Por Aristides Oliveira
Não, aqui você não encontra ninguém vestido com roupas
super-coloridas, poderes daqueles que soltam fogo pela boca, raios
pelos olhos, muito menos lutas coreografadas. O trabalho do
quadrinista e articulador cultural (isso, articulador... produtor de
ambientes culturais na área das HQs em Teresina, o que falta a
muitos criadores hoje em dia...) Bernardo Aurélio passa longe das
explosões gratuitas dos nossos amados heróis imperialistas, mas com
uma influência fundamental no seu processo criativo.
Antes de falar de Por Dentro do Máscara de Ferro, vale a pena
situar a importância do autor na cena das HQs na cidade. Autor de
Foices e Facões – A Batalha do Jenipapo (junto com Caio
Oliveira, seu irmão e artista dos bons, que participa do livro como
desenhista convidado), Bernardo faz parte do Núcleo de Quadrinhos do
Piauí, onde organiza (ao lado de uma equipe muito coerente) feiras
temáticas em Teresina desde 2001 até então, movimentando o
circuito dos quadrinhos independentes por aqui com muita
responsabilidade.
O culpo diariamente por me tornar um apaixonado pelos quadrinhos há
quase um ano, depois da indicação de Batman: Ano Um... não
consigo parar de ler HQs... enfim... vamos voltar ao que
interessa....
Por Dentro do Máscara de Ferro é um livro que te atrai
fisicamente. Grande, vermelho, com uma capa impossível de resistir à
leitura, gostoso de segurar e carregar por aí. Um diferencial que
gostei foi o cruzamento com outras linguagens, marcados pela inserção
do texto em prosa no início da história, seguindo com seus traços
em p&b, bem como a preocupação com a paisagem sonora nos
momentos mais importantes da saga. É, música e HQ transitam no
mesmo espaço.
Já no índice, Bernardo lança para o leitor uma trilha indicada,
prescrição sonora que desobedeci (quando comecei a ler, veio outro
barulho na minha cabeça, pois na minha construção sonora do
personagem coube outros sons, como Ten Years After e alguns
momentos de Neil Young...) para experimentar outras
possibilidades de leitura e exercícios particulares de imaginação.
A cada situação valiosa na trama, Bernardo faz as indicações
sonoras aparecerem ao leitor, como podemos visualizar em Acelerando
em marcha ré, com a trilha Foi tudo culpa do amor, de
Odair José ou As rosas não falam, de Cartola e outras
seqüências musicais articuladas ao enredo. Assim, Bernardo abre
espaço para ampliar as sensações do público, tornando seu
trabalho mais sonoro-visual-pop-experimental. Um jogo de mixagem que
deve ser feito tanto com as músicas sugeridas e as que compõem o
universo do leitor, sacudindo as experiências do personagem.
Numa oficina de carros, o jovem mecânico tenta recuperar o motor de
um Maverick (entra o som de Alvin Lee e Ten Years
After... viu? Não pude evitar...). Neste cenário é que a
história do Máscara inicia em texto-prosa. Sua mente está
dividida entre o fim de um relacionamento e o trabalho que o
consome... a rotina... a repetição, a vontade de mudar o percurso:
“tenho pensado em tentar coisa nova” (...). “O problema é
esse: não sei o que quero. Só sei que preciso sair dessa oficina
vez ou outra (...)”.
Uma inquietação move aquele mecânico, algo estava fora do lugar...
A operação de reviver o Maverick foi um fracasso...
Fecham-se as portas da oficina. A paisagem fica cada vez mais noturna
e úmida. Um leve chuvisco, daqueles leves e demorados, com
relâmpagos e trovões ao fundo... Nosso olho está do lado de fora
da garagem aparentemente vazia e triste, esperando algo acontecer,
pois dá pra ver lá dentro que a luz está acesa...
“A garagem abre. Dois faróis acendem (...). A Kombi ganha a rua.
Dentro dele, pela primeira vez, a alma de um aventureiro encontra
aquele botão de adrenalina escondido, que injeta batidas fortes no
peito”. Eis que explode o Máscara de Ferro.
Caracterizado por uma máscara típica dos soldadores, carregando no
seu “cinto de utilidades” um maçarico, umas chaves de boca e
roda, martelo, pregos, porcas, um cano e o “antigo 38 do meu velho
pai”, o Máscara de Ferro sai em busca de aventuras nas
noites de Teresina.
Entre ações frustradas como “super-herói” da noite e
explorações das suas habilidades, o Máscara abre para nós
uma reflexão que move sua caminhada: “Será que temos de ser
loucos para sermos heróis? Será que todos não usamos máscaras?”
E assim, vamos acompanhando o processo de auto-descoberta do Máscara.
Após a cômica “carga dramática” que movimenta a
performance do nosso herói, ele salta pelo ar e vivencia um conjunto
de experiências fundamentais para reorganizar seus sentimentos,
mesmo em conflito com seu melhor amigo: “Alguma vez, da altura
desses teus vinte e poucos anos, tu já sentiu uma maldita certeza de
que queria fazer alguma coisa na vida e que só o que te impedia era
tu mesmo?”
Caminhando por Theresina (já escura), ele vai em direção aos seus
fantasmas, pois a sua máscara é o instrumento que potencializa
todas as suas vontades mais secretas, agora compartilhadas entre nós.
É aí que fui imaginando os traços autobiográficos em convergência
entre Máscara e seu autor, que o toma como elemento para
explorar paisagens talvez inabitadas, se não houvesse a armadura
construída para tal.
A busca por justiça, ameaçada por um desejo mal compreendido? A
angústia e a vontade de invadir os olhos da antiga amada? Uma
curiosidade insistente pela felicidade dela? Porquê tomar os olhos
dos outros? “Você ainda não conseguiu colocar uma pedra por cima
disso”? Estaria o Máscara, (como todos nós...) buscando
uma armadura para resolver seus conflitos mais íntimos? Quantas
Kássias precisamos (diariamente) para exorcizar nossos
demônios, a fim de reinventar a noção de desejo e todo aquele pó
que cobre nossas taras? Aqui entra Marina Lima (na minha trilha
sonora), situando o amor dos dois: “Os dois cansados, de tanto
amar, empapuçados, pra poder fugir, os dois cansados, de viajar,
maravilhados, pra poder fugir, enquanto você se afasta me
desenterro...”
Nada como a água para purificar os conflitos internos, mesmo com
Deus cuspindo verdades que a gente não quer ouvir. Às vezes a gente
toma o aprendizado como algo doloroso e é dessa forma que vejo o
Máscara, um personagem que carrega a vontade de desbravar
todos os seus limites e de conhecer esferas que fogem das convenções
estabelecidas. Como invadir sem proteção? Como não sentir dor se
algumas explorações podem nos custar um preço alto?
Todos os desbravadores da vida, seja por meio lícito ou não,
guardam nas mochilas suas máscaras de ferro, pois o corpo não
suporta todas as pressões: “somos tão falíveis”...
Sentado na calçada, conversando com uma garota perto da Ponte
Metálica, talvez o Máscara tenha encontrado algum estilhaço
que possa ser útil para aliviar seus conflitos. “Sabe o que
acontece quando se pede algo a Deus? Ele te dá a oportunidade de
provar para si mesmo se você merece o que quer... depende mais de
você e das suas escolhas do que da vontade dele”.
Os demônios que o cercam são expulsos para que um Amor possa
entrar. O Máscara enfrenta todos os seus inimigos interiores,
amplia todos os seus horizontes de experiência, para finalmente
completar seu objetivo mais importante: se reencontrar a partir do
outro.
Bernardo é o Máscara de Ferro? Aonde você esconde a sua?
Você já explodiu em si mesmo para arrancar as armaduras que o
impedem de viver um grande amor? Não seria a nossa máscara um
artefato moralista-conservador, diante da maravilhosa possibilidade
de transitar pelo Inferno e por vários corpos oferecidos por Dino
Buzzati? A diferença entre Máscara e Orfi é que
aquele não usa violão para lutar contra seus maus espíritos, mas
convergem no mesmo “inventário de ‘baixezas’ e de ‘nobrezas’,
aquelas que se abrigam no coração de todos” (TOSCANI, Cláudio).
Orfi sofre o luto de não capturar Eura e o Máscara
vive feliz, jogando fora sua armadura para poder (finalmente) olhar
sem medo para a mulher que ama, encerrando uma saga interior, pois
“poucas coisas no mundo devem ser como estar no fundo da rede com
quem você quer”. A vida segue.
Aristides Oliveira é jogador de bola aos domingos, leitor de
HQs amador, professor de História da Universidade Federal do Piauí
(Floriano), editor da revista Acrobata.
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