domingo, 31 de março de 2013

Multiculturalidade, patrimônio Imaterial e relativismo cultural



(Ou  "De  porque não temos Double McMinas  no McDonald's" quando o Queijo Minas é Patrimônio Histórico Nacional)

Por Bernardo Aurélio



O que é o patrimônio cultural de uma nação? Trata-se de um conceito difícil de definir. Focando nossa conversa nos parâmetros brasileiros, podemos procurar entendê-lo a partir da construção do decreto lei nº 25/1937, idealizado por Mário de Andrade. No artigo primeiro, defini-se assim: “Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.
Naquele findar da década de 30, a preocupação com o patrimônio nacional saía de um processo de latência e, reafirmado pelo programa de Nação oficializado pelo governo Vargas, encontramos a valorização dos grandes monumentos impregnados de valores históricos. E assim, seriam tombados, em nível nacional, os primeiros exemplos daquilo que constituíam os mais valorosos exemplos de nossa identidade. Em Teresina (PI), foram tombadas as portas da Igreja São Benedito. Não a igreja toda, apenas as portas que, segundo os especialistas responsáveis, significavam mais para o Brasil que toda a Igreja em si. E assim, consolidava-se a primeira fase da instalação do conceito de patrimônio histórico nacional, conhecida como fase heroica.
As primeiras décadas dessa política nacional se caracterizaram pela valorização do que especialistas como Aloísio Magalhães chamaram de monumentos de “Pedra e Cal” ou do “belo e velho”. Normalmente de natureza arquitetônica, grandes prédios de inegáveis valores históricos. Entretanto e naturalmente, os valores mudam e os conceitos mudam com ele. Até a consolidação do artigo 216 da constituição de 1988, que trata da questão de Patrimônio Nacional, muita coisa se alterou, em parte por conta de ideias e trabalho de pessoas como o já citado Aloísio Magalhães, que foi presidente do IPHAN no final dos anos 70. Diz o artigo 216: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais.
Então, o patrimônio passa a englobar um número bem maior de elementos, de coisas, de fazeres, até que não apenas as portas da Igreja São Benedito possam ser patrimônio histórico nacional, mas também seja o queijo feito em Minas. O conceito expande-se e os níveis de tombamento que procuram registrar e consolidar nossa identidade também. Assim surgem os tombamentos em nível estadual e municipal, privilegiando os regionalismos e cristalizando a caleidoscópica colcha de retalhos da nossa identidade.
Acontece que algo tipicamente local e recheado de particularidades únicas passam a identificar nossa nação, como a capoeira. Acontece também, que o tombo procura valorizar os fazeres cotidianos como as práticas religiosas, muitas vezes, protegendo aquelas que surgem nas minorias, como a umbanda. Dessa forma, a colcha da identidade brasileira, composta e revelada aqui pelas lentes da memória patrimonial, ganha muitas cores e formatos, nossa identidade torna-se multifacetada, multicultural. A noção de nação torna-se um quebra-cabeças de várias peças e cores que tentam retratar um único rosto que possui inúmeras caras. Em verdade, um trabalho hercúleo e impossível de construir em um mundo atual onde cada indivíduo pode possuir múltiplas identidades (vide Stuart Hall), que dirá uma nação.
Então, vivemos em um país tipicamente católico que tomba casas de umbanda e queijos de Minas como patrimônio nacional, que representam nossa identidade por causa das particularidades únicas que o culto afro-descendente desenvolveu no Brasil ou da forma como o queijo é feito em determinada região do nosso país. Acontece que eu, e grande parte das pessoas do país, não me encontro representado em valores como esses. Acontece também que, para falarmos apenas de queijo e não entrarmos no imbróglio da discussão religiosa, eu me identifico muito mais com queijo coalho do que com o Queijo Minas. No meu cotidiano, costumo pedir um big cheddar no McDonalds e não lembro se algum dia já comi algum queijo feito em Minas. Não me entendam mal, não é que eu prefira uma coisa à outra, não se trata disso: aceito e entendo muito bem que o queijo feito em Minas tenha muito mais a “cara” do Brasil. O que está aqui em discussão é o significado de construção ou reconstrução de uma identidade que se adapta ao tempo. Entretanto, não quero aqui me colocar como alguém avesso à memória patrimonial nacional e nada tenho contra o Queijo de Minas. O que quero deixar aqui em evidência é a necessidade da reflexão sobre as identidades partilhadas e valores coletivos intimamente ligados à memória, como pensa Maurice Halbawchs. Questões como essa são facilmente dribladas pela simples compreensão de que somos seres sociais vivendo em comunidades plurais e coletivas.
Seria ótimo se encontrássemos um Double McMinas nas lanchonetes por aí. Mas enquanto isso não acontece, e dificilmente acontecerá, é importante pensarmos sobre isso considerando que devemos nos apropriar dessa noção de patrimônio pois elas se revelam nas relações concretas e imediatamente vividas em grupos e comunidades, que se enraízam e se reconstroem nos espaços a que pertencem, nas relações afetivas, nas experiências vivenciadas e nas memórias dos grupos que as mantém.
Quando uma nação tomba algo em nível nacional, principalmente num país do tamanho do Brasil, é natural que apareçam espaços vazios ou onde essa decisão não encontre eco, mas independente disso, todos se submetem a essa decisão e precisam absorvê-la em um processo de auto-identificação e de resignificação no entendimento de que vivemos numa sociedade mista. O tombamento não estagna ou congela uma informação, porque ela é experienciada todos os dias. Bem ou mal, ela é preservada ou sucumbe no esquecimento se não for reinventada diante das novas gerações.
As políticas de patrimônios buscam uniformizar culturas e consolidar identidades em mundos plurais e globalizados. É uma verdadeira batalha, desgastante, que constrói discursos indiscriminados que procuram desesperadamente o diálogo entre culturas, às vezes, às avessas. Então, quando os diversos níveis de tombamento valorizam um elemento importante para determinadas minorias, ou grupos de pessoas, outros enormes grupos de pessoas podem não se identificar com isso, mas vivem nessa mesma Nação. De certa forma, é como uma intervenção política, social e cultural que entra em nossas vidas sem pedir licença, construindo a identidade que não pedimos. Indiferente a tudo isso, e como disse Sandra C. A. Pelegrinni, parece que “um dos maiores impasses a serem enfrentados e superados pela sociedade atual esteja cravado na necessidade de digerirmos as diferenças e fomentarmos a tolerância à pluralidade”, pois é nesse mundo de nações-estado de mil faces e um rosto onde todos vivemos.

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