Quando penso em quadrinhos brasileiros o primeiro exemplo que me vem à mente é a Turma da Mônica, em segundo lugar vem o grupo de pessoas que construíram um grande legado na década de 80: Angeli, Laerte e Glauco. Daí, posso chegar facilmente numa conclusão precipitada de que temos um veio forte na área dos quadrinhos de humor. Trilhando por esse caminho penso em quem mais fez isso no Brasil e logo me vem à mente pessoas como Henfil, Ziraldo, Veríssimo, irmãos Caruso, Miguel Paiva, J. Carlos e chego até no Angelo Agostine. Percebo, analisando esses nomes, que temos uma forte ligação com as tirinhas, cartuns e charges cômicas. Deduzo que a identidade do quadrinho nacional perpassa o humor.
Para definir melhor, procuro analisar qual o formato que o quadrinho
nacional mais utiliza. Isso é importante porque o “formato (norte)
americano” é extremamente reconhecido, assim como o formato Jump
japonês. Entretanto, essa é uma conclusão difícil de atingir no
mercado brasileiro, pois grande parte desse pessoal que citei acima
começou nas tiras de jornais e o jornal é na verdade o primeiro
grande suporte para os quadrinhos como conhecemos hoje em todo o
mundo, logo não posso determiná-lo como um formato brasileiro.
Talvez o formato mais longevo no nosso mercado seja o “formatinho”,
popularizado pela editora Abril, mas que tinha nos quadrinhos Marvel
e DC o carro-chefe, isso, evidentemente, o excluiria como “o
formato nacional”. Então eu penso um pouco mais e deduzo: nunca
tive uma revista “Gibi” nas mãos, mas imagino que ela tivesse o
formato tabloide, fruto de sua forte ligação com o jornal do
Roberto Marinho. Se eu estiver enganado, peço desculpas e abraço-me
com o formato “magazine” de aproximadamente 20 x 26,5cm, típico
da turma do Chiclete com Banana.
As coisas começam a se desenhar: a identidade do quadrinho nacional
é o humor no formato magazine... Mas 'pera aí! Estou esquecendo de
muita coisa aqui! É claro que o quadrinho brasileiro tem uma forte
tradição nesse gênero e formato, mas onde eu encaixaria a Mirza de
Colonesse e todos os outros quadrinhos de terror que durante décadas
foram publicados por aqui? Onde eu encaixaria nessa identidade do
quadrinho nacional os traços dos descendentes nipônicos Júlio
Shimamoto, Cláudio Seto e Keize Minami? E os quadrinhos eróticos de
Seabra e Zéfiro? E a tradição de quadrinhos de super-heróis desde
o Capitão 7 e Raio Negro, criado por Gedeone Malagola, até o Quebra
Queixo de Marcelo Campos? Teria de deixar de lado os quadrinhos de
fantasia e de ficção científica de pessoas como Mozart Couto e
Watson Portela?
A única conclusão a que eu chego é que definir uma identidade do
quadrinho nacional imediatamente excluiria essas outras identidades.
Definir isso perpassa e entrelaça-se com a discussão de identidade
nacional. Aí eu posso perguntar: o que é ser brasileiro? Muitos
sociólogos, antropólogos e historiadores debruçam-se ferozmente
sobre essa indagação, para me limitar a um nome, cito Gilberto
Freyre, que escreveu Casa Grande & Senzala na década de 30,
provavelmente olhando pela janela de seu escritório todo o fidalgo
passado que sua vista podia contemplar no enorme quintal à sua
frente. Descendente de portugueses, construiu um livro ressaltando as
características desse povo e explicando o porquê teria sido tão
bem sucedido na tarefa de construir nosso país.
Freyre fez uma grande defesa do hibridismo brasileiro, valorizando,
principalmente, a participação do negro em nossa sociedade, mas
ele inicia seu livro falando que o próprio povo português já era
fruto de um hibridismo secular antes mesmo de Pedro Álvarez Cabral.
O povo mouro, os descendentes árabes e africanos, de modo geral, já
estavam presentes na realidade cotidiana do português, sendo assim,
eles próprios já eram misturados. O povo português possuía uma
forte presença de peles de tons escuros, diferentes do fenótipo
comum que imaginamos ser o europeu: loiro de olhos azuis. Essa
influencia moura se via presente não somente na pele e cabelos mais
escuros que o comum, mas a presença da própria religião maometana
teria também “amolecido” o sentimento católico no coração do
português com relação a tolerância religiosa ou mesmo
desenvolvido uma mistura de misticismo, valores e moral mistas. Ou
seja, o povo português veio e “misturou-se gostosamente” com os
daqui e com os da África que para cá também vieram. A brasilidade
foi construída na mistura e esse seria nosso mais importante legado
também nos quadrinhos, afinal Angelo Agostine foi descendente de
italianos, assim como Colonesse, e para cá também vieram os
japoneses e seu mangá.
Como diria Stuart Hall, “as identidades nacionais não são coisas
com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no
interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser
'inglês' devido ao modo como a 'inglesidade' veio a ser
representada” (2003, p.48 – 49). Ou seja, o valor de uma
representação é algo construído a partir de um discurso e esse
discurso estabelece-se de várias formas a partir de uma relação de
poder cultural, seja através das grandes narrativas nacionais
consolidadas por uma história e literatura hegemônica que
agarram-se com força às origens das coisas e à continuidade
atemporal da tradição (HALL, p. 52 – 53).
E o próprio Hall
continua, dizendo que não importa o quão diferente e híbrido possa
ser um país, pois “uma cultura nacional busca unificá-los numa
identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à
mesma e grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma
identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e
subordina a diferença cultural?” (2003, p. 59).
A pergunta de Hall é uma daquelas que não quer calar. Afinal,
precisamos subordinar uma tradição de quadrinho em diferença à
outra porque essa teve mais força para consolidar-se no mercado?
Seria o quadrinho de humor de Agostine, um branco descendente de
italianos, mais representante da brasilidade do que o terror do
nipônico Shimamoto? Faz sentido falar de identidade nacional quando
boa parte dos baluartes de nossa arte sequencial tem fortes
influencias estrangeiras? Definir uma identidade não estaria apenas
reforçando uma hegemonia cultural em relação à outra? Abusando de
Hall, ele ainda diz que:
…a cultura “britânica”
não consiste de uma parceria igual entre as culturas componentes do
Reino Unido, mas da hegemonia efetiva da cultura 'inglesa',
localizada no sul, que se representa a si própria como a cultura
britânica essencial, por cima das culturas escocesas, galesas e
irlandesas e, na verdade, por cima de outras culturas regionais
(2003, p.60).
Ora, imagine que Hall está falando, essencialmente, de uma ilha que
é a Inglaterra e de todas essas influencias regionais! Avalie isso
aqui no Brasil, um país imenso, com tantas culturas diferentes que
poderiam formar cada uma suas próprias nações. Como determinar um
quadrinho culturalmente brasileiro? É aquele feitos nos pampas
gaúchos? Aquele feito pelos índios amazônicos ou pelos Jecas do
Sul? Ou seria aquele da tradição açucareira de Pernambuco?
Evidentemente, se eu quiser fazer um quadrinho piauiense logo estaria
desenhando para sempre o Foices & Facões, quadrinho sobre
vaqueiros... Ou melhor: posso narrar sobre a cristalinidade da
Cajuína ou sobre a ponte Estaiada, nosso mais novo cartão postal e
suporte identitário.
Para citar outro pessoa que preocupa-se com essas definições de
identidades culturais a partir de narrativas nacionais, cabe aqui o
Bhabha:
O que é politicamente
significativo é o efeito desta finitude do Estado na representação
liminar do povo. O povo não mais estará contido naquele discurso
nacional da teleologia do progresso, do anonimato de indivíduos, da
horizontalidade espacial da comunidade, do tempo homogêneo das
narrativas sociais, da visibilidade historicista da modernidade (…)
A finitude da nação enfatiza a impossibilidade de tal totalidade
expressiva com sua aliança entre um presente pleno e a visibilidade
eterna de um passado. A liminaridade do povo - sua inscrição-dupla
como objeto pedagógico e sujeito performativo – demanda um "tempo"
de narrativa que é recusado no discurso do historicismo, no qual a
narrativa é somente a agencia do acontecimento ou o meio de uma
continuidade naturalista da Comunidade ou da Tradição (BHABHA,
2013, p. 245).
Quando
Bhabha refere-se a objeto pedagógico ele quer falar de uma
“sedimentação histórica”, ou seja, de uma consolidação da
tradição onde grande parte do povo excluído como protagonista das
grandes narrativas não enxerga-se incluído nesse discurso nacional,
o mesmo discurso que cria uma representação e que se perpetua no
tempo, por isso que o autor fala de uma aliança entre um presente e
um passado: uma antiga tradição hegemônica sendo sempre reimpressa
hoje. Logo, voltando para a discussão do quadrinho nacional, não
posso dizer que a sua identidade seja o quadrinho de humor porque eu
provavelmente estaria reforçando a hegemonia de um gênero e o poder
cultural evidente que a Mauricio de Sousa Produções tem no mercado
brasileiro em detrimento a tantos outros.
Para
ainda falar de Bhabha, ele faz uma associação entre escada, poço e
sótão para explicar seu conceito de “entre-lugar”, onde “o
poço da escada tornou-se um espaço liminar, uma passagem entre as
áreas superior e inferior” (GREEN apud BHABHA, p. 23)”.
Para o autor, vivemos no mundo pós-colonial onde as nação são
essencialmente híbridas, e isso não se dá apenas pela globalização
atual, mas por todo o processo secular de colonização onde vários
povos puderam-se encontrar. Esses encontros proporcionaram
intercessões culturais entre povos diferentes.
O
poço-escada como espaço liminar, situado no meio das designações
de identidade, transforma-se no processo de interação simbólica, o
tecido de ligação constrói a diferença entre superior e inferior,
negro e branco. O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e
a passagem que ele propicia, evita que as identidades a cada
extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais. Essa
passagem intersticial entre identificações fixas abre a
possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem
uma hierarquia suposta ou imposta (BHABHA, 2013, p. 23)
Ou seja,
o ir de vir de influencias entre a produção nacional e
internacional de quadrinhos cria uma experiência que hibridiza as
formas de se fazer essa cultura. É por isso que Érica Awano e
Marcelo Cassaro puderam fazer um dos grandes sucesso da arte
sequencial brasileira: Holy Avenger, que é intimamente ligado ao
estilo japonês de produção mas que não deixa de representar sua
brasilidade.
Talvez
exista algo no “jeito” de fazer determinados quadrinhos que o
identifique com uma nação. Penso em Tex & Cia, os títulos da
editora Bonelli. O Bang Bang do quadrinho italiano (mesmo
quando não é retratando exatamente o Velho Oeste norte-americano,
como no caso de Mister No e Dylan Dog) é muito característico: possui formato,
temas, diagramação e narrativas muito determinantes que demonstram
uma identidade construída durante décadas pelo próprio Sergio
Bonelli, fundador da editora. Existe um jeito bonelliano de fazer
quadrinhos, mesmo quando os protagonistas das suas histórias não
possuem nenhuma descendência italiana: em sua maioria, esses
personagens são americanos ou ingleses.
Entretanto,
dizer que o jeito Bonelli de fazer quadrinhos, por serem os
quadrinhos italianos mais popularizados no mundo, seja a sua
identidade quadrinística exclui as outras representações por lá
construídas. Afinal, só para citar alguns nomes, onde encaixaríamos
na construção dessa identidade italiana a produção de autores
como Milo Manara, Hugo Pratt, Guido Crepax e Paolo Serpieri?
Então, reforçando aqui o que disse Freyre, Stuart e Bhabha, devo concluir que a cultura brasileira é híbrida, pois nossos autores são tocados e transformados por tantas culturas diferentes que não deveríamos sequer cogitar a possibilidade de encontrar “a” identidade brasileira, “o” bastião da linguagem quadrinística local, até porque, como já sabemos há muito tempo, a linguagem de uma arte é algo sem fronteiras e a língua sempre será festa.
HALL.
Stuart. A Identidade Cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A EDITORA. 7ª ed. 2003.
BHABHA.
Homi. O Local da Cultura. 2013.
FREYRE,
Gilberto. Casa Grande e Senzala.
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