domingo, 2 de fevereiro de 2014

Por Dentro do Máscara de Ferro: as experiências de um herói interior.

Por Aristides Oliveira



Não, aqui você não encontra ninguém vestido com roupas super-coloridas, poderes daqueles que soltam fogo pela boca, raios pelos olhos, muito menos lutas coreografadas. O trabalho do quadrinista e articulador cultural (isso, articulador... produtor de ambientes culturais na área das HQs em Teresina, o que falta a muitos criadores hoje em dia...) Bernardo Aurélio passa longe das explosões gratuitas dos nossos amados heróis imperialistas, mas com uma influência fundamental no seu processo criativo.
Antes de falar de Por Dentro do Máscara de Ferro, vale a pena situar a importância do autor na cena das HQs na cidade. Autor de Foices e Facões – A Batalha do Jenipapo (junto com Caio Oliveira, seu irmão e artista dos bons, que participa do livro como desenhista convidado), Bernardo faz parte do Núcleo de Quadrinhos do Piauí, onde organiza (ao lado de uma equipe muito coerente) feiras temáticas em Teresina desde 2001 até então, movimentando o circuito dos quadrinhos independentes por aqui com muita responsabilidade.
O culpo diariamente por me tornar um apaixonado pelos quadrinhos há quase um ano, depois da indicação de Batman: Ano Um... não consigo parar de ler HQs... enfim... vamos voltar ao que interessa....
Por Dentro do Máscara de Ferro é um livro que te atrai fisicamente. Grande, vermelho, com uma capa impossível de resistir à leitura, gostoso de segurar e carregar por aí. Um diferencial que gostei foi o cruzamento com outras linguagens, marcados pela inserção do texto em prosa no início da história, seguindo com seus traços em p&b, bem como a preocupação com a paisagem sonora nos momentos mais importantes da saga. É, música e HQ transitam no mesmo espaço.
Já no índice, Bernardo lança para o leitor uma trilha indicada, prescrição sonora que desobedeci (quando comecei a ler, veio outro barulho na minha cabeça, pois na minha construção sonora do personagem coube outros sons, como Ten Years After e alguns momentos de Neil Young...) para experimentar outras possibilidades de leitura e exercícios particulares de imaginação.
A cada situação valiosa na trama, Bernardo faz as indicações sonoras aparecerem ao leitor, como podemos visualizar em Acelerando em marcha ré, com a trilha Foi tudo culpa do amor, de Odair José ou As rosas não falam, de Cartola e outras seqüências musicais articuladas ao enredo. Assim, Bernardo abre espaço para ampliar as sensações do público, tornando seu trabalho mais sonoro-visual-pop-experimental. Um jogo de mixagem que deve ser feito tanto com as músicas sugeridas e as que compõem o universo do leitor, sacudindo as experiências do personagem.
Numa oficina de carros, o jovem mecânico tenta recuperar o motor de um Maverick (entra o som de Alvin Lee e Ten Years After... viu? Não pude evitar...). Neste cenário é que a história do Máscara inicia em texto-prosa. Sua mente está dividida entre o fim de um relacionamento e o trabalho que o consome... a rotina... a repetição, a vontade de mudar o percurso: “tenho pensado em tentar coisa nova” (...). “O problema é esse: não sei o que quero. Só sei que preciso sair dessa oficina vez ou outra (...)”.
Uma inquietação move aquele mecânico, algo estava fora do lugar... A operação de reviver o Maverick foi um fracasso... Fecham-se as portas da oficina. A paisagem fica cada vez mais noturna e úmida. Um leve chuvisco, daqueles leves e demorados, com relâmpagos e trovões ao fundo... Nosso olho está do lado de fora da garagem aparentemente vazia e triste, esperando algo acontecer, pois dá pra ver lá dentro que a luz está acesa...
“A garagem abre. Dois faróis acendem (...). A Kombi ganha a rua. Dentro dele, pela primeira vez, a alma de um aventureiro encontra aquele botão de adrenalina escondido, que injeta batidas fortes no peito”. Eis que explode o Máscara de Ferro.
Caracterizado por uma máscara típica dos soldadores, carregando no seu “cinto de utilidades” um maçarico, umas chaves de boca e roda, martelo, pregos, porcas, um cano e o “antigo 38 do meu velho pai”, o Máscara de Ferro sai em busca de aventuras nas noites de Teresina.
Entre ações frustradas como “super-herói” da noite e explorações das suas habilidades, o Máscara abre para nós uma reflexão que move sua caminhada: “Será que temos de ser loucos para sermos heróis? Será que todos não usamos máscaras?”
E assim, vamos acompanhando o processo de auto-descoberta do Máscara. Após a cômica “carga dramática” que movimenta a performance do nosso herói, ele salta pelo ar e vivencia um conjunto de experiências fundamentais para reorganizar seus sentimentos, mesmo em conflito com seu melhor amigo: “Alguma vez, da altura desses teus vinte e poucos anos, tu já sentiu uma maldita certeza de que queria fazer alguma coisa na vida e que só o que te impedia era tu mesmo?”
Caminhando por Theresina (já escura), ele vai em direção aos seus fantasmas, pois a sua máscara é o instrumento que potencializa todas as suas vontades mais secretas, agora compartilhadas entre nós. É aí que fui imaginando os traços autobiográficos em convergência entre Máscara e seu autor, que o toma como elemento para explorar paisagens talvez inabitadas, se não houvesse a armadura construída para tal.
A busca por justiça, ameaçada por um desejo mal compreendido? A angústia e a vontade de invadir os olhos da antiga amada? Uma curiosidade insistente pela felicidade dela? Porquê tomar os olhos dos outros? “Você ainda não conseguiu colocar uma pedra por cima disso”? Estaria o Máscara, (como todos nós...) buscando uma armadura para resolver seus conflitos mais íntimos? Quantas Kássias precisamos (diariamente) para exorcizar nossos demônios, a fim de reinventar a noção de desejo e todo aquele pó que cobre nossas taras? Aqui entra Marina Lima (na minha trilha sonora), situando o amor dos dois: “Os dois cansados, de tanto amar, empapuçados, pra poder fugir, os dois cansados, de viajar, maravilhados, pra poder fugir, enquanto você se afasta me desenterro...”
Nada como a água para purificar os conflitos internos, mesmo com Deus cuspindo verdades que a gente não quer ouvir. Às vezes a gente toma o aprendizado como algo doloroso e é dessa forma que vejo o Máscara, um personagem que carrega a vontade de desbravar todos os seus limites e de conhecer esferas que fogem das convenções estabelecidas. Como invadir sem proteção? Como não sentir dor se algumas explorações podem nos custar um preço alto?
Todos os desbravadores da vida, seja por meio lícito ou não, guardam nas mochilas suas máscaras de ferro, pois o corpo não suporta todas as pressões: “somos tão falíveis”...
Sentado na calçada, conversando com uma garota perto da Ponte Metálica, talvez o Máscara tenha encontrado algum estilhaço que possa ser útil para aliviar seus conflitos. “Sabe o que acontece quando se pede algo a Deus? Ele te dá a oportunidade de provar para si mesmo se você merece o que quer... depende mais de você e das suas escolhas do que da vontade dele”.
Os demônios que o cercam são expulsos para que um Amor possa entrar. O Máscara enfrenta todos os seus inimigos interiores, amplia todos os seus horizontes de experiência, para finalmente completar seu objetivo mais importante: se reencontrar a partir do outro.
Bernardo é o Máscara de Ferro? Aonde você esconde a sua? Você já explodiu em si mesmo para arrancar as armaduras que o impedem de viver um grande amor? Não seria a nossa máscara um artefato moralista-conservador, diante da maravilhosa possibilidade de transitar pelo Inferno e por vários corpos oferecidos por Dino Buzzati? A diferença entre Máscara e Orfi é que aquele não usa violão para lutar contra seus maus espíritos, mas convergem no mesmo “inventário de ‘baixezas’ e de ‘nobrezas’, aquelas que se abrigam no coração de todos” (TOSCANI, Cláudio).



Orfi sofre o luto de não capturar Eura e o Máscara vive feliz, jogando fora sua armadura para poder (finalmente) olhar sem medo para a mulher que ama, encerrando uma saga interior, pois “poucas coisas no mundo devem ser como estar no fundo da rede com quem você quer”. A vida segue.


Aristides Oliveira é jogador de bola aos domingos, leitor de HQs amador, professor de História da Universidade Federal do Piauí (Floriano), editor da revista Acrobata.



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