Memória de Elefante é aquele tipo
de gibi que você acaba deixando pra fazer a leitura depois porque não tem
nenhuma referência, não sabe exatamente do que trata, a capa pode não dialogar
muito contigo e aí ele vai ficando na pilha de leituras, ou mesmo você vai
ignorando ele na livraria... Foi isso que aconteceu comigo.
Tenho uma livraria especializada
em quadrinhos e confesso que leio muito devagar, não me mantenho atualizado. E Memória
de Elefante foi lançado em 2010 (em minha defesa, só abri a livraria no ano
seguinte). Há um bom tempo esse livro era colocado de um lado para outro em minhas
prateleiras e, com um pouco de curiosidade e culpa de leituras atrasadas, eu
dava uma folheado no gibi, prometendo a mim mesmo “um dia...”
Acho que sei porque, depois de
tanto postergar, li esse gibi de um dia para o outro. Tudo começou em março,
quando comecei a ler Vingadores Eternamente (parte 1 e 2, lançados pela SALVAT
nos números 14 e 15, de lombada). Passei abril em um suplício tentando terminar.
Prometi a mim mesmo ler aquilo só por causa do Kurt Busiek, afinal de contas,
uma pessoa que escreve Marvels e Astrocity sabe o que faz. A ideia era produzir
uma resenha, entretanto, reavaliei minhas prioridades, pois se iria me dedicar
a escrever um texto deveria ser sobre alguma coisa que eu, no mínimo, tivesse
gostado. Então, procurei outra coisa pra ler. Instintivamente, queria algo
completamente diferente daquela coisa colorida e saltitante. Memória de
Elefante brilhou na prateleira.
Comecei a ler o gibi de noite e
quando fui dormir já tinha lido 150 das 228 páginas do livro. Provavelmente
teria terminado a leitura se minha mulher não estivesse tentando dormir com um
pano cobrindo seus olhos. Concluí na manhã seguinte. É clichê dizer que “aquilo
me prendeu. Não queria largar o quadrinho”? Foda-se. Foi assim mesmo. E isso é
muito raro na vida de minhas retinas preguiçosas.
Como falei no início, Memória de
Elefante não havia chamado minha atenção, nem pelo título, nem pela capa (por
sinal, acho que a capa dialoga muito pouco com o conteúdo do gibi. Muito melhor
o Elefante que está na folha de rosto da obra), nem exatamente pela qualidade dos
seus desenhos. Ou seja, realmente não é um quadrinho que se vende fácil. Talvez
por culpa minha, nunca tinha ouvido falar do autor: Caeto. Minha única
indicação de qualidade é a editora: Companhia das Letras, mais especificamente
o seu selo de quadrinhos, o Quadrinhos na Cia. Dificilmente eles erram. De tudo
que li do catálogo dos caras, apenas um gibi não me convenceu (um que inclusive
é super elogiado pela crítica, o que me dá até certa vergonha de citar que não
gostei, mas dane-se! “Umbigo sem fundo” é ruim. Se você discorda de mim, ponto
pra editora, pois eles não teriam nada descartável... Bom, se você não estiver
de bem com a vida, talvez não goste de “Repeteco”, mas eu o guardei na minha
estante).
Caeto conta uma história
autobiográfica, seus problemas na família, entre os amigos, na escola, na vida
profissional... O grande lance é que não tem nada muito especial na coisa toda.
É algo cru e simples, tanto no traço, na diagramação, quanto no texto. O
personagem-autor perambula pelas ruas de São Paulo, nos inferninhos, nos bares,
nas galerias de arte, fazendo sexo e um retrato curioso dessa vida alternativa
da arte paulista, principalmente envolvendo a música punk e a produção de
fanzines de quadrinhos. Um dos autores que dá às caras no livro é o Rafael
Coutinho, autor de “revistinhas” (termo empregado com carinho e não pejorativamente)
como Cachalote, Mensur e O Beijo do Adolescente. Memória de Elefante fala sobre
arte, sobre tentar viver de arte através deste esquema de feiras independentes
e vemos que, mesmo em São Paulo, a coisa não é fácil (alô, alô! Falando aqui
diretamente de Teresina, Piauí).
A história é cotidiana e somos
apresentados às dificuldades do protagonista, mas não apenas a isso, somos
convidados a conhecer o autor e como ele pensa e isso pode incomodar a gente. Afinal
de contas, é fácil não gostarmos de um personagem e curtir a obra. O
difícil é você não gostar do autor, que é o protagonista da obra, e conseguir
gostar do quadrinho. Novamente, repito que não conhecia o Caeto, mas depois de
ler seu gibi, confesso que ele não é alguém com quem, provavelmente, eu curtisse
conviver ou trocar umas ideias: mas seu gibi é bom pra porra!
Caeto é escroto, um tanto
preconceituoso, impaciente e um pouco insensível. Sua sorte é conseguir lidar
com a maior parte desses problemas internamente, sem explodir, transformando
tudo isso num gibi para evitar ou uma úlcera no estomago ou espancar alguém.
Talvez tenha consciência disso, fazendo do quadrinho uma grande terapia, mesmo
que não seja o objetivo. Por sinal, acho que, definitivamente, uma terapia não
é o objetivo do gibi, apesar de servir para isso também. Mas não pense que é um
dramalhão, longe disso.
Boa parte do drama do gibi é
sobre o autor conseguir estabilidade financeira, dormir em um lugar onde não
existam pulgas que lhe atrapalhe seu sono, conseguir uma namorada e se
relacionar com sua família, principalmente com seu pai doente.
Com a experiência de transformar
seu cotidiano em matéria-prima, seu livro é um delicioso recorte de
acontecimentos. Recomendo fortemente.
Caeto, se nunca cruzar com você, aproveito
para lhe dar logo os parabéns pelo belo trabalho, melhoras na sua vida e saúde,
caso espirres!
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