(Ou "De porque não temos Double McMinas no McDonald's" quando o Queijo Minas é Patrimônio Histórico Nacional)
Por Bernardo Aurélio
O que é o patrimônio
cultural de uma nação? Trata-se de um conceito difícil de definir.
Focando nossa conversa nos parâmetros brasileiros, podemos procurar
entendê-lo a partir da construção do decreto lei nº 25/1937,
idealizado por Mário de Andrade. No artigo primeiro, defini-se
assim: “Constitui
o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens
móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de
interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da
história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico, bibliográfico ou artístico”.
Naquele findar da década de
30, a preocupação com o patrimônio nacional saía de um processo
de latência e, reafirmado pelo programa de Nação oficializado pelo
governo Vargas, encontramos a valorização dos grandes monumentos
impregnados de valores históricos. E assim, seriam tombados, em
nível nacional, os primeiros exemplos daquilo que constituíam os
mais valorosos exemplos de nossa identidade. Em Teresina (PI), foram
tombadas as portas da Igreja São Benedito. Não a igreja toda,
apenas as portas que, segundo os especialistas responsáveis,
significavam mais para o Brasil que toda a Igreja em si. E assim,
consolidava-se a primeira fase da instalação do conceito de
patrimônio histórico nacional, conhecida como fase heroica.
As primeiras décadas dessa
política nacional se caracterizaram pela valorização do que
especialistas como Aloísio Magalhães chamaram de monumentos de
“Pedra e Cal” ou do “belo e velho”. Normalmente de natureza
arquitetônica, grandes prédios de inegáveis valores históricos.
Entretanto e naturalmente, os valores mudam e os conceitos mudam com
ele. Até a consolidação do artigo 216 da constituição de 1988,
que trata da questão de Patrimônio Nacional, muita coisa se
alterou, em parte por conta de ideias e trabalho de pessoas como o já
citado Aloísio Magalhães, que foi presidente do IPHAN
no final dos anos 70. Diz o artigo 216: Constituem
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I
- as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III
- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as
obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais.
Então, o patrimônio passa
a englobar um número bem maior de elementos, de coisas, de fazeres,
até que não apenas as portas da Igreja São Benedito possam ser
patrimônio histórico nacional, mas também seja o queijo feito em
Minas. O conceito expande-se e os níveis de tombamento que procuram
registrar e consolidar nossa identidade também. Assim surgem os
tombamentos em nível estadual e municipal, privilegiando os
regionalismos e cristalizando a caleidoscópica colcha de retalhos da
nossa identidade.
Acontece que algo
tipicamente local e recheado de particularidades únicas passam a
identificar nossa nação, como a capoeira. Acontece também, que o
tombo procura valorizar os fazeres cotidianos como as práticas
religiosas, muitas vezes, protegendo aquelas que surgem nas minorias,
como a umbanda. Dessa forma, a colcha da identidade brasileira,
composta e revelada aqui pelas lentes da memória patrimonial, ganha
muitas cores e formatos, nossa identidade torna-se multifacetada,
multicultural. A noção de nação torna-se um quebra-cabeças de
várias peças e cores que tentam retratar um único rosto que possui
inúmeras caras. Em verdade, um trabalho hercúleo e impossível de
construir em um mundo atual onde cada indivíduo pode possuir
múltiplas identidades (vide Stuart Hall), que dirá uma nação.
Então, vivemos em um país
tipicamente católico que tomba casas de umbanda e queijos de Minas
como patrimônio nacional, que representam nossa identidade por causa
das particularidades únicas que o culto afro-descendente desenvolveu
no Brasil ou da forma como o queijo é feito em determinada região
do nosso país. Acontece que eu, e grande parte das pessoas do país,
não me encontro representado em valores como esses. Acontece também
que, para falarmos apenas de queijo e não entrarmos no imbróglio da
discussão religiosa, eu me identifico muito mais com queijo coalho
do que com o Queijo Minas. No meu cotidiano, costumo pedir um big
cheddar no
McDonalds e não lembro se algum dia já comi algum queijo feito em
Minas. Não me entendam mal, não é que eu prefira uma coisa à
outra, não se trata disso: aceito e entendo muito bem que o queijo
feito em Minas tenha muito mais a “cara” do Brasil. O que está
aqui em discussão é o significado de construção ou reconstrução
de uma identidade que se adapta ao tempo. Entretanto, não quero aqui
me colocar como alguém avesso à memória patrimonial nacional e
nada tenho contra o Queijo de Minas. O que quero deixar aqui em
evidência é a necessidade da reflexão sobre as identidades
partilhadas e valores coletivos intimamente ligados à memória, como
pensa Maurice Halbawchs. Questões como essa são facilmente
dribladas pela simples compreensão de que somos seres sociais
vivendo em comunidades plurais e coletivas.
Seria ótimo se
encontrássemos um Double
McMinas
nas lanchonetes por aí. Mas enquanto isso não acontece, e
dificilmente acontecerá, é importante pensarmos
sobre isso considerando que devemos nos apropriar dessa noção de
patrimônio pois elas se revelam nas relações
concretas e imediatamente vividas em grupos e comunidades, que se
enraízam e se reconstroem nos espaços a que pertencem, nas relações
afetivas, nas experiências vivenciadas e nas memórias dos grupos
que as mantém.
Quando uma nação tomba
algo em nível nacional, principalmente num país do tamanho do
Brasil, é natural que apareçam espaços vazios ou onde essa decisão
não encontre eco, mas independente disso, todos se submetem a essa
decisão e precisam absorvê-la em um processo de auto-identificação
e de resignificação no entendimento de que vivemos numa sociedade
mista. O tombamento não estagna ou congela uma informação, porque
ela é experienciada todos os dias. Bem ou mal, ela é preservada ou
sucumbe no esquecimento se não for reinventada diante das novas
gerações.
As políticas de patrimônios
buscam uniformizar culturas e consolidar identidades em mundos
plurais e globalizados. É uma verdadeira batalha, desgastante, que
constrói discursos indiscriminados que procuram desesperadamente o
diálogo entre culturas, às vezes, às avessas. Então, quando os
diversos níveis de tombamento valorizam um elemento importante para
determinadas minorias, ou grupos de pessoas, outros enormes grupos de
pessoas podem não se identificar com isso, mas vivem nessa mesma
Nação. De certa forma, é como uma intervenção política, social
e cultural que entra em nossas vidas sem pedir licença, construindo
a identidade que não pedimos. Indiferente a tudo isso, e como disse
Sandra C. A.
Pelegrinni,
parece que “um
dos maiores impasses a serem enfrentados e superados pela sociedade
atual esteja cravado na necessidade de digerirmos as diferenças e
fomentarmos a tolerância à pluralidade”, pois é nesse mundo de
nações-estado de mil faces e um rosto onde todos vivemos.
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