Bernardo Aurélio de A.
Oliveira (UFPI)[1]
RESUMO:
O hibridismo
cultural trabalhado por Homi K. Bhabha no livro O Local da Cultura pode ser
percebido a partir do estudo da história em quadrinhos escrita e desenhada por
Craig Thompson, intitulada Habibi. Ambos autores levantam questões relevantes
sobre a formação de culturas, a construção de identidades de povos e de
narrativas nacionais. A partir dos estudos de Bhabha e fazendo uma leitura de
Thompson sobre os discursos de textos encontrados no Alcorão e na Bíblia,
presente em Habibi, podemos perceber até onde aproximam-se, distam-se e
misturam-se entre si as culturas maometanas e cristãs, sempre traçando um
paralelo entre as informações dos livros dos autores citados. Este artigo trata
sobre a influencia da cultura islâmica sobre a vida ocidental cristã e
vice-versa, utilizando o conceito de hibridização de povos e culturas
característico das noções de “entre-lugar” definidos por Bhabha, bem como sobre
os povos que vivem em situações de fronteira e sobre as raízes e ramificações
de suas grandes narrativas nacionais religiosas originárias.
Palavras-chave: Hibridismo cultural, entre-lugar,
nação.
Abstract: The cultural hybridity
studied by Homi K. Bhabha in The Location of Culture can be seen in the
work of Craig Thompson, Habibi. Relevant questions about culture
formation in frontier situations and constructions of national narratives can
be traced in parallel reading the books of authors cited.
Keywords:
cultural hybridity, in-between, nation.
Não poderia deixar de começar explicando
que este artigo é fruto de uma apresentação de seminário sobre Homi K. Bhabha,
portanto, preciso antes de tudo, dizer que não poderia tê-lo escrito senão
baseado nas anotações de Dalva Fonteneles e Jaislan
Monteiro, colegas mestrandos e parceiros na apresentação do “O Local da Cultura como
território de negociação: reflexões sobre a questão pós-colonial” durante
última aula de Teoria da História, ministrada pelo professor Drº Edwar Castelo
Branco. Dito isto, de alma limpa e com as anotações dos colegas em mãos
transcrevo esse relatório em forma de artigo.
Bhabha é daquele tipo raro de autor que torna-se
unanimidade. Dono de um estilo forte e difícil de leitura, que não procura ser
didático, pedagógico muito menos dono de uma verdade teórica que tenta impor-se
a outras, é muito mais um autor que procura por em prática as teorias que o
tornaram conhecido: como o hibridismo cultural. Portanto, preocupa-se em
misturar o eu ao outro dos autores (como Fanon, Said, Foucault,
Green) tornando seu pensamento uma terceira coisa fruto da fusão das duas
partes anteriores. Tornou-se, de fato, “um dos principais arautos dos chamados
teóricos pós-coloniais e do multiculturalismo, um atento pesquisador das minorias
sociais e culturais” (EICHENBERG, 2012).
Meu
objetivo aqui é traçar um paralelo entre alguns desses conceitos e a história
em quadrinhos Habibi, de Craig Thompson, obra que, por sinal, não fica à
sombra de Bhabha, mesmo porque são de universos editoriais diferentes, mas o
que quero realmente dizer é que “Habibi é um monumento do quadrinho
moderno e uma resposta atual a questões que nos perseguem desde sempre”. Claro
que essa citação foi retirada da orelha do livro, entretanto não sou o único a
concordar com ela visto a quantidade de prêmios e elogios que o livro já
recebeu[2].
Na minha opinião, Habibi é tão importante para os quadrinhos quanto O
Local da Cultura é para a História, mas minha opinião aqui é quase tão
imparcial quanto às citações das orelhas dos livros, portanto, Franz Lima,
escritor e blogueiro dirá o que eu gostaria de dizer, assim fica mais
impessoal:
São 672 páginas de arte em estado puro. Ilustrações belas,
detalhadas e, ao mesmo tempo, simples na mensagem que passam. Não há excessos,
apesar do refinamento da produção. O que vemos desde a primeira página é um
fenômeno. A combinação de roteiro, letras, desenhos e, principalmente, um
recado para um mundo cada vez mais crítico quanto aos islâmicos torna
"Habibi" uma pérola de valor inestimável (2012).
Elogios
à parte, vamos ao que, de fato, interessa: Bhabha escreveu sobre o mundo pós-colonial
em que vivemos e sobre as consequências dessa condição, “é um salutar lembrete
das relações “neo-coloniais” remanescentes no interior da “nova” ordem mundial
(...) Tal perspectiva permite a autenticação de histórias de exploração e o
desenvolvimento de estratégias de resistência” (BHABHA, 2013, p. 27). Segundo o autor, após a segunda
grande guerra, as populações do mundo intensificaram as correntes de migrantes
e refugiados, e sua pesquisa preocupa-se em entender esse mundo que desloca a
questão da cultura para uma época em que populações diversas estariam nesse
constante movimento, redefinindo limites fronteiriços em níveis mais
psicológicos, sociais e culturais do que meramente geográficos. Então, esses
homens fronteiriços levam consigo sua bagagem material e imaterial e
traduzem-se na relação da diferença com o outro, o nativo. É preciso
entender essa fronteira na perspectiva de Bhabha antes de voltarmos para
o Craig Thompson e seu Habibi.
“Uma
fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos
reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo
começa a se fazer presente” (HEIDEGGER
apud BHABHA, 2013, p. 19). É com essa citação que Bhabha inicia a introdução de
seu livro. Ele nos explica que as
fronteiras são lugares de articulação de diferenças que dão início a novos
signos de identidade. É na relação fronteiriça entre o eu e o outro
que nossas diferenças se revelam e nessa articulação existe uma troca que
recria outro de nós mesmos. Essa articulação acontece no entre-lugar.
Vide figura[3]
abaixo.
Fig. 01. Relação entre eu e o outro
que cria outros de nós mesmos devido ao entre-lugar (espaço intervalar).
Esse encontro de partes é um espaço
intervalar, de fronteira entre diferentes culturas. A simples existência desse
tipo de espaço faz de nós seres múltiplos, diferentes das construções
herméticas e homogêneas construídas pelas identidades nacionais, por exemplo.
As grandes narrativas estatais constituem o povo “em
objetos históricos de uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma
autoridade que se baseia no preestabelecido ou na origem histórica constituída no
passado” (BHABHA, 2013, p. 237). Para essas narrativas pedagógicas,
o conceito de muitos como um baseia-se na teoria que “trata gênero,
classe ou raça como totalidades sociais que
expressam experiencias coletivas unitárias” (BHABHA, 2013, p. 232). O que
precisamos imediatamente perceber aqui é a sutileza dessas fronteiras que nos
definem como seres plurais, diversamente dessa estratificação fixa e
hierárquica que nos mutila em blocos de comportamentos culturais isolados, para
isso, Bhabha cita René Green e seu exemplo do
sótão, do poço e da escada “para fazer associações entre
certas divisões binárias como superior e inferior, céu e inferno. O poço
da escada tornou-se um espaço liminar, uma passagem entre as
áreas superior e inferior” (2013, p. 23). Bhabha
explica:
O poço da escada como espaço liminar, situado no meio das designações de identidade, transforma-se no processo de interação simbólica, o tecido de ligação que
constrói a diferença entre superior e inferior,
negro e branco. O ir e vir do poço da escada, o movimento temporal e a passagem que
ele propicia, evita que as identidades a cada extremidade dele se estabeleçam em polaridades primordiais. Essa passagem intersticial entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta (2013, p. 23).
Tornamo-nos então seres híbridos e
nessa condição implodimos qualquer conceito de identidade nacional
cristalizada. Somos heterogêneos, precisamos perceber o outro de nós mesmos que
nos tornamos ainda intra-uterinamente, quando nos dão nome e a cor do enxoval.
Precisamos perceber nosso hibridismo cultural quando rezamos pra Jesus e para
Todos os Santos ou quando comemos a comida típica de um país estrangeiro no
restaurante da esquina. E tudo isso é reforçado no mundo pós-colonial, pois foi
esta condição que mais propiciou as características de fluidez e
transitoriedade moderna.
Permitam-se a leitura de uma citação
de minha autoria: dois quadrinhos de um fanzine que fiz chamado Babar o
Bhabha e que serviu como recurso didático durante o Seminário que fizemos
sobre O Local da Cultura. Fica mais fácil de engoli-lo se entenderem a
imagem como um simples parágrafo, escrito por mim de maneira
não-completamente-verbal.
Fig. 02. Quadrinhos de minha autoria publicado no fanzine Babar o Bhabha.
O que tentei trabalhar nesses
quadrinhos é um pouco do que Bhabha disse:
Estar no "além",
portanto, é habitar um espaço intermédio, como qualquer dicionario lhe dirá.
Mas residir "no além" é ainda,
como demonstrei, ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para
redescrever nossa contemporaneidade
cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar a futuro
em seu lado de cá. Nesse sentido, então, o espaço intermédio
"além" torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora (…) o
trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com "o novo" que
não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do
novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o
passado como causa social ou precedente estático; ela renova o passado,
refigurando-o como um "entre-lugar" contingente, que inova e
interrompe a atuação do presente. O "passado-presente" torna-se parte
da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 2013, p. 28 – 29).
A relação entre passado e presente
não é simples como uma linha narrativa cronológica prevê. Viver no mundo pós,
é residir no além onde o passado é constantemente revisitado. Tanto é,
que o passado torna-se presente. É quando uma tradição cultural pedagógica que
estabelece uma identidade de nação-povo que foi sedimentada desde um
passado remoto, torna-se uma prática renovada no cotidiano atual: é o passado
vivo, renovado e performatizado pelas culturas híbridas modernas. É
quando, por exemplo, o vaqueiro deixa o gibão de couro em casa, veste a calça jeans,
monta na sua moto e leva a boiada através de uma estrada de asfalto.
Diante do que já foi colocado,
podemos voltar para Craig Thompson. Habibi conta a história de Dodola e
Zam, dois escravos de uma cidade fictícia chamada Vanatólia, provavelmente uma
referência a Anatólia, região do extremo oeste da Ásia, também conhecida como
Ásia Menor, onde fica a Turquia. A península anatoliana é situada
geograficamente como uma ponte entre a Ásia e a Europa, o que é muito
curioso e oportuno para a análise neste trabalho, já que pontes podem
possuir a mesma carga simbólica das escadas citadas por Green e Bhabha
agora a pouco. É o ir e vir dos agentes entre os extremos da ponte que estimula
o hibridismo cultural transformando o eu e o outro. Podemos
imaginar que essa região fictícia da Vanatólia, se realmente foi inspirada na
Ásia Menor, como parece, é um país de grandes fronteiras culturais,
principalmente porque a história em quadrinhos pode ser entendida como um conto
de fadas dos dias atuais “sobre a cultura e o
comportamento das pessoas em um país tipicamente islâmico. Mas não se deixem
enganar: Habibi é um conto de fadas como os antigos foram. Há força,
impacto e verdade nos desenhos e palavras da Graphic Novel” (LIMA,
2012).
Para
não me alongar muito, Dodola foi vendida ainda criança para seu noivo, um
escriba que costuma trabalhar em transcrições do Corão. Ela aprende a ler e
escrever, vivendo bem com seu marido, apesar da diferença de idades: ela
casou-se com 9 anos e ele, provavelmente, com 40. Um dia a casa é assaltada,
seu marido morto e ela é levada por traficantes de escravos. Entre eles,
conhece uma criança menor que ela, Zam, de quem decide cuidar. Eles conseguem
fugir e vão morar no deserto. E a história deles dois alonga-se,
maravilhosamente, por mais 600 páginas, pelas quais não posso nem devo me
prender aqui. O que interessa agora são as histórias que Dodola narrava para
Zam. Histórias dos princípios, de Deus, anjos, demônios e crentes. Histórias da
Bíblia, histórias do Corão, narrativas primordiais de livros que identificam e
unem povos-nações.
Thompson
deu uma entrevista especial para Ramon Vitral, publicado no jornal O Estado
em janeiro de 2012, que traz informações importantes antes de entrarmos
diretamente na análise de Habibi. Ramon faz questão de lembrar primeiro
a experiencia católica do autor retratado em seu primeiro grande trabalho, o
livro Retalhos, depois perguntou “como foi escrever sobre o mundo islâmico em Habibi tendo a formação cristã
conservadora que teve?”
Esse foi o elemento que tornou mais acessível a escrita sobre o Islã. Interagindo com amigos muçulmanos, vi que a vida deles não era tão diferente do ambiente em que cresci. São os mesmos estilos de vida, as mesmas morais e, principalmente, as mesmas histórias como fundamentos de ambas as crenças. Foi o meu ponto de acesso. O Alcorão contém algumas das mesmas histórias da Bíblia, mas de forma menos linear e mais poética (THOMPSON apud VITRAL, 2012).
Senhores,
Craig Thompson não poderia ter nos proporcionado uma resposta melhor. Fica
evidente a questão do entre-lugar, do hibridismo cultural, a percepção
das diferenças fronteiriças e das semelhanças dos mitos originais que
fundamentam nações inteiras ao redor do mundo. Não contentando-se com uma
resposta tão oportuna como essa, parece-me que Thompson sabia que alguém
escreveria sobre ele um dia sob a ótica de Bhabha, afinal de contas, leiam o
que ele disse, dia 28 de julho de 2012, ao repórter André Miranda, do jornal O
Globo quando perguntado se acha que a origem do
fundamentalismo religioso é a mesma no Ocidente e no Oriente:
Eu acredito que sim. Os
fundamentalistas são os mesmos, assim como são os mesmos os seguidores
eventuais de ambas as fés. Cristãos eventuais não são necessariamente
conservadores ou dogmáticos, e o mesmo se aplica ao muçulmano comum que você
pode encontrar na rua. Eu acho que a reação anti-Islã que surgiu nos Estados
Unidos depois do 11 de Setembro nasceu em grande parte de um auto delírio, uma
forma de atacar a mesma intolerância religiosa que existe em nós mesmos. O
grande tema de Habibi é que esses rótulos — cristão e muçulmano, homem e
mulher, Oriente e Ocidente — são simplesmente fronteiras imaginárias que
precisam ser descartadas (THOMPSON apud MIRANDA, 2012)
Os
binarismos cristão x mulçumano, homem x mulher, oriente x ocidente “são
simplesmente fronteiras imaginárias que precisam ser descartadas”. Lembram da
figura 01? Percebem que o resultado do encontro eu x outro é uma
imagem esmaecida, enevoada? Não é meramente ilustrativo: o resultado dessa
colisão dicotômica é um abrandamento das percepções das diferenças via de regra
a percepção e o “achamento” do entre-lugar. É perceber que essas
fronteiras são, de fato, imaginárias, como disse Thompson. Tudo isso é muito
importante porque perpassa as opiniões de Bhabha, que desde o início de seu
livro preocupa-se em colocar sua teoria como forma de minorar os problemas
entre-nações. É dele a seguinte citação:
Os próprios conceitos
de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou contínua de
tradições históricas, ou comunidades étnicas "orgânicas" - enquanto
base do comparativismo cultural-, estão em profundo processo de
redefinição. O extremismo odioso do nacionalismo sérvio prova que a própria
ideia de uma identidade nacional pura, "etnicamente purificada", só
pode ser atingida por meio da morte, literal e figurativa, dos complexos
entrelaçamentos da historia e por meio das fronteiras culturalmente
contingentes da nacionalidade [nationhood] moderna (BHABHA, 2013, p.
25).
Bhabha percebe que a cristalização
de uma cultura e a pedagogia de uma política nacional pura e autoritária
termina por sérios problemas como o extremismo na Sérvia ou o drama do “teatro
contemporânea do Sri Lanka” (2013, p. 25).
Por várias vezes, Thompson foi perguntado se a escolha temática de Habibi,
de lidar com o povo islâmico num mundo pós-11 de setembro. Eis o que ele disse
ainda na entrevista a André Miranda:
Depois
do 11 de Setembro houve uma grande islamofobia na mídia americana, e, em
parte por isso, eu quis olhar dentro do Islã para melhor compreendê-lo e poder
reconhecer suas belezas. Também percebi que eu não tinha amigos muçulmanos, e
trabalhar em “Habibi” me permitiu conhecer novas pessoas e ganhar novas
amizades. Muitos dos diálogos do livro vieram de conversas que tive com novos
amigos que fiz (THOMPSON apud MIRANDA,
2012).
Em outra entrevista ao jornal O Globo, dessa vez
cedida a Telia Navega ainda 2009, perguntado se suas motivação
para Habibi seria o desejo de humanizar a cultura islâmica depois do 11
de setembro, ele disse:
Esse pode ter sido meu impulso
inicial, por minha frustração com relação ao comportamento da América pós 9/11,
mas “Habibi” acabou saindo mais como um conto de fadas. Ela usa detalhes da
cultura islâmica e toma emprestado seu ritmo de contar histórias, como em “As
mil e uma noites”. É uma história de amor entre duas crianças escravas,
sexualmente abaladas, com desertos, haréns e favelas como cenário. É seco,
espiritual e sexual. (THOMPSON apud NAVEGA, 2009).
Então, Habibi não é uma resposta direta ao
11 de setembro, é um conto de fadas moderno “como os antigos foram”, nas
palavras de Franz Lima já citadas aqui. É uma grande história que aborda
questões sobre capitalismo e acúmulo de riquezas (como a água nos haréns do
sultão), o amor, o espírito e o sexo, além de questões ambientais. Mas nos
concentraremos em uma narrativa envolvendo os povos do
livro, presente
nessa obra.
Para os
cristãos acostumados com o Gênesis é sabido que Isaque, filho
de Abraão com Sara foi levado pelo pai a um local de sacrifício a mando de
Deus. Entretanto, para a narrativa islâmica, Abraão teria tido um filho com
Agar, escrava entregue a ele pela própria esposa, e ao filho deram o nome de
Ismael. Atentem-se às próximas ilustrações:
Fig. 03: THOMPSON. 2012. p.47
Como podem ver, Thompson cita o mesmo fato sob dois
pontos de vista, mostrando não apenas a diferença entre as religiões, mas as
semelhanças embrionárias de onde ramificaram as narrativas que deram origem a
seus povos. Fica ainda mais claro:
Fig. 04: THOMPSON. 2012. p.618
De
Ismael até Maomé ou de Isaque até Cristo. “Qual foi o filho?”, pergunta
Thompson (2012, p. 48). Quem Abraão levou para o “abate”? Qual a verdadeira história?
Qual o verdadeiro Messias e, consequentemente, qual o povo escolhido por Deus?
Não cabe a mim, como historiador, tentar provar qual a verdade, porque isso
envolve, mais do que evidências históricas e provas materiais, questões de fé e
de vivência espiritual que estão muito além das narrativas que eu, ou
pesquisadores mais eficientes, possamos traçar. E digo isso baseado na teoria
de Bhabha:
O que é
teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além
das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles
momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças
culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração
de estrategias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novas
signos de identidade e postos inovadores de colaboração contestação, no ato de
definir a própria ideia de sociedade (BHABHA, 2013, p. 20).
Com
essa citação quero dizer que não é a procura da verdade subjetiva originária o
que deve interessar ao historiador hoje, mas sim problematizar a articulação da
diferença. Alguém pode dizer que Ismael foi inventado quase 700 anos depois de Cristo.
Se uma coisa é verdade e outra é mentira, mesmo a busca pela verdade histórica
devendo ser sempre a utopia do historiador, o que mais interessa hoje é
perceber como essas narrativas se elaboram e quais estratégias montam para
redefinir a sociedade que constroem, é entender como o discurso dessas
histórias constroem as narrativas dos povos-nações. Tudo isso torna-se mais
interessante quando percebemos que o resultado e a moral dessas histórias,
tanto na Bíblia quanto do Corão, são semelhantes, reencontrando novamente um
fato em comum. No caso de Ismael ou Isaque, Maomé ou Cristo, Thompson responde
a pergunta com o que há de comum nessas
narrativas: qual das crianças foi executada? Nenhuma. “O anjo Gabriel trouxe um
carneiro para ser oferecido no lugar deles” (2012, p. 646).
Um
outro ponto que me chamou a atenção que fiz na leitura de Habibi com olhos de Bhabha, foi a
discreta passagem onde Dodola caminha pelo centro de Vanatólia, uma cidade
“tipicamente” árabe, mas hibridizada com elementos ocidentais: as vitrines com
biquines ou moda íntima, as motocicletas, os letreiros luminosos, as gravatas,
os ternos. No meio de toda a movimentação ela percebe mulheres vestindo shorts e saias, deixando os cabelos
soltos em um grande contraste ao que imaginamos ser os hábitos das mulheres
árabes. Sentindo-se confortável com isso, Dodola baixa o véu, mostrando os cabelos,
e continua a andar pelo comércio (fig. 05), mas logo em seguida é abordada de
forma grosseira por homens no meio da rua (fig. 06), provavelmente julgando-a
uma mulher “promíscua”, como
devem parecer as mulheres ocidentais aos olhos daqueles mais fundamentalistas
islâmicos.
Fig. 05: THOMPSON. 2012. p.615
Fig. 06: THOMPSON. 2012. p.616
A
passagem lembrou-me novamente Bhabha, que disse o seguinte durante uma
entrevista ao jornal O Globo:
Nenhum indiano estava no tempo ou no
lugar, na condição de cidadania, para poder considerar o que estava acontecendo
a eles. Eles negociaram a situação. Eles tinham um modo de absorver certas
ideias progressistas do Ocidente, porque se davam conta de que certas ideias de
modernidade melhoravam o seu mundo. Eles aceitavam a modernização, mas não
necessariamente a bagagem ideológica, ética ou dos costumes da ocidentalização.
É dessa experiência, acho eu, que advêm tanto o meu conceito de hibridização
como o de cosmopolitismo vernacular (2012).
Ora!
Dodola viu que andar de cabelos soltos era “bom”, e decidiu absorver essa ideia
“progressista” do ocidente. Não cogitou, entretanto, que as pessoas ao redor
não aceitariam a bagagem ideológica que isso acarretaria. Essa discreta
passagem no meio de tantas páginas da obra Habibi nos apresenta
novamente todo o conflito de que nos fala Bhabha sobre a vivência dos povos
fronteiriços, que é comum ao hibridismo cultural.
Ainda tomando como exemplo essa passagem de Habibi,
voltamos novamente à entrevista de Bhabha ao jornal O Globo, quando ele conta
uma historinha sobre uma moça que encontrara dentro de um trem:
Era uma jovem coberta por um véu,
apenas os olhos aparecendo. As faces de todas as demais pessoas estavam à
vista, e aquilo me chocou. E minutos depois o trem pára e ela se levanta para
sair. Quando passou por mim, olhei e descobri que as suas costas estavam
completamente à vista. E ela usava uma calça jeans que chegava até as suas
ancas, e tinha uma pequena tatuagem. Mas seu rosto estava mascarado. Duas
coisas eram claras para mim. Primeiro, que na nossa cultura sempre parecemos
querer colocar todos os tipos de comportamento na panela maior da identidade. A
maneira de se vestir, de falar, tudo tem de formar uma noção composta de
identidade, aí nos sentimos seguros. Acho que isso é o problema real nesse
caso. Segundo, não devemos ler essas coisas como marcas de identidade, mas como
mensagens misturadas, diferentes. De um modo engraçado, esse era o direito da
jovem de brincar com os diferentes tipos de linguagens, expectativas, normas e
códigos de uma esfera pública metropolitana pós-migração ou da diáspora (2012).
A grande diferença entre essa história de Bhabha e a
passagem de Habibi é que uma se passa em Vanatólia, uma ponte cultural
entre ocidente e oriente[4], e a outra se passa em
Berlim, um grande centro cosmopolita ocidental. Bhabha impressionou-se com o
véu cobrindo o rosto da moça no vagão do trem porque era diferente do contexto
cultural alemão onde estava e, talvez por isso, a moça não se deixou intimidar
como Dodola e vestiu o véu, mas deixou as costas à mostra, vestindo também uma
calça jeans que mostrava suas “ancas”. Evidentemente, Bhabha não reagiu
de forma grosseira como os homens do mercado em Habibi em relação à
estonteante moça de costas nuas senão vestida apenas com uma discreta tatuagem,
mas muito provavelmente soube apreciar o hibridismo misterioso da moça de rosto
coberto e de outras partes à mostra... Se era, ou não, uma forma engraçada da
moça lidar com os códigos metropolitanos de uma lógica migratória
pós-colonialista, só podemos afirmar que Bhabha está certo quanto ao hibridismo
cultural e que a moça, apesar de poder “chocar” as pessoas do vagão, não sofreu
nenhum tipo mais grave de represália por seus modos, pois a mistura dos povos
evidencia as diferenças, mas abranda os conflitos.
Ainda existem muitos elementos importantes que poderiam
ser identificados e cruzados entre Bhabha e Habibi, mas deixo minha
contribuição por aqui e espero ter despertado o interesse para que outros
colegas possam traçá-las.
Referências
EICHENBERG, Fernando.
Homi Bhabha e o valor das diferenças. Disponível
em: < http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/01/14/homi-bhabha-o-valor-das-diferencas-426300.asp> Publicado em 14 de janeiro de 2012. Acesso em 03 de agosto de
2013.
LIMA, Franz. Resenha da Graphic
Novel "Habibi" de Craig Thompson. Disponível em: <http://apogeudoabismo.blogspot.com.br/2012/09/resenha-da-graphic-novel-habibi-de.html> Publicado em setembro de 2012. Acesso em 03 de agosto de
2013.
VITRAL, Ramon. Craig Thompson fala sobre os oito anos de criação
de 'Habibi'. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,craig-thompson-fala-sobre-os-oito-anos-de-criacao-de-habibi,817622,0.html > Publicado em 02 de janeiro de 2012. Acesso em 03 de agosto
de 2013.
MIRANDA, André. Política, religião e amor em
quadrinhos: entrevista com Craig Thompson. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/07/28/politica-religiao-amor-em-quadrinhos-entrevista-com-craig-thompson-457500.asp > Publicado em 28 de julho de 2013.
[1]Mestrando
em História Cultural pela UFPI, com o Projeto “Salão de Humor do Piauí: Uma
história de risos e cabelos brancos”, bernardohq@hotmail.com.
[2]Nos
Estados Unidos, o prêmio Eisner é o mais importante dado às histórias em
quadrinhos. Habibi foi indicado à categoria de Melhor Álbum de 2012, mas
não levou. Craig Thompson, o autor, entretanto, ganhou o prêmio na categoria
Melhor Escritor/Ilustrador por este trabalho. No Brasil, Thompson ganhou o
HQMix de 2013 como Melhor Desenhista Estrangeiro por Habibi.
[3]Agradecimento
especial ao colega Jaislan Monteiro, por ceder, mesmo sem seu conhecimento, o
uso da imagem criada por ele para sua explicação sobre Bhabha durante
seminário.
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