quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Afinal, o que são os quadrinhos brasileiros?


 Quando penso em quadrinhos brasileiros o primeiro exemplo que me vem à mente é a Turma da Mônica, em segundo lugar vem o grupo de pessoas que construíram um grande legado na década de 80: Angeli, Laerte e Glauco. Daí, posso chegar facilmente numa conclusão precipitada de que temos um veio forte na área dos quadrinhos de humor. Trilhando por esse caminho penso em quem mais fez isso no Brasil e logo me vem à mente pessoas como Henfil, Ziraldo, Veríssimo, irmãos Caruso, Miguel Paiva, J. Carlos e chego até no Angelo Agostine. Percebo, analisando esses nomes, que temos uma forte ligação com as tirinhas, cartuns e charges cômicas. Deduzo que a identidade do quadrinho nacional perpassa o humor.

 Para definir melhor, procuro analisar qual o formato que o quadrinho nacional mais utiliza. Isso é importante porque o “formato (norte) americano” é extremamente reconhecido, assim como o formato Jump japonês. Entretanto, essa é uma conclusão difícil de atingir no mercado brasileiro, pois grande parte desse pessoal que citei acima começou nas tiras de jornais e o jornal é na verdade o primeiro grande suporte para os quadrinhos como conhecemos hoje em todo o mundo, logo não posso determiná-lo como um formato brasileiro. Talvez o formato mais longevo no nosso mercado seja o “formatinho”, popularizado pela editora Abril, mas que tinha nos quadrinhos Marvel e DC o carro-chefe, isso, evidentemente, o excluiria como “o formato nacional”. Então eu penso um pouco mais e deduzo: nunca tive uma revista “Gibi” nas mãos, mas imagino que ela tivesse o formato tabloide, fruto de sua forte ligação com o jornal do Roberto Marinho. Se eu estiver enganado, peço desculpas e abraço-me com o formato “magazine” de aproximadamente 20 x 26,5cm, típico da turma do Chiclete com Banana.


As coisas começam a se desenhar: a identidade do quadrinho nacional é o humor no formato magazine... Mas 'pera aí! Estou esquecendo de muita coisa aqui! É claro que o quadrinho brasileiro tem uma forte tradição nesse gênero e formato, mas onde eu encaixaria a Mirza de Colonesse e todos os outros quadrinhos de terror que durante décadas foram publicados por aqui? Onde eu encaixaria nessa identidade do quadrinho nacional os traços dos descendentes nipônicos Júlio Shimamoto, Cláudio Seto e Keize Minami? E os quadrinhos eróticos de Seabra e Zéfiro? E a tradição de quadrinhos de super-heróis desde o Capitão 7 e Raio Negro, criado por Gedeone Malagola, até o Quebra Queixo de Marcelo Campos? Teria de deixar de lado os quadrinhos de fantasia e de ficção científica de pessoas como Mozart Couto e Watson Portela?


A única conclusão a que eu chego é que definir uma identidade do quadrinho nacional imediatamente excluiria essas outras identidades. Definir isso perpassa e entrelaça-se com a discussão de identidade nacional. Aí eu posso perguntar: o que é ser brasileiro? Muitos sociólogos, antropólogos e historiadores debruçam-se ferozmente sobre essa indagação, para me limitar a um nome, cito Gilberto Freyre, que escreveu Casa Grande & Senzala na década de 30, provavelmente olhando pela janela de seu escritório todo o fidalgo passado que sua vista podia contemplar no enorme quintal à sua frente. Descendente de portugueses, construiu um livro ressaltando as características desse povo e explicando o porquê teria sido tão bem sucedido na tarefa de construir nosso país.


Freyre fez uma grande defesa do hibridismo brasileiro, valorizando, principalmente, a participação do negro em nossa sociedade, mas ele inicia seu livro falando que o próprio povo português já era fruto de um hibridismo secular antes mesmo de Pedro Álvarez Cabral. O povo mouro, os descendentes árabes e africanos, de modo geral, já estavam presentes na realidade cotidiana do português, sendo assim, eles próprios já eram misturados. O povo português possuía uma forte presença de peles de tons escuros, diferentes do fenótipo comum que imaginamos ser o europeu: loiro de olhos azuis. Essa influencia moura se via presente não somente na pele e cabelos mais escuros que o comum, mas a presença da própria religião maometana teria também “amolecido” o sentimento católico no coração do português com relação a tolerância religiosa ou mesmo desenvolvido uma mistura de misticismo, valores e moral mistas. Ou seja, o povo português veio e “misturou-se gostosamente” com os daqui e com os da África que para cá também vieram. A brasilidade foi construída na mistura e esse seria nosso mais importante legado também nos quadrinhos, afinal Angelo Agostine foi descendente de italianos, assim como Colonesse, e para cá também vieram os japoneses e seu mangá.


Como diria Stuart Hall, “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser 'inglês' devido ao modo como a 'inglesidade' veio a ser representada” (2003, p.48 – 49). Ou seja, o valor de uma representação é algo construído a partir de um discurso e esse discurso estabelece-se de várias formas a partir de uma relação de poder cultural, seja através das grandes narrativas nacionais consolidadas por uma história e literatura hegemônica que agarram-se com força às origens das coisas e à continuidade atemporal da tradição (HALL, p. 52 – 53). 

E o próprio Hall continua, dizendo que não importa o quão diferente e híbrido possa ser um país, pois “uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural?” (2003, p. 59).


A pergunta de Hall é uma daquelas que não quer calar. Afinal, precisamos subordinar uma tradição de quadrinho em diferença à outra porque essa teve mais força para consolidar-se no mercado? Seria o quadrinho de humor de Agostine, um branco descendente de italianos, mais representante da brasilidade do que o terror do nipônico Shimamoto? Faz sentido falar de identidade nacional quando boa parte dos baluartes de nossa arte sequencial tem fortes influencias estrangeiras? Definir uma identidade não estaria apenas reforçando uma hegemonia cultural em relação à outra? Abusando de Hall, ele ainda diz que:



…a cultura “britânica” não consiste de uma parceria igual entre as culturas componentes do Reino Unido, mas da hegemonia efetiva da cultura 'inglesa', localizada no sul, que se representa a si própria como a cultura britânica essencial, por cima das culturas escocesas, galesas e irlandesas e, na verdade, por cima de outras culturas regionais (2003, p.60).



Ora, imagine que Hall está falando, essencialmente, de uma ilha que é a Inglaterra e de todas essas influencias regionais! Avalie isso aqui no Brasil, um país imenso, com tantas culturas diferentes que poderiam formar cada uma suas próprias nações. Como determinar um quadrinho culturalmente brasileiro? É aquele feitos nos pampas gaúchos? Aquele feito pelos índios amazônicos ou pelos Jecas do Sul? Ou seria aquele da tradição açucareira de Pernambuco? Evidentemente, se eu quiser fazer um quadrinho piauiense logo estaria desenhando para sempre o Foices & Facões, quadrinho sobre vaqueiros... Ou melhor: posso narrar sobre a cristalinidade da Cajuína ou sobre a ponte Estaiada, nosso mais novo cartão postal e suporte identitário.


Para citar outro pessoa que preocupa-se com essas definições de identidades culturais a partir de narrativas nacionais, cabe aqui o Bhabha:



O que é politicamente significativo é o efeito desta finitude do Estado na representação liminar do povo. O povo não mais estará contido naquele discurso nacional da teleologia do progresso, do anonimato de indivíduos, da horizontalidade espacial da comunidade, do tempo homogêneo das narrativas sociais, da visibilidade historicista da modernidade (…) A finitude da nação enfatiza a impossibilidade de tal totalidade expressiva com sua aliança entre um presente pleno e a visibilidade eterna de um passado. A liminaridade do povo - sua inscrição-dupla como objeto pedagógico e sujeito performativo – demanda um "tempo" de narrativa que é recusado no discurso do historicismo, no qual a narrativa é somente a agencia do acontecimento ou o meio de uma continuidade naturalista da Comunidade ou da Tradição (BHABHA, 2013, p. 245).



Quando Bhabha refere-se a objeto pedagógico ele quer falar de uma “sedimentação histórica”, ou seja, de uma consolidação da tradição onde grande parte do povo excluído como protagonista das grandes narrativas não enxerga-se incluído nesse discurso nacional, o mesmo discurso que cria uma representação e que se perpetua no tempo, por isso que o autor fala de uma aliança entre um presente e um passado: uma antiga tradição hegemônica sendo sempre reimpressa hoje. Logo, voltando para a discussão do quadrinho nacional, não posso dizer que a sua identidade seja o quadrinho de humor porque eu provavelmente estaria reforçando a hegemonia de um gênero e o poder cultural evidente que a Mauricio de Sousa Produções tem no mercado brasileiro em detrimento a tantos outros.


Para ainda falar de Bhabha, ele faz uma associação entre escada, poço e sótão para explicar seu conceito de “entre-lugar”, onde “o poço da escada tornou-se um espaço liminar, uma passagem entre as áreas superior e inferior” (GREEN apud BHABHA, p. 23)”. Para o autor, vivemos no mundo pós-colonial onde as nação são essencialmente híbridas, e isso não se dá apenas pela globalização atual, mas por todo o processo secular de colonização onde vários povos puderam-se encontrar. Esses encontros proporcionaram intercessões culturais entre povos diferentes.



O poço-escada como espaço liminar, situado no meio das designações de identidade, transforma-se no processo de interação simbólica, o tecido de ligação constrói a diferença entre superior e inferior, negro e branco. O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que ele propicia, evita que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais. Essa passagem intersticial entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta (BHABHA, 2013, p. 23)




Ou seja, o ir de vir de influencias entre a produção nacional e internacional de quadrinhos cria uma experiência que hibridiza as formas de se fazer essa cultura. É por isso que Érica Awano e Marcelo Cassaro puderam fazer um dos grandes sucesso da arte sequencial brasileira: Holy Avenger, que é intimamente ligado ao estilo japonês de produção mas que não deixa de representar sua brasilidade.


Talvez exista algo no “jeito” de fazer determinados quadrinhos que o identifique com uma nação. Penso em Tex & Cia, os títulos da editora Bonelli. O Bang Bang do quadrinho italiano (mesmo quando não é retratando exatamente o Velho Oeste norte-americano, como no caso de Mister No e Dylan Dog) é muito característico: possui formato, temas, diagramação e narrativas muito determinantes que demonstram uma identidade construída durante décadas pelo próprio Sergio Bonelli, fundador da editora. Existe um jeito bonelliano de fazer quadrinhos, mesmo quando os protagonistas das suas histórias não possuem nenhuma descendência italiana: em sua maioria, esses personagens são americanos ou ingleses.


Entretanto, dizer que o jeito Bonelli de fazer quadrinhos, por serem os quadrinhos italianos mais popularizados no mundo, seja a sua identidade quadrinística exclui as outras representações por lá construídas. Afinal, só para citar alguns nomes, onde encaixaríamos na construção dessa identidade italiana a produção de autores como Milo Manara, Hugo Pratt, Guido Crepax e Paolo Serpieri?
 
Então, reforçando aqui o que disse Freyre, Stuart e Bhabha, devo concluir que a cultura brasileira é híbrida, pois nossos autores são tocados e transformados por tantas culturas diferentes que não deveríamos sequer cogitar a possibilidade de encontrar “a” identidade brasileira, “o” bastião da linguagem quadrinística local, até porque, como já sabemos há muito tempo, a linguagem de uma arte é algo sem fronteiras e a língua sempre será festa.



HALL. Stuart. A Identidade Cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro: DP&A EDITORA. 7ª ed. 2003.

BHABHA. Homi. O Local da Cultura. 2013.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala.


Obs: Não consegui descobrir o autor da imagem que ilustra esse texto, mas ela foi encontrada aqui.

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