmago de suas estórias. Entretanto, existem vários detalhes que tornam o filme diferente do quadrinho, como, por exemplo, Maguire, o assassino contratado para caçar Sullivan. No quadrinho ele sequer tem nome e só aparece nas últimas páginas. No filme, ele é um personagem fascinante que cria uma tensão de caça ao rato e, provavelmente, é autor da melhor cena de diálogo do longa-metragem (quando ele encontra com Sullivan em um trailer no meio do nada).

Jude Law

Nesses pontos essenciais, considero as diferenças melhores que no original, mas o quadrinho vantagens que reconheço, mas não prefiro. É evidente que o quadrinho tem mais cenas de ação, de bang bang! O filme parece mais frio, o quadrinho é quente! Existe uma cena fantástica apenas no quadrinho, quando Sullivan assalta e incendeia o barco Quinlan (aliás, esse é um fato histórico. Quinlan realmente existiu e pegou fogo) para convencer a máfia de Chicago a entregarem Connor. No filme, na cena em que Sullivan vai falar com Nitti, o braço direito de Al Capone, sobre toda essa situação, as coisas são resolvidas numa conversa. No quadrinho, Sullivan mata dezenas de capangas para fugir do prédio, descendo o corrimão e disparando pra todo lado. No filme, a mulher e filho de Sullivan não aparecem mortos. Sam Mendes prefere não mostrar os corpos, apenas o rosto triste de Tom Hanks foi suficiente para sugerir. No quadrinho, os corpos são apresentados ensanguentados e numa longa cena de luto e despedida. Às vezes, a sugestão, ao invés de uma cena mórbida, pode ser muito melhor (eu acho!) No quadrinho, Al Capone é um personagem recorrente, no filme é apenas a sugestão de uma sombra poderosa.
Colocando tudo na balança e, usando como contrapeso as preferências pessoais, preciso dizer que o filme me agrada mais na forma sutil como tudo é narrado. Entretanto, o quadrinho é uma grande obra, com desenhos fabulosos e uma incrível mensagem. Elas são diferentes. Exatamente por isso, preciso escolher qual me agrada mais.

Preciso dizer ainda que essa avaliação parece uma exceção à regra. Penso em adaptações como Scott Pilgrim, Watchmen, Akira, 300 de Esparta, Sin City e todos os originais são claramente melhores quando faço uma rápida análise. Normalmente, o original é sempre melhor. E pra você? Qual adaptação é melhor que o original?

Nenhum comentário: