Bernardo Aurélio de Andrade Oliveira
Resumo: As
histórias em quadrinhos (HQs) e o cinema possuem um longo histórico de
comparações. Alguns teóricos preocupam-se em tratar de quando e como uma arte
começou a influenciar a outra, mas o que realmente importa é perceber o que as
linguagens dessas duas artes têm em comum e de diferentes. A vasta bagagem
teórica do cinema possibilita este estudo comparativo. A edição cinematográfica
nos coloca diante de recortes espaço temporais semelhantes aos dos quadrinhos.
Esses saltos entre imagens justapostas e a capacidade de ligar uma à outra é
utilizada continuamente tanto no cinema quanto nos quadrinhos, mas ambos
possuem suas particularidades. Este texto pretende apresentar e analisar essas
semelhanças e diferenças entre quadrinhos e cinema no que diz respeito à edição
e narrativa dessas artes, focando a continuidade ou descontinuidade nas cenas.
Palavras-chave:
Quadrinhos, cinema, edição, espaço e tempo.
01.
Este estudo surgiu da necessidade de
apresentar um texto sobre história em quadrinhos (HQs) que pudesse dialogar com
alguns teóricos do cinema. É muito comum livros sobre quadrinhos apresentarem
comparações entre as duas artes, mas sempre me pareceu uma análise superficial,
uma comparação de enquadramentos e storyboards quando as possibilidades
entre as duas artes são bem maiores. Neste estudo em especial, o corte do
cinema serve de mola propulsora para perceber a narrativa nas páginas de uma HQ
e para percebermos como espaço e tempo são tratados em ambas as artes com suas
singularidades e semelhanças.
Não podemos ter certeza de quando
começou o diálogo entre as HQs e o cinema. Poderemos dizer que as influências
entre elas retomem o momento de suas criações ou desenvolvimento, isso se
considerarmos que as HQs estruturaram sua linguagem no século XIX, com o
desenvolvimento das técnicas de impressão e da imprensa, e não nos longínquos
anos da pré-história, quando os homens começaram a pintar as paredes das
cavernas. No entanto, a influência entre
uma arte e outra, num plano modo geral, remontam a outros tempos, temas e mídias.
Se considerarmos a influência que HQs e cinema têm entre si, não podemos nos
esquecer que antes delas já havia um outro diálogo entre a fotografia e a
pintura, de forma que essas relações possuem muitos antecedentes. Ou mesmo,
podemos perceber um paralelo entre o cinema e o teatro, ou entre a fotografia
do cinema com a pintura anterior a ela, ou ainda a representação dos
personagens tanto no teatro quanto na pintura, onde podemos observar um grande
diálogo entre a encenação de atores em um palco e as figuras dos personagens em
uma pintura: a pintura como cena teatral. O que quero dizer é que as imagens,
ao longo do tempo, possuem teias de conexões. Ismail Xavier desenvolveu textos
traçando paralelos entre cinema e teatro, um deles inicia assim:
Ao analisar as relações entre o cinema e
o teatro, meu objetivo é destacar continuidades, não rupturas. Muito já se
falou sobre as diferenças entre as duas formas de espetáculo, visando marcar
especificidades. Estas existem mas devo aqui explorar os pontos de intersecção,
pois o cinema narrativo quase sempre traz
o teatro dentro de si, atualiza gêneros dramáticos, envolve mise-en-scène
(...) A história nos tem oferecido inúmeros exemplos de um intercâmbio que não
deixou de ser motivo de incômodo para uma parcela da crítica cinematográfica.
(XAVIER. 1996. p. 247).
As pinturas das cavernas podem ser
consideras HQs porque narram graficamente através de uma arte sequencial de
imagens, assim como os desenhos que são feitos hoje ainda usam elementos
básicos que aqueles homens primitivos usaram: a linha, a textura, a cor, o
espaço. Já a pintura usa esses elementos do desenho, mas não ficou presa a
eles, adquirindo sua própria linguagem.
Numa linha histórica, a fotografia
aparece utilizando vários elementos comuns ao desenho e à pintura: seja na
composição, no jogo de luz ou outro elemento qualquer. O cinema e as histórias
em quadrinhos surgem pouco depois com a tarefa de contar histórias através de
imagens, tarefa essa que o desenho, a pintura e o teatro também exercem. A
própria mise-en-scène, que Xavier citou acima, termo originário da
teoria do teatro francês, que se refere à movimentação e posicionamento dos
personagens no espaço cênico, está presente também no cinema, bem como nessas
artes visuais “estáticas”, como a pintura ou a fotografia.
A mise-en-scène cinematográfica
se assemelharia à de um quadro, a liberdade de ponto de vista comum aos dois os
afastaria do teatro, mas o teatro continua a ser o principal modelo do “levar
para a cena”, da cena, do espaço cênico, do espaço representado (AUMONT. 2004.
p.159).
De modo que existe um processo
histórico e cultural que influencia o ato da construção imagética, ou mesmo
cultural, entrelaçando várias formas de expressão diferentes. As HQs e o cinema
possuem convergências e divergências na sua linguagem, como todas as outras
artes também possuem entre si. Will Eisner, importante autor e teórico de
quadrinhos norte americanos, já disse que “não há como mensurar isso, mas
sabemos que essas diferentes mídias se influenciam entre si”
(EISNER.2005.p.73).
Para entendermos melhor uma arte
como as HQs, podemos tomar como base de estudo o cinema e traçar esses
paralelos e perpendiculares, semelhanças e diferenças, buscando continuidades
entre ambas, como Ismael Xavier fez comparando teatro e cinema.
A polêmica entre cinema e as HQ, para
determinar qual dos dois influenciou mais o outro, está longe de acabar. Isso
ocorre porque os dois meios de expressão, que nasceram quase ao mesmo tempo no
final do século passado, nunca pararam de olhar um para o outro, de se copiar e
até de se roubar. Ao lado do desenho animado, eles introduziram a continuidade
narrativa onde a ilustração, a pintura e a fotografia geravam imobilidade.
(...)
Na origem, o cinema é que fazia
empréstimos das HQ: basta pensar no célebre “O Regador Regado” (Lumière, 1895),
adaptado de uma história em quadrinhos publicada em 1887 (GUYOT. 1994. p.23)
Obviamente, Guyot faz referência à
origem das HQs a partir da teoria das publicações em jornais do final do século
XIX, ignorando a possibilidade milenar anterior. Mesmo assim, aponta os
quadrinhos como o primeiro a influenciar o cinema, e não o inverso. Entretanto,
Guyot não se preocupa tanto com isso. De fato, para ele, o mais importante são
as semelhanças e as diferenças.
Contudo, há parentescos entre as duas
formas, pelo menos em termos de vocabulário. O cinema teve a oportunidade de
ser levado a sério mais cedo e de se ver dotado de uma terminologia de análise
que serve até hoje ao estudo de textos literários. A pintura, no entanto, já
tinha o seu vocabulário, ela também, e as palavras “detalhe”, “retrato” ou
“paisagem” correspondiam ao corte em planos que conhecemos. Com efeito, a
representação do real, com seus enquadramentos e perspectivas, se distingue de
técnicas puramente cinematográficas como o zoom ou o fading (...) A grande arte
das HQ não se define pelo uso de técnicas ditas cinematográficas, mas por poder
fracionar, separar, jogar com vinhetas de diferentes formatos, superpor, compor
pranchas de imagens lá onde o cinema, que não pode introduzir variações em sua
tela, exibe uniformemente seus quadros (...) Como a HQ tem grande probabilidade
de ser relida, certos autores se dedicam a enriquecer seus desenhos com o único
objetivo de surpreender mesmo na segunda leitura: as gags anexas, no
fundo do cenário, não são utilizáveis pelo cinema, em que o espectador sempre
tem um foco visual fixo, sem dispor de tempo para sair um pouco da ficção (...)
o espectador não conseguiria compreender a sucessão de imagens resultante. Ele
nunca pode reduzir o ritmo, parar ou voltar. Como observa Bilal: “o grafismo
permite toda uma série de enriquecimentos, de recursos cromáticos permanentes
impossíveis no cinema. Assim, o filme é, de certo modo, um pálido reflexo do
meu universo” (GUYOT, 1994, P. 25).
Guyot é bem claro no que considera
mais importante. Apesar de se utilizar de recursos cinematográficos, como
definição de ângulos e planos (americano, close, aberto), a narrativa
dos quadrinhos não se define por isso, mas sim pela capacidade de composição de
pranchetas, do enriquecimento gráfico e do tempo que são únicos em cada uma
dessas expressões.
Apesar de parecer haver um
relacionamento mais evidente entre quadrinhos e cinema, existe uma diferença
básica e fundamental: ambos lidam com palavras e imagens. O cinema reforça isso
com som e a ilusão de movimento real. Os quadrinhos precisam fazer uma alusão a
tudo isso a partir de uma plataforma estática impressa. O cinema usa a
fotografia e uma tecnologia sofisticada a fim de transmitir imagens realistas.
Mais uma vez, os quadrinhos estão limitados à impressão. O cinema pretende
transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos a narram. Essas
singularidades, claro, afetam as tentativas de aproximação do cineasta e do
cartunista. (EISNER.2005.p.73).
Eisner nos apresenta estas
diferenças básicas citando a natureza estática dos quadrinhos, mas coloca
também referências novas: a pretensão realística do cinema. Quando usa a
fotografia e a representação do real como ferramenta de trabalho, o cinema
propõe uma experiência real. Quando o som começa a fazer parte da linguagem
cinematográfica, essa experiência torna-se ainda mais forte. Os quadrinhos
podem até utilizar a fotografia também, mas mais uma vez, sua linguagem
estática de narrativa o distancia de uma experiência real. Eisner continua:
Tanto um [os quadrinhos] quanto outro [o
cinema] são narradores trabalhando dentro de sua mídia para fazer contato com
um público. Mas cada um deles tem um compromisso diferente com sua audiência. O
cinema exige pouco mais do que a atenção de seu espectador, enquanto os
quadrinhos precisam de um pouco de capacidade de leitura e participação. O
espectador de um filme fica aprisionado até um filme terminar, mas o leitor de
quadrinhos está livre para folhear a revista, olhar o final da história, ou se
deter numa imagem e fantasiar (...) O filme transcorre sem qualquer preocupação
quanto à capacidade ou habilidade de leitura de sua audiência, enquanto os
quadrinhos precisam lidar com ambas. A menos que os leitores de quadrinhos
sejam capazes de reconhecer as imagens ou fornecer os eventos necessários que a
disposição das imagens propõem, nenhuma comunicação é estabelecida . Por causa
disso, o quadrinista é obrigado a inventar imagens que se conectem à imaginação
do leitor (EISNER. 2005. p.75-76).
Eisner é bem feliz quando trata da
necessidade do leitor de quadrinhos ser ativo e imaginar as imagens entre um
quadro e outro (assunto que trataremos com mais cuidado nas próximas páginas),
além de fornecer, internamente, também, o som àquelas páginas. Entretanto, é pequenez da parte dos teóricos
quadrinistas, afirmarem que “o cinema exige pouco mais do que a
atenção de seu espectador” ou que “o filme transcorre sem qualquer preocupação
quanto à capacidade ou habilidade de leitura de sua audiência”. É verdade que
um filme é projetado para uma sala lotada, de 500 ou mais lugares, de forma
indiferente à individualidade de cada um que está ali, mas acreditar que todos
entendam as informações de um filme de forma passiva ou pelo simples fato de
estar um pouco mais que atento, não é verdade: cinema também exige leitura e
participação, principalmente nos longos planos seqüência com profundidade de
campo, onde vários elementos podem ser apresentado ao espectador ao mesmo
tempo. Um bom filme, apresenta vários elementos que podem ser descobertos a
cada vez que é assistido. A edição cinematográfica possui cortes que também
exigem do espectador imaginar momentos que estão no filme de forma implícita,
como por exemplo: em determinada cena vemos um homem tomar café da manhã, na
cena seguinte o vemos dirigindo seu carro em direção ao trabalho. Ora! Não
vimos o personagem sair da mesa, da cozinha, de casa e entrar no carro, ou
mesmo dar a partida no veículo, mas tudo isso aconteceu. O cinema exige este
tipo de sensibilidade de leitura e de participação do público em vários níveis
de dificuldade.
Quando os críticos falam de
“experiência cinematográfica”, geralmente ignoram o fato de se assistir a um
filme na sala de suas casas, além de romantizarem a própria projeção, como fez Guyot acima, dizendo que nunca se
pode reduzir seu ritmo, para-lo ou voltar a uma cena que queremos rever. Eisner
disse que o “espectador de um
filme fica aprisionado até um filme terminar”. É como dizer: “A vida fora da
sala não existe mais até o fim daquela seção. Todos os espectadores estão
juntos no mundo do cinema”. A experiência estética do cinema pode ser rompida
pelo mais simples desvio de atenção, desde um celular tocando, do barulho da
pipoca sendo mastigada, da vontade de ir ao banheiro, ou mesmo quando uma cena
do filme nos remete a uma lembrança interna e viajamos momentaneamente para
nosso próprio mundo, esquecendo a projeção. O mesmo acontece quando lemos
quadrinhos. Além disso, o filme em casa permite ao espectador, com o controle
remoto em mãos, quase o mesmo controle que o leitor de quadrinhos ao folhear
uma revista: o espectador pode pular cenas, ver o final, pausar a exibição,
assistir o resto depois. Não vamos romantizar as diferenças.
Contudo, ainda há muitas
divergências verdadeiras a serem exploradas: o cinema possui um formato para
sua tela, via de regra, na proporção de 16:9. As HQs têm vários formatos
possíveis para impressão e cada quadrinho, em cada página, pode assumir um formato
(ou “requadro”, como Eisner chama) que irá compor de maneira diferente cada
prancheta, característica extremamente singular do quadrinho em comparação ao
cinema. Eisner falou sobre isso:
O formato (ou ausência) do requadro pode
se tornar parte da história em si. Ele pode expressar algo sobre a dimensão do
som e do clima emocional em que ocorre a ação, assim como contribuir para a
atmosfera da página como um todo. O propósito do requadro não é tanto
estabelecer um palco, mas antes aumentar o envolvimento do leitor com a
narrativa (...) Além de acrescentar à narrativa um nível intelectual
secundário, ele procura lidar com outras dimensões sensoriais (Eisner. 2001. p.
46).
A forma do requadro é um recurso
plástico muito particular dos quadrinhos e que o cinema não pode experimentar
muito. Entretanto, essas diferenças de recursos gráficos são temas a serem
estudados particular e posteriormente em outro estudo e em outro momento, o que
cabe agora é dizer que essa composição nos quadrinhos é que irá sugerir o tempo
de sua leitura. “Sugerir” porque quem define mesmo é o leitor, determinando
onde e quanto tempo irá gastar enquanto lê uma HQ, diferente do cinema, que tem
o tempo determinado pela projeção. Porém, como dissemos acima, não vamos
romantizar a experiência estética do cinema e dos quadrinhos. É claro que com a
possibilidade de se “pausar” um filme ou de se rever uma cena quantas vezes
quiser assistindo a um filme num aparelho reprodutor doméstico, ou mesmo
abandonar a sala de projeção quando o espectador bem entender, pode-se
questionar essa teoria do tempo a favor dos quadrinhos, contudo, não podemos
ignorar o fato de que essas intervenções prejudicam o ritmo do filme, que é
determinado pela edição ou pelo tempo de cada plano, consequentemente, prejudica
também a experiência cinematográfica, que não deveria ter seu tempo de projeção
interrompido. Da mesma forma, o ideal seria só fechar uma história em
quadrinhos quando terminada sua leitura, mas como sabemos, o ritmo e o tempo
nas HQs sofrem influencias e interferências diretas durante sua leitura, da
mesma forma que alguém quando interrompe
a leitura de um romance bem no meio de um capítulo crucial porque uma xícara de
café quente não pode esperar.
Também não podemos esquecer que nas
produções cinematográficas recentes, como Hulk do diretor Ang Lee
(2003), o recurso de recortar a tela de projeção do cinema em vários
“quadrinhos” com focos diferentes é um recurso que se assemelha à página de uma
HQ, entretanto, os vários focos de concentração criados com isso ainda não dão
ao público o tempo individual que só o leitor de uma arte estática como os
quadrinhos tem.
Desavenças à parte, a paixão entre
HQs e cinema é recíproca. Muitos artistas envolvidos em ambas as áreas dialogam
muito, apesar dessa constante “polêmica” de saber qual influencia mais a outra.
Meu caro Moebius,
(...)
Que grande diretor de cinema tu serias!
Nunca pensaste nisto?
O que há de mais admirável nos teus
desenhos é a luz – sobretudo nos teus desenhos em preto e branco: uma luz
fosfórica, oxídrica, luz de lux perpétua, de limbos solares...
Fazer um filme de ficção científica é um
dos meus velhos sonhos. Eu penso nisto desde sempre, pensava nisto bem antes
destes filmes estarem na moda. Tu serias, sem dúvida, o colaborador ideal,
entretanto não te chamarei jamais, pois tu és completo demais, tua força
visionária é terrível demais. Então o que eu iria fazer nessas condições?
Eis porque, caro Moebius, te digo apenas
isto: continua a desenhar fabulosamente para a alegria de todos nós.
Buon lavoro e buona fortuna.
Federico Fellini (MOEBIUS. 1984)
Esta carta, escrita pelo notório
cineasta Federico Fellini foi retirada da quarta capa do álbum O Homem é
bom?, de autoria de Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, um dos
quadrinistas mais premiados ao redor do mundo. A força de seu trabalho em
relação ao cinema não poderia ser expressa melhor por Fellini, pontuando o
artista em seu devido lugar: que
continue fazendo quadrinhos! Entretanto, Moebius já namorou com o cinema. Na
década de 70 trabalhou em esboços junto com Alexandro Todorokita, em 78 faz
desenhos para a ficção científica Alien, de Ridley Scott, em 79 faz
story-boardy de Os Mestres do Tempo e Tron, filme da Walt Disney.
Eu descobri as histórias em quadrinhos
francesas através da série de faroeste Lieutenant Blueberry, desenhado
por Moebius (...) Depois de ter visto seu trabalho, senti que acabara de
conhecer um amigo. Por isso, quando comecei a me envolver no projeto Duna,
eu o convidei para vir trabalhar comigo.
Nós trabalhávamos oito horas por dia
naquele filme, durante meses e meses (...) Moebius desenhava de um jeito
incrivelmente rápido. Trabalhar com ele era melhor do que trabalhar com as
câmeras mais sofisticadas. Sua caneta, quase que miraculosamente, criava todos
os travelings, as tomadas panorâmicas e os zooms que eu tinha em
mente. Isso me dava um registro pleno de todas as emoções que eu queria ver nos
rostos dos meus atores. Através dos três mil desenhos adicionais que ele fez
para Duna, eu tinha a nítida impressão de que já estava com meu filme
pronto. Todos que olhassem para o trabalho dele sentiriam que tinham apreciado
o filme tão inteiramente como se tivessem assistido à película na tela de uma
sala de cinema (JODOROWSKY. 2006)
É lugar comum elogiar a narrativa de
um desenhista de quadrinhos dizendo que ela é “cinematográfica”. Como Guyot bem
colocou, o cinema teve “a oportunidade de ser levado a sério mais cedo e de se
ver dotado de uma terminologia de análise que serve até hoje”, entretanto, a
mesmo fonte nos adverte de que “os dois meios de expressão (...) nunca pararam
de olhar um para o outro”. Portanto, não parece sensato elevar ou rebaixar a
qualidade de uma arte em comparação à outra e dizemos apenas, a partir das
colocações de Fellini e Jodorowsky, que suas linguagens dialogam. Assim sendo,
chegamos a um ponto além da simples comparação: como entender história em
quadrinhos a partir da linguagem do cinema?
02.
A fotografia do cinema parece-nos, à
primeira instância, o elemento mais fácil para começar o diálogo. Vários
pensadores da arte sequencial (história em quadrinhos) já estabeleceram esse
diálogo do plano do cinema com o plano do quadrinho: o close, o plano
americano, o plano aberto, o plongé, o contra-plongé etc.
Entretanto, limitaremos esta pesquisa ao estudo específico do processo de
edição cinematográfica. Parece avesso começar um estudo do quadrinho a partir
da última etapa da produção de um filme, mas este é apenas um elemento como
qualquer outro que também pode ser estudado isoladamente do todo.
Scott McCloud, em seu livro Desvendando
os quadrinhos, disse que os filmes antes de serem projetados “são só um
gibi muito, muito, muito lento” (fig.01), isso porque no cinema há 24
fotografias por segundo, ou seja, 24 frames. Nas histórias em
quadrinhos, esses frames podem ser entendidos como cada quadrinho que há
na página, entretanto, é fundamental lembrar neste momento que, diferente dos
quadrinhos, o cinema não tem no frame a unidade básica da criação ou
projeção do filme. Nas HQs, o frame/quadro tem essa função básica pela
natureza do registro desse momento único, como uma fotografia, mas no cinema o
que importa de fato é a continuidade (ou descontinuidade) dos planos sendo
enquadrados: o frame em favor do plano e dos enquadramentos. Por isso, é
comum que teóricos do cinema discordem de Scott McCloud, afirmando que o filme
não é pensado como quadros, mas como planos em movimento, portanto, nunca será
uma história em quadrinhos, mesmo antes de projetado. Isso fica mais claro de
entender se você imaginar que os frames não existem mais no vídeo ou na
imagem digital, e o cinema não sofreu nenhum abalo cognitivo, porque o que
importa são os planos sequências, a imagem em movimento.
A verdade é que um filme está sendo
efetivamente “cortado” 24 vezes por segundo. Cada quadro é um deslocamento do
anterior. Acontece que num plano contínuo, o deslocamento espaço/tempo de um
quadro para outro é tão pequeno (20 milésimos de segundo) que o público o vê
como uma continuidade dentro de um mesmo contexto, em vez de 24 contextos
diferentes por segundo. Por outro lado, quando o deslocamento visual é
suficientemente grande (como no momento do corte), somos forçados a reavaliar a
nova imagem como um contexto diferente. Milagrosamente, na maioria das vezes,
não temos dificuldade em fazê-lo (MURCH. 2004. p. 18)
(Fig. 01. McCLOUD. 1993. P. 08.)
Walter Murch, editor vencedor do
Oscar por Apocalipse Now (dirigido por Francis Ford Coppola, 1979) e O
Paciente Inglês (por Anthony Minghella, 1996), em seu livro Num Piscar
de Olhos, nos explica a importância desse frame de uma maneira que
casa muito bem com os quadrinhos. Primeiro, ele chama o frame de quadro.
Segundo, ele cita que quando o “deslocamento visual é suficientemente grande”
nós somos forçados a reavaliar o contexto. O corte feito depois de um plano
contínuo nos leva a um novo espaço tempo e nós precisamos “milagrosamente”
compreender essa mudança que aconteceu. Este “milagre” só acontece porque temos
as ferramentas necessárias para entender a mudança que acontece. Segundo Alberto Manguel, “só podemos ver as
coisas para as quais já possuímos imagens identificáveis, assim como só podemos
ler em uma língua cuja sintaxe, gramática e vocabulário já conhecemos” (2006.
p. 27). As ferramentas do cinema, essa gramática e vocabulário que conhecemos
bem ou mal, é que constrói a sua linguagem. Para entendermos o corte, passamos
por uma série de processos internos que buscam o conhecimento necessário para
decodificarmos a mensagem da imagem, ou melhor dizendo: da transposição de uma
imagem para outra. Scott McCloud, em seu livro “Desvendando o Quadrinhos”, diz
a respeito:
Esse fenômeno de observar as partes, mas
perceber o todo, tem um nome. Ele é chamado de conclusão. Em nosso dia a dia,
nós tiramos conclusões com freqüência, completando mentalmente o que está
incompleto, baseados em experiência anterior (...) Sempre que vemos uma
fotografia num jornal ou revista, nós praticamos a conclusão. Nossos olhos
captam a imagem em preto e branco fragmentada em retículas e nossas mentes a
transformam na “realidade” da fotografia (...) Nos filmes, a conclusão acontece
continuamente – vinte e quatro vezes por segundo – enquanto nossas mentes
transformam uma série de imagens paradas numa história em movimento contínuo
(McCLOUD. 1993. p. 63-65).
McCloud nos diz que nossa
“experiência anterior” nos fornece as ferramentas para interpretarmos as partes
a que somos submetidos de maneira que possamos tirar conclusões delas para
entendermos o todo. McCloud diz que tiramos conclusões continuamente enquanto
assistimos a um filme, mas podemos supor que o ato da conclusão a que ele se
refere não se resume a isso e pode ser aplicada numa percepção bem maior.
Existe uma realidade visível que nossos olhos captam e nossa mente decodifica,
criando imagens, quando na verdade vemos apenas pontos luminosos e somos
levados a crer na continuidade dessa realidade. Guarde bem essa idéia da
conclusão que usamos diariamente, ela será útil adiante. Agora vamos entender
como Murch explica como isso pode acontecer no que diz respeito à conclusão das
partes no deslocamento espaço temporal em seu trabalho, a edição no cinema:
O que nos parece difícil de aceitar são
os deslocamentos que não são nem sutis nem gritantes: por exemplo, o corte de
um plano de corpo inteiro para outro um pouco menor em que os atores estão
enquadrados do tornozelo para cima. Neste caso, o novo plano é diferente o
bastante para assinalar que algo mudou, mas não o suficiente para nos fazer
reavaliar o seu contexto. O deslocamento não é contínuo, mas também não é uma
mudança de contexto. A colisão dessas duas idéias produz uma confusão mental –
um pulo – que, comparativamente, torna-se incômodo (MURCH. 2004. p. 18 - 19).
Também nas histórias em quadrinhos
existe este deslocamento no espaço tempo e é
claro que Murch está se referindo a deslocamentos de um plano para outro
e não simplesmente nesses vários e pequenos frames (24 por segundo) que
compõe um mesmo plano. Contudo, diferente do cinema, dificilmente nos
quadrinhos encontramos cortes que durem 20 milésimos de segundo entre um quadro
e outro. Nos quadrinhos, cortes rápidos acontecem quando é preciso apresentar
muita informação num curto espaço de tempo, dando uma leve impressão de “câmera
lenta” (slow motion). Por exemplo: quando observamos um objeto em rápido
movimento percorrer “lentamente” um pequeno espaço de tempo, como uma bala que
se aproxima de alguém, ou quando Clark Kent torna-se Super-Homem enquanto cai
de um prédio. Isso acontece durante dois ou três segundos, mas pode ser
apresentado em uma página com cinco ou seis quadros. Jota A e J. Marques Jr. na
história “As Tartarugas Cangaceiras”, publicada na revista Qua Qua
Quadrinhos, ilustra de forma bem humorada esses cortes rápidos (Fig.02),
onde uma faca arremessada contra alguém desloca-se de um quadrinho para o outro
no espaço de tempo de alguns décimos de segundos enquanto a vítima observa-a
vindo em sua direção, derramando gordas gotas de suor.
Fig.02. Revista Qua
Qua Quadrinhos. Página 20. 1993
Normalmente, os cortes que acontecem
nos quadrinhos são mais “incômodos”, como os que citou Murch. Esses cortes
simples, que permanecem no mesmo contexto também são comuns, tanto quanto
aqueles que transportam o leitor de um lugar e de um momento para outro. Como o
entender dessa descontinuidade espaço temporal funciona?
Murch, no capítulo Não se
preocupe, é apenas um filme nos apresenta uma explicação interessante. Ele
compara o corte do cinema ao ato de “piscar” do olho, que fazemos continua e
rotineiramente. Vamos entender o que isso quer dizer... Essa sensação da
descontinuidade nos é fácil de assimilar porque, segundo ele, as imagens que
experienciamos em nossos sonhos são descontínuas e de cortes bruscos, como no
cinema.
Talvez a explicação seja bastante
simples: aceitamos os cortes porque nos lembram as imagens justapostas dos
sonhos. De fato, a brutalidade do corte pode ser a chave determinante para
efetivamente produzir a similaridade entre os filmes e os sonhos. No escuro do
cinema, estaríamos dizendo para nós mesmos: “Isto parece realidade, mas não
pode ser realidade porque é muito descontínuo visualmente, portanto deve ser um
sonho” (MURCH. 2004. p. 63).
O
homem acostuma-se, com o passar de sua vida, a aceitar a narrativa descontínua
dos sonhos e, muitas vezes, consegue contar a história do seu sonho. De alguma
maneira, o corte que acontece no sonho é semelhante ao que acontece no cinema.
E esse corte proporcionado pelo sonho nos é compreensível porque o fazemos
quando piscamos. Piscar é um corte.
Um aspecto a ser considerado porém é a
possibilidade de existir uma parcela de nossa realidade que, mesmo acordado,
vivenciamos como cortes cinematográficos, quando as imagens da realidade se
agrupam numa justaposição mais descontínua do que parece.
Comecei a pensar nisso por ocasião do
primeiro filme que editei – A Conversação –, quando reparei que Gene Hackman
(no filme, Harry Caul) piscava em momentos muito próximos aos pontos em que eu
decidia cortar. Era interessante, mas eu não sabia o que fazer com isso.
Foi então que certa manhã (...) vi que a
primeira página de um número da Monitor trazia uma entrevista com John Huston
(...) “Olhe para aquela lâmpada ali. Agora olhe para mim. Olhe de novo para a
lâmpada. Agora para mim de novo. Viu o que fez? Você piscou. Isso são cortes.
Depois de ver uma primeira vez, você sabe que não precisa fazer um movimento
contínuo entre mim e a lâmpada porque já sabe o que tem no meio. A sua mente
corta a cena. Primeiro você olha a lâmpada. Corta. Depois olha pra mim.”
O que Huston nos pede para observar é o
piscar, um mecanismo fisiológico que interrompe a aparente continuidade visual
da nossa percepção. A minha cabeça pode se mover lentamente quando olho de um
lado da sala para o outro, mas na verdade estou cortando o fluxo das imagens
visuais em fragmentos significativos e assim justapondo e comparando esses
fragmentos (que no exemplo de Huston são o rosto e a lâmpada) sem informações
irrelevantes no meio do caminho.(MURCH. 2004. p. 64-65).
Nas histórias em quadrinhos esse
corte acontece no espaço entre quadros, esse espaço que Scott McCloud chama de
“sarjeta” (fig.03), mas que outros preferem se referir como “calha” ou
simplesmente “entre quadros”. É na calha que nós precisamos conceber a maior
parte do processo de transformação espaço temporal entre um quadro e outro.
(Fig. 03. McCLOUD. 1993.
P. 66.)
Como dissemos anteriormente, os
quadrinhos não possuem 24 quadros por segundo, mas, diferente do cinema, sua
imagem estática possui tempo próprio. Imaginemos um determinado quadrinho onde
podemos ler um diálogo entre dois personagens e uma ação se desenrolando em
segundo plano, como um terceiro personagem correndo na direção destes dois. No
quadrinho seguinte, o terceiro personagem os alcança e participa do diálogo com
os outros do início. Agora, acompanhem o raciocínio: o tempo do diálogo dos
dois personagens no primeiro quadrinho pode ser presumido pelo tempo do espaço
percorrido pelo terceiro personagem até atingir aqueles que estão conversando
no início. Quando esse terceiro personagem os alcança, em algum lugar na calha,
passamos para o momento imediatamente anterior ao do quadro seguinte, que é
quando ele inicia sua participação no diálogo.
O leitor precisa entender essa
relação entre espaço tempo dos quadrinhos, que é muito diferente no cinema. Nos
quadrinhos, um dos motivos para aceitarmos o corte com certa facilidade é pela
natureza de sua arte ser palpável e estática, assim como na pintura e na
fotografia, enquanto que no cinema o significante é imaginário. Isso cria uma
certa confusão que faz com que certos
teóricos é recorram ao erro de dizer que o cinema nos transmite uma falsa sensação
de continuidade, afinal, cada segundo é cortado 24 vezes. Para entendermos esse
equívoco, é importante lembrar aqui duas coisas: a primeira é a respeito da
imagem do vídeo e do cinema digital que já falamos antes: o frame, a
película, não existe mais nessa mídia, mas isso não atrapalha a cognição do
filme, não existe mais essa “falsa sensação de continuidade” porque os 24
quadros por segundo não estão mais ali. A segunda diz repeito ao processo de
conclusão que também abordamos há pouco tempo: se entendermos que percebemos a
realidade visível a partir de pontos de luz e que o decodificamos em nossa
mente e construímos imagens, podemos concluir que essa percepção da realidade
também tenta nos enganar, a visão também nos proporcionaria uma falsa sensação
de continuidade. Portanto, a idéia da falsidade do cinema é tão verdadeira
quanto a falsidade da percepção da realidade à nossa volta, o que, no fim das
contas, desqualifica essa diferença da descontinuidade ou corte entre o cinema
e os quadrinhos. Voltamos ao ponto que é realmente o diferencial: quadrinho é
estático e cinema é movimento, esses são os critérios que diferenciarão a
percepção do espaço tempo tanto numa arte e quanto na outra.
A calha entre um quadrinho e outro é
o corte, trata-se do piscar onde nós, leitores, precisamos justapor essas
imagens e perceber todas as informações que existem entre elas. As HQs exigem
do leitor que ele saiba o que há no entre quadros da mesma forma do percurso
que existe entre o olho e a lâmpada, no exemplo de Huston citado por Murch.
É claro que há um limite para o tipo de
justaposição que conseguimos fazer: não dá para avançar ou voltar no tempo e no
espaço (e essa é a prerrogativa dos sonhos e dos filmes). Ainda assim, o
deslocamento visual que consigo apenas girando a cabeça (do Grand Canyon à minha
frente para a floresta às minhas costas, ou mesmo de um lado para o outro dessa
sala) pode ser gigantesco (MURCH. 2004. p. 65).
Como
Murch colocou acima, se observarmos um ponto A, fecharmos os olhos, girarmos a
cabeça 180° e abrirmos os olhos novamente em um ponto B, poderemos nos deparar
com uma imagem completamente diferente e nem por isso perdemos a percepção do
contexto, indispensável para se contar uma história. Nos quadrinhos e no cinema
a mudança de um ponto A para um ponto B pode acontecer de maneiras diferentes,
que vamos tratar logo, antes, porém, Murch discute algo que cabe muito bem
aqui. Ele descreve seu processo de trabalho:
Além do procedimento normal, ainda
selecionava pelo menos um quadro representativo de cada posição de câmera e
fotografava-o. Em seguida mandávamos revelar num laboratório “1 hora”, como se
fossem fotos de família, e as colocávamos em painéis de acordo com a cena.
Sempre que os planos tinham uma encenação mais complexa ou uma câmera em
movimento, era preciso tirar mais de uma foto (...), geralmente tirava três,
mas na maioria das vezes, apenas uma (MURCH. 2004. p. 42).
As cenas de cada rolo de filme que
Murch recebia para editar, eram fotografadas. Uma única foto para cada cena ou
tomada. As mais complicadas, que exigiam uma mudança mais elaborada de um ponto
A para um ponto B, exigiam mais de uma foto para que ele, o leitor em questão,
que não apenas lia, mas construía uma fundamental parte da narrativa
cinematográfica (a edição), pudesse entender o movimento da cena. Continua:
Além disso, em função da forma em que são
dispostas, as fotografias se relacionam entre si de forma interessante. Em A
Insustentável [Leveza do Ser] tínhamos, digamos, 16 painéis de fotos, 130 fotos
em cada painel e cada painel foi organizado como a página de um livro: as fotos
da esquerda eram “lidas” para a direita e depois, na linha seguinte, da
esquerda para a direita de novo etc., exatamente como na leitura de um texto,
e, quando se chegava ao final de um painel, você ia para o alto do seguinte e
lia a primeira linha etc. A junção entre esses painéis era uma coisa
interessante de se ver porque justapunha cenas que, apesar de nunca terem sido
pensadas juntas, estavam ali, lado a lado (MURCH. 2004. p. 43).
Este álbum que Murch constrói é
muito semelhante a uma fotonovela, e uma fotonovela não deixa de ser uma
história em quadrinhos. A ordem sequencial das imagens justapostas neste álbum
que ele construiu é a narrativa do filme que pode ser lida como em um livro, da
mesma forma que assistimos desenrolar em nossas mentes as cenas de uma história
em quadrinhos. Mais ainda existe algo de fundamental em cada imagem que ele
selecionou, que ele chama de “momento decisivo”.
Mas para mim o trunfo das fotos era que
elas se transformavam em hieróglifos para a linguagem das emoções.
Que palavra expressaria o conceito de
raiva irônica com uma ponta de melancolia? Não há palavra para isso, pelo menos
não em inglês, mas é possível ver essa emoção específica representada numa
fotografia.
A foto também pode representar um tipo de
antecipação nervosa: a personagem está amedrontada, ao mesmo tempo excitada e
confusa porque sente desejo por outra mulher. E esta mulher está dormindo com o
marido dela. O que isso significa?
Seja o que for, está lá, na expressão
dela, no ângulo da cabeça com o cabelo e o pescoço e na tensão dos músculos, na
posição da boca e nos olhos dela. Basta apontar para a expressão do rosto de um
ator e estarão superadas as dificuldades da linguagem ao lidar com a sutileza
dessas emoções intraduzíveis [...]
A partir daí o trabalho do editor será o
de escolher as imagens certas e colocá-las em seqüência na medida certa para
expressar algo semelhante ao que foi captado naquela fotografia.
Ao escolher um quadro representativo, o
que se está procurando é uma imagem que sintetize a essência dos milhares de
outros quadros que formam a tomada em questão. É o que Cartier-Bresson –
referindo-se à fotografia – chamou de “momento decisivo”. Acho então que, na
maioria das vezes, a imagem que escolho acaba entrando no filme e, na grande
maioria das vezes, bem perto o ponto de corte (MURCH. 2004. p. 43-44).
Cada foto selecionada por Murch é,
como disse, o “momento decisivo”, o momento em que cada imagem possui o maior
número de elementos e informações necessárias para se contar a história, a
“essência” de cada cena. Cada momento decisivo pressupõe centenas ou milhares
de frames anteriores e posteriores. Uma boa história em quadrinhos deve
ser construída desses momentos decisivos, quadro a quadro, onde cabe ao leitor
justapor as imagens e visualizar em sua mente os milhares de “frames”
não selecionados pelo desenhista e que estão escondidos entre uma imagem e
outra. Will Eisner falou sobre
isso:
As histórias em quadrinhos são uma mídia
confinada a imagens estáticas, desprovidas de som ou movimento, e o texto tem
de suprir essas restrições.
Os escritores também têm de levar em
conta as habilidades do artista para definir suas expectativas. O artista ou o
escritor (ou ambos) são desafiados pela necessidade de transmitir o “âmago”.
Gestos sutis ou posturas provocativas não são fáceis de se representar sem a
movimentação contínua fornecida pelo filme. Nesta mídia, imagens para “contar”
a história têm de ser extraídas do fluxo da ação e, então, serem congeladas
(Eisner. 2005. p.118).
O que Eisner coloca é que, tanto o
escritor quanto o desenhista de quadrinhos, precisam representar, em cada
quadro, o âmago da história, ou a essência dela, o que preferir. E essas
imagens são construídas também pela escolha das palavras certas, mas
principalmente pela seleção do momento extraído do fluxo das ações. É
importante ressaltar aqui que o termo “representar”, aplicado por Eisner em seu
texto, não foi gratuito: como quadrinhos
não dispõe de som ou movimento, normalmente os gestos e expressões utilizados
na maioria dos quadrinhos possuem uma natureza cênica, como se os personagem
estivessem atuando, interpretando, como se estivessem em cena, mise en
scène. Aqui, esses momentos decisivos nos quadrinhos, lembram mais a
representação exagerada típica do teatro do que a representação mais realista
do cinema.
Scott McCloud, em outro de seus
livros, dessa vez o Desenhando quadrinhos, fala um pouco sobre esse
momento decisivo.
São estas as cinco situações em que suas
escolhas poderão determinar a diferença entre uma narrativa clara e convincente
e uma bagunça: Escolha do momento, escolha do enquadramento, escolha das
imagens, escolha das palavras, escolha do fluxo. Começando pelo topo, vamos dar
uma olhada em cada uma e veremos como elas se relacionam. Estas escolhas preliminares [momentos] são o
primeiro estágio de planejamento dos quadrinhos, em que os eventos de uma
história são separados em porções legíveis (...) Mesmo com esboços simples como
esses, o leitor deve ser capaz de “ler” claramente a ação. Nossa escolha do
momento (...) desempenha um importante
papel em assegurar a clareza. Os momentos escolhidos na seqüência (...)
representam a rota mais direta e eficiente para comunicar nosso simples
enredo (McCLOUD. 2008. p 10-12).
McCloud diz que, da mesma forma como
no cinema, existem vários elementos envolvidos no ato de construir as imagens e
como colocá-las em ordem para se narrar uma história. É importante que um
leitor de HQs entenda que determinado quadrinho foi desenhado daquela maneira
porque foi o melhor ângulo que o desenhista imaginou que funcionaria para
contar aquela história. Este momento decisivo, adicionado aos outros quatro
elementos, ou escolhas, segundo McCloud, trazem todas as informações
necessárias para que se desenrole a narrativa, os personagens, a trama, o que
seja.
Nesse ponto, o desenhista de
quadrinhos, que já possui o roteiro nas mãos, representa várias funções
daqueles que fazem cinema. Não apenas do editor, selecionando a melhor tomada
que entrará em sua história, mas também o câmera e o fotógrafo, decidindo os
ângulos e a iluminação. É também o diretor, trabalhando toda a história e os
personagens como em um filme. É o quadrinista que define a expressão no rosto
dos personagens, lidando “com a sutileza dessas emoções intraduzíveis”, de
maneira que, como dissemos anteriormente, o trabalho de edição é apenas um
elemento isolado que podemos utilizar para o estudo dos quadrinhos.
03.
Como colocamos acima e prometemos
retomar à questão, nos quadrinhos e no cinema a mudança de um ponto A para um
ponto B podem acontecer de diversas maneiras diferentes. André Bazin nos fala
em seu ensaio intitulado “A Evolução da Linguagem Cinematográfica” que existem
três maneiras de se fazer uma montagem:
...elas [as possibilidades da montagem]
podem ser apreendidas perfeitamente em três procedimentos conhecidos geralmente
pelo nome de “montagem paralela”, “montagem acelerada” e “montagem de
atrações”. Criando a montagem paralela, Griffith conseguia dar conta da
simultaneidade de duas ações, distantes no espaço, por uma sucessão de planos
de uma e da outra (BAZIN. 1991. p.67)
A primeira delas, a montagem
paralela, é muito simples e podemos entendê-la simplesmente retornando às
citações de Murch quando fala sobre os cortes bruscos, de contextos diferentes.
Essas narrativas paralelas são facilmente encontradas em quadrinhos, como, por
exemplo, em cenas de conversas por telefone, quando percebemos um fio
telefônico em espiral dividindo os quadros, substituindo a calha, dando impressão
de ações paralelas e simultâneas. Em outros casos, podemos ver dois focos de
ação desenrolando-se na mesma página sem, necessariamente terem ligações
diretas uma com a outra.
Bazin continua explicando, dessa vez
a montagem acelerada: “Em La roue, Abel Gance nos dá a ilusão da
aceleração de uma locomotiva sem recorrer a imagens reais de velocidade (pois
afinal, as rodas poderiam rodar sem se deslocar), pela simples multiplicação de
planos cada vez mais curtos” (BAZIN. 1991. p.67). Neste caso, o cinema usa
planos repetidos com duração cada vez mais curta, a roda da locomotiva girando
em espaços de tempo cada vez menores, no caso, para dá a impressão de que a
velocidade está aumentando. Ou seja, utiliza de mais cortes que a média normal
para dar agilidade a uma cena, tudo isso sem recorrer a imagens reais de
velocidade.
Bazin é um dos mais importantes
defensores do realismo cinematográfico e propõe uma ética no registro do mundo
através do cinema. É irônico usar sua teoria para estudar os quadrinhos, uma
vez que “imagens reais” nos quadrinhos são raríssimos. Na verdade, não
conseguiria citar um exemplo. Se considerarmos os quadrinhos feitos com
desenhos, podemos considerar que nenhum dos seus quadros são “reais”. Se
citarmos os quadrinhos construídos com fotografias, ainda não teríamos a
movimentação para dar a sensação de realidade e a própria natureza da edição
dos quadrinhos, favorecido pelos “cortes bruscos”, acabaria com qualquer
possibilidade de representação real. Se ignorarmos tudo isso, podemos aplicar
Bazin e discutir o ponto: como dissemos anteriormente, os quadrinhos permitem
ao leitor um tempo subjetivo que lhe atribui um ritmo próprio de leitura, o que
dificulta essa percepção de aceleração entre um quadro e outro. Entretanto,
recursos gráficos são possíveis de sugerir essa sensação. Enquadramentos com
ângulos inclinados, imagens repetidas com leves distorções ou mesmo o simples
recuo do distanciamento entre os quadros, a diminuição do espaço da calha,
podem permitir essa sensação de rapidez crescente, entretanto é mais comum que,
quando uma imagem é repetida, multiplicadas vezes numa mesma página, a sensação
comum é a de que o tempo desloca-se mais devagar, dando uma impressão de
lentidão ou desaceleração, exatamente o contrário do que propõe Bazin. Scott
McCloud, em seu livro Desvendando os Quadrinhos, diz:
Quando aprendemos a ler quadrinhos,
aprendemos a perceber o tempo espacialmente, pois, nas histórias em quadrinhos,
tempo e espaço são uma única coisa. O problema é que não há diagrama de
conversão. Os poucos centímetros que nos transportam de segundo pra segundo
numa sequência [as calhas, ou sarjetas] podem nos levar por centenas de milhões
de anos em outra. Assim sendo, como leitores, nós temos a vaga sensação de que
movendo-se pelo espaço, nossos olhos também estão se movendo pelo tempo
(McCLOUD. 1993. p 100).
De acordo com o autor, a percepção
do espaço tempo nos quadrinhos é uno. Espaço é tempo. Para entendermos melhor a
colocação de Scott, precisamos olhar a figura 04, onde encontramos um,
digamos, “experimento de percepção temporal” no qual um mesmo quadrinho é
repetido várias vezes ou ocupa um espaço maior na página, dando uma sensação
que tempo maior para o leitor. Entretanto, usando a idéia de que espaço é tempo
nos quadrinhos, podemos teorizar que, se em determinado quadrinho, o plano (ou
a sequência de quadros) é repetida em espaços na página cada vez menores, como
se páginas inteiras fossem repetidas em enquadramentos que ocupassem cada vez
menos espaço, se o enquadramento vai gradativamente diminuindo a cada
repetição, a impressão que teríamos, com certeza, é a de que o mesmo
acontecimento está ocupando cada vez menos tempo (espaço) para acontecer, ou
seja: o fato, a cada repetição mais curta, estaria acontecendo mais rápido.
(Fig. 04. McCLOUD. 1993. P. 101.)
A última das montagens, é a de
atrações, que, segundo Bazin:
Enfim, a montagem de atrações, criada
por Eisenstein, cuja descrição não é tão fácil, poderia ser definida
grosseiramente como o reforço do sentido de uma imagem pela aproximação de
outra imagem que não pertence necessariamente ao mesmo acontecimento: os fogos
de artifício em O Velho e o novo, que sucedem a imagem do touro. Nessa
forma extrema, a montagem de atrações foi raramente utilizada, até mesmo por
seu criador, mas podemos considerar bem próxima em seu princípio à prática mais
geral da elipse, da comparação ou da metáfora (...) Quaisquer que sejam,
podemos reconhecer nelas o traço comum que é a própria definição da montagem: a
criação de um sentido que as imagens não contém objetivamente e que procede
unicamente de suas relações (BAZIN. 1991. p.67-68).
Para explicar Bazin, a melhor
maneira que encontramos é citando McCloud novamente. Para ele, existe nos
quadrinhos seis tipos de transição de imagens, uma delas é o non-sequitur
(do latim: “não se segue”).
E, finalmente, existe o non-sequitur,
que não oferece nenhuma sequência lógica entre os quadros. Esta última
categoria sugere uma questão interessante. Seria possível uma sequência de
quadros totalmente desconexos entre si? Eu particularmente não acredito. Por
mais que uma imagem seja diferente de outra, sempre há um tipo de alquimia no
espaço entre os quadros, que pode nos ajudar a descobrir um sentido até na
combinação mais dissonante. Essas transições podem não fazer “sentido” de uma forma
tradicional, mas algum tipo de relação acaba se desenvolvendo. Criando uma
sequência de duas ou mais imagens, nós damos a ela uma identidade forçando o
leitor a considerar essas imagens como um todo. Por mais diferentes que sejam,
elas passam a pertencer a um único organismo (McCLOUD. 1993. p 72-73).
Esse tipo de montagem exige um tipo
de sensibilidade diferente do leitor, ou espectador, além de uma certa
responsabilidade do artista que as cria. Bazin e McCloud nos afirmaram que nós,
como interlocutores dessas imagens, procuramos um sentido nessas uniões
desconexas e que esse sentido acaba fluindo como que fruto de uma alquimia, por
mais absurda que a interpretação dessas imagens possam ser. A sensibilidade a
que me refiro diz respeito ao leitor ficar atento e não simplesmente ignorar
essas imagens que parecem desconexas, buscando nelas uma interpretação pessoal.
A responsabilidade do artista diz respeito ao objetivo que ele procura alcançar
com esse tipo de imagens, para que elas não se limitem a experimentalismos que
“não faça nada para levar a história adiante (...) proporcionando ocasionais
piadas absurdas” (McCLOUD. 2008. p. 17).
Como dissemos acima, seis são os
tipos de transições que Scott McCloud pôde encontrar nos quadrinhos: 1) Momento
a momento; 2) Ação a ação; 3) Sujeito a sujeito (ou tema a tema); 4) Cena a
cena; 5) Aspecto a aspecto e 6) Non sequitur (fig. 05). Vamos
abordar as cinco primeiras, que não foram trabalhadas ainda.
(Fig. 05. McCLOUD.
2008. P. 15.
“As transações de momento a momento,
por exemplo, são úteis para retardar a ação, aumentando o suspense, capturando
pequenas mudanças e criando um movimento cinematográfico na página” (McCLOUD.
2008. p. 16). Esse primeiro tipo de transação, como disse McCloud, lembra muito
a linguagem cinematográfica exatamente por trabalhar com cenas do mesmo ângulo,
momentos de um mesmo plano, sem aqueles cortes bruscos de contexto do qual
falou Murch, como comentamos no início deste texto. Como se a câmera, ou o olho
do leitor, se aproximasse de um rosto entre um quadro e outro, ou alguém
fechasse os olhos, ou uma bola rolasse de um lado para o outro do mesmo
enquadramento.
“Os tipos de ação a ação são
conhecidos por sua eficiência. O cartunista simplesmente escolhe um momento por
ação, de modo que cada quadrinho contribua para levar o enredo adiante e manter
o ritmo acelerado” (McCLOUD. 2008. p. 16). Este tipo de transição é mais
difícil de acontecer no cinema porque é típico da narrativa de imagens
estáticas. Um exemplo citado por Scott: no primeiro quadro temos uma ginasta
passando pó nas mãos, no seguinte, temos ela correndo, no terceiro quadro, ela
saltando um obstáculo, no quarto, tocando o chão, no quinto, fazendo uma pose,
no sexto, comemorando com o técnico. Ora, tudo isso no cinema poderia
facilmente ser feito em um plano sequência sem nenhum corte (se
desconsiderarmos os 24 frames por segundo), o que pareceria uma cena de
momentos. Se o diretor decidisse filmar essa mesma cena com movimento de câmera
que alterasse seu ângulo, ainda teríamos momento a momento. Agora, se ele decidisse
fazer cortes, mostrando a cena de ângulos ou perspectivas diferentes, teríamos
a cena dentro de um mesmo contexto, o que McCloud chamaria de tema a tema, como
a ginasta saltando e, em seguida, o sorriso do técnico, ou um corredor que
cruza a linha de chegada e em seguida vemos uma mão apertando um cronômetro
(McCLOUD. 1993. p. 71).
Em seu primeiro livro, Desvendando
os Quadrinhos, Scott McCloud intitula essa transição de tema a tema,
entretanto, em seu terceiro livro, Desenhando Quadrinhos, ele se refere
a essas transações de forma mais específica: sujeito a sujeito. “As transações
de sujeito a sujeito são igualmente eficientes para levar a história adiante
alternando os ângulos para dirigir a atenção do leitor conforme o necessário”
(McCLOUD. 2008. p. 16). Esse tipo de edição de imagens é muito comum no cinema
clássico, onde o plano seguido de contra plano narra, principalmente, cenas de
diálogos. Um personagem é colocado do lado direito do enquadramento enquanto
que o segundo é colocado do lado esquerdo, para a passar a idéia de que estão
um diante do outro.
“Os saltos de cena a cena podem
ajudar a contar a história em extensões diferentes, permitindo ainda assim
diversos intervalos de tempo e uma variedade de locais. Olhe bem para suas
histórias e você descobrirá que poderá cortar muitas coisas.” (McCLOUD. 2008.
p. 17). Essa transição é a mesma montagem paralela de Bazin, com um
diferencial: não precisa, necessariamente, serem cortes de momentos
simultâneos. “Com frequência, o raciocínio dedutivo é exigido na leitura dos
quadrinhos, como nessas transições cena a cena, que nos levam através de
distâncias significativas de espaço e tempo” (McCLOUD. 1993. p. 71). São cenas
que, normalmente exigem caixas de texto com citações como: “Enquanto isso, na sala
da justiça...” ou “Dez anos depois, em Paris...”. Às vezes, as imagens bastam,
sem nenhum texto explicativo, como se tivéssemos no primeiro quadro, um plano
aparecendo o sol e no quadro dois, o mesmo plano agora com a lua.
Às vezes pode convir à narrativa
paralisar o tempo e deixar que o olho vagueie. As transições de aspecto a
aspecto fazem justamente isso e foram usadas com sucesso no Japão – e
recentemente na América do norte – para criar uma forte sensação de local e
estado de espírito (McCLOUD. 2008. p. 17).
Um quinto tipo de transição, que a gente
vai chamar de aspecto pra aspecto, supera o tempo em grande parte e estabelece
um olho migratório sobre diferentes aspectos de um lugar, idéia ou atmosfera (McCLOUD.
1993. p. 72).
As duas citações de McCloud para o
mesmo assunto, em livros diferentes, explicam bem este tipo de transição. São
imagens que, normalmente servem para contextualizar a cena, mas não apenas o
plano aberto que mostra uma externa de casa e, em seguida, uma interna em plano
médio, com alguém sentado numa poltrona na sala, assistindo televisão. O
aspecto a aspecto sugere uma pausa na narrativa, mostrando vários elementos de
um mesmo contexto. Esse tipo de narrativa, nos quadrinhos orientais, onde foi
muito desenvolvida, às vezes, enchem várias páginas de cenas isoladas de um
mesmo contexto, como, por exemplo, um grande centro urbano sendo mostrado em
detalhes: os prédios, os transeuntes, os carros, um semáforo. Essa técnica
também é aplicada para exprimir algum sentimento, se a idéia é mostrar o
cotidiano conturbado da cidade grande onde o protagonista vive em constante
angústia, pode-se colocar um mendigo, um acidente de trânsito, um assalto, o
consumismo das vitrines das lojas etc. Scott utilizou, em seus dois livros, a
cena da chuva sob vários aspectos, apostando em cenas que exprimiam sentimentos
de solidão e melancolia. No cinema, narrativas como essas não são difíceis de
encontrar, a diferença no quadrinho se dá, novamente pela qualidade estática
das imagens, que permitem que o leitor demore quanto quiser em cada quadro até
perceber a natureza do sentimento ou atmosfera que o narrador pretende atingir.
Mas Scott ainda nos apresenta outro diferencial:
Quando o conteúdo de um quadro mudo não
indica sua duração, ele também pode produzir uma sensação atemporal. Devido à
sua natureza não-resolvida, esse quadro permanece na mente do leitor e sua
presença pode ser sentida nos quadros seguintes. Em “quadros sangrados” -
aqueles que extrapolam a margem da página – esse efeito é composto. O tempo não
é mais contido pelo ícone familiar do quadro fechado. Ele sofre uma hemorragia
e escapa pro espaço infinito. Essas imagens podem estabelecer o clima ou senso
de lugar em cenas inteiras pela sua presença atemporal (McCLOUD. 1993. p.
102-103).
O quadro sangrado, ou vazado, é um
recurso muito comum nos quadrinhos. O ícone do quadrinho, esse quadro fechado,
essa unidade básica que constitui cada momento decisivo nas HQs e delimita um
espaço e um tempo de determinada cena, pode ser rompido ou se apresentar de
várias maneiras diferentes, o requadro, como disse Eisner. Esse sangramento do
quadrinho pode se dá de duas maneiras: a primeira, que Scott chama de “ruptura
da quarta parede” (2008. p. 33), não é rara nas HQs, e trata-se quando a imagem
de um quadrinho dialoga diretamente com outra na mesma página. Às vezes, um
personagem ou um objeto qualquer rompe a linha do requadro e interfere na
leitura dos quadros vizinhos, pois essa imagem sobrepõe as outras (fig. 06).
Esse tipo de ruptura do quadro tem forte papel na diagramação da página, dando
destaque de determinado quadro em relação aos outros. É um recurso muito comum
em cenas de ação ou quadrinhos de super heróis, quando personagem parecem
saltar ou voar pra fora do quadro ou da página.
(Fig. 06. McCLOUD. 2008. P. 33.)
Enquanto que a primeira ruptura se
dá entre um elemento (personagem ou objeto) e o requadro ao seu redor, a
segunda ruptura, que Scott chama de “imagem sem borda” (2008. p.33), se dá
entre o requadro e a margem da página, é quando esse quadro não abarca tudo que
é necessário e a imagem parece incompleta, vazando para fora dos limites de
impressão da página (fig. 07). É quando o narrador se propõe a não
determinar esse espaço e tempo. É como se dissesse: “existe muito mais disso
fora do quadro”. Essa informação fica sobrevoando a cabeça do leitor. Esse
recurso é muito utilizado nessas transações de aspecto a aspecto nos quadrinhos
e o cinema, dificilmente consegue transmitir esse “sangrar” da imagem, já que
seu enquadramento na proporção 16:9 é completamente utilizado na projeção, não
há como rompê-lo. Sugerir que existe algo fora do quadro, isso os quadrinhos e
o cinema fazem o tempo todo, porque todo plano recorta determinado espaço, mas
é diferente de propor a ruptura do espaço e do tempo. Da mesma forma que o
cinema, os quadrinhos colocam imagens que exigem do espectador/leitor a
imaginação de perceber esse mundo fora do quadro: como um close up que
pressupõe o entendimento do redor. Mas é essa natureza estática das HQs, sua
limitação espacial, seja o papel impresso ou a tela de um computador, e a possibilidade de diagramação da página que
permite a visualização de vários quadrinhos ao mesmo tempo, é tudo isso que
permite aos leitores que, quando acontece esse segundo tipo de ruptura em
relação ao quadro e a margem da página, que percebamos a proposta de um
quadrinho atemporal e de espaço infinito. Até onde vejo, o cinema não permite
que o espectador compare a margem de um frame com outro, pela natureza
contínua das imagens e por que a área de sua projeção normalmente é aquela
16:9. O cinema utiliza outros recursos que os quadrinhos não dispõem para
trabalhar a edição e essa percepção de espaço tempo: o som, a música, a imagem
acelerada, o bullet time, o movimento de câmera etc.
Hoje, o sangramento nos quadrinhos é
um recurso tão próprio de sua linguagem, tão poderoso e atraente que acaba
sendo mal utilizado, fazendo com que se perda essa característica atemporal e
de espaço infinito. Em quadrinhos como o mangá Gantz, publicado pela editora
Panini, praticamente não existe margem nas suas páginas, todos os quadrinhos
são vazados para fora da página e divididos apenas pelas calhas internas.
Nesses casos, o recurso do quadrinho atemporal e de espaço infinito não é
utilizado e é substituído pela necessidade do desenhista de ter mais espaço por
página para desenhar.
REFERÊNCIAS
AUMONT. Jacques.
O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify.
2004.
BAZIN. André:
O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense. 1991.
EISNER. Will. Quadrinhos
e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
EISNER. Will. Narrativas
gráficas. São Paulo: Devir, 2005.
GUYOT. Didier
Quella. A história em quadrinhos: coleção 50 palavras. São Paulo:
Loyola. 1994.
JODOROWSKY. Alejandro.
MOEBIUS. Incal. Vol. 1. São Paulo: Devir. 2006.
MANGUEL.
Alberto. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras. 2006.
McCLOUD. Scott. Desvendando
os quadrinhos. São Paulo: M.Books. 1993.
McCLOUD. Scott. Desenhando
quadrinhos. São Paulo: M.Books. 2008.
MOEBIUS. O
homem é bom? Porto Alegre: L&PM. 1984.
MURCH. Walter. Num
piscar de olhos: A edição de filmes sob a ótica de um mestre. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004.
XAVIER. Ismail. O
cinema no século. Imago Ed.: Rio de Janeiro. 1996.
FONTES
A. Jota. JR. Marques. Qua Qua
Quadrinhos: As Tartarugas Cangaceiras. Teresina: Fundação Nacional de
Humor. 1993. p. 20.
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