Foi em um sábado de julho, mais precisamente no dia 17 do ano de 2004. Eu estava desenvolvendo um trabalho de conclusão de curso para minha licenciatura em história pela UESPI e Antonio de Pádua Amaral era o que os cientistas costumam chamar de “objeto de pesquisa”.
Saí de casa logo após o almoço. Peguei o “amarelão 2” e fui até o bairro mocambinho, onde o objeto reside, numa viagem de quase 45 minutos. Era pouco mais de 13 horas quando cruzei o portão de entrada. Amaral o abriu e sua esposa, por sinal minha orientadora na pesquisa que realizava, convidou-me a sentar à mesa para almoçar junto com todos eles: meu objeto de pesquisa, sua mulher, a mãe do objeto e os pequenos objetos, suas filhas. Educadamente, recusei.
Só então pude perceber que sua casa era bastante aconchegante, harmoniosa em cores e na ocupação dos espaços, se é que toda minha formação em arquitetura e decoração, que se resume a nada, pode dizer. Seus desenhos e pinturas emolduradas ilustravam as pareces. A cozinha era um corredor longo e até espaçoso que dava acesso às portas dos fundos, defronte à escada que leva ao quartinho onde produz sua arte. Mas antes de subirmos ele me levou até uma área, ao lado da escada, que estava cheia de armários e papéis com gerações e gerações de ácaros onde estavam alguns quadrinhos e desenhos originais. Ele pegou uma ou outra raridade e disse pra subirmos.
No quartinho, ele perguntou o que eu gostaria de escutar. Pelo chão havia duas pilhas de LPs com discos do Raul Seixas, Beatles, Jimmy Hendrix e outros. Escolhi um do Jethro Trull, que não conhecia na época, mas que me chamou atenção. “Boa escolha”, pensei. “Toma! Lê isso aqui enquanto dou uma cagada”, ele disse, me entregando os quadrinhos que havia pego no armário embaixo da escada. Foi a primeira vez que vi e toquei nos encadernados de Flash Gordon e Príncipe Valente da mítica editora Ebal, dois dos maiores clássicos da história dos quadrinhos, no mundo. Enquanto deleitava-me folheando aquilo, ouvia uma ótima música e não queria imaginar a situação da porcelana no banheiro onde meu objeto produzia.
Amaral voltou e começamos a conversar sobre algumas publicações que haviam por ali, como a revista Front ou Ragú. Falamos de quando ele recebeu, em 2000, o troféu HQ Mix de melhor revista independente com Hipocampo, enquanto ele juntava umas pastas e álbuns com recortes de jornais e desenhos seus. Disse-me que naquela ocasião, os melhores do ano no mundo dos quadrinhos, nomes como Neil Gaiman, Ivo Milazzo e Angeli, passavam bem na sua frente, de um lado para o outro, e ele, completamente matuto, vindo do interior do Piauí, de Campo Maior, segurava algumas Hipocampo debaixo do braço, estupefado pelo desfile de celebridades, sem coragem de aproximar-se nem ao menos para apresentar-lhe o universo caótico da Rã e da Salamandra.
Ele me mostrou alguns recortes de jornais sobre o Hipocampo, mas eu queria mais, queria material anterior ao Hipocampo, e encontrei. Desenhos do final da década de 70, super-realistas, outros de um realismo fantástico e cheios de detalhes, bem diferente do que já conhecia do Amaral. Anterior a isso, havia o jornal mimeografado O Osso, do qual participou.
Ele me mostrou fragmentos de sua vida que resultaram em uma família. Estávamos todos lá: pai, mãe, avó, filhas, neta, empregada, recortes de jornal, fotografias, desenhos e pinturas. Eram mais que os objetos que me levariam a escrever isto. Era mais que uma experiência de um sábado de julho.
Juntei aquele material todo que o Amaral havia produzido e, olhando desenhos com intervalos de 20 anos, perguntei o que havia transformado tanto sua arte plástica. “Foi a poesia”. Era óbvio! A transfiguração, a transcendência, o sentir antes de tocar, a essência única e universal, características tão marcantes da poesia, estavam em seus novos quadrinhos e telas. Mas Amaral adverte que seria uma heresia confundir seus textos com poesias modernas. Não se acha um poeta, nem que poderia ser. É o que é, o que pode ser, um “senhor” artista plástico que também faz quadrinhos e com várias outras pretensões artísticas.
Coloquei tudo o que ele havia me emprestado para estudar em minha mochila e falamos sobre amores, trabalho, melancia e Hipocampo. Disse-me que o “bruxo da caixa de sabonete” era um amigo que fazia um pedal para distorcer o som da sua guitarra com uma saboneteira, que o Hipocampo é autobiográfico, que não bebe água porque não tem gosto de nada, que ser desenhista não impressiona nenhuma mulher, que o jeito é aprender a tocar algum instrumento musical.
Depois de posar para algumas fotografias, ele me convidou para presenciar a nova fase do Hipocampo: ele ligou sua guitarra. Se você já tiver lido algum dos quadrinhos do Amaral, sabe que sua linguagem é impressionante. Amaral fazia uma melodia de textos retirado do universo Hipocampo. Era um rythim n’ blues do cacete! Amaral é, definitivamente, um grandessíssimo artista, fazendo telas, quadrinhos, esculturas, estampas, designer e, agora um músico quase completo. Segundo ele, Deus sabe o que faz: se tivesse lhe dado um voz poderosa teria sido um cantor, estaria lutando outra batalha, não muito diferente, mas outra batalha pra gravar seus discos e, provavelmente, nunca teria feito uma HQ do Hipocampo. Fecha-se uma porta, abre-se outra.
Depois de passar toda a tarde naquela casa, a noite havia chegado. Minha bolsa e minha memória estavam cheias de material que viria formar o quarto capítulo de minha monografia, mas antes de ir embora, meu objeto de pesquisa convidou-me a tomar uma xícara de café, que aceitei prontamente.
2 comentários:
Muito bacana o teu relato, Bernardo. Quem me recomendou foi o próprio Amaral. Tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente na semana passada, aqui em Porto Alegre. Espero um dia poder conhecer esse universo do hipocampo aí de Teresina! Abraços.
Que massa demais o texto e o objeto de pesquisa! Quando eu era criança, meu pai trouxe 3 edições da Ragú pra casa e eu passei a conhecer um quadrinho diferente e até mais interessante que aquela coisa lá da Turma da Mônica. Onde eu morava, não se tinha muito acesso a livro, quem dirá HQ. O que salvava era a estante que meus pais montaram pra gente. Ragú sempre foi dos preferidos, porque tinha cartum, pelos quais me apaixonei graças aos livros de Literatura, História, Física, e também tinham experimentações que eu não via noutros cantos. Me influenciou muito. Amaral eu gostava pra caramba das linhas, do movimento, dos traços, mas não entendia porra nenhuma, por conta de seu típico vocábulo metafuloreado. Fui saber hoje que é piauiense e não pernambucano. Peguei recentemente nas revistas e me toquei de procurar algo sobre eles. Não sei nem se faz sentido comentar uma publicação de quatro anos atrás, mas é que eu curto mesmo os caras e não sei pra quem falar.
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