quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Resenha de Impressões de Viagem


HOLLANDA. Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, Vanguarda e desbunde. 1960/1970. Rio de Janeiro: Aeroplano. 2004.

Bernardo Aurélio de Andrade Oliveira


Heloísa Buarque de Hollanda é uma mulher completamente imersa na vida acadêmica que leva, onde os temas das pesquisas que desenvolve misturam-se com sua própria vida. Característica essa, inclusive, denunciada abertamente por ela mesma nas primeiras páginas de sua tese, Impressões de Viagem, quando diz que “num certo sentido, a investigação desse debate é a investigação dos fundamentos do meu próprio percurso intelectual” (2004, pg. 15). Percurso que ainda estava se desenhando, pois Heloísa tinha a consciência de que estava tratando de um assunto contemporâneo, que ainda estava em processo, era uma análise de algo que estava acontecendo, ainda no calor dos anos 70.



Impressões de uma Viagem, a tese de doutorado de Heloísa, foi publicado originalmente em 1979 e trata-se de um estudo em torno da produção cultural brasileira tendo como recorte temporal desde o governo JK até à implantação do AI 5, durante a ditadura militar. Por conta disso, Heloísa, na introdução do livro escrita ainda em dezembro de 78, assume tratar-se de um risco assumido desenvolver um trabalho de análise de um período tão presente e ainda tão indeterminado em sua vida e na história política do Brasil. Ela afirmou “ainda que isso promova dificuldades no sentido da falta de uma perspectiva histórica mais definida, ou mesmo quanto à delimitação do objeto de análise, traz, em contrapartida, a possibilidade tentadora de uma atuação crítica no próprio desenrolar desse processo” (pg.14). Ela tinha plena consciência de que ainda estava no meio de um processo político que, de certa forma, havia se iniciado em 1964, com o golpe militar, e que pretendia desenvolver seus argumentos ao longo de um momento histórico que não tinha ainda um recorte final definido.

É interessante colocar que em Breve nota da autora sobre essa edição, publicada em 2004, Heloísa conta, com uma certa ironia, que seu livro, na época da primeira edição, “sofreu os cortes e as revisões de praxe”, entretanto “esta quarta edição não traz nenhum tipo de alteração, nem mesmo as correções que claramente se faziam necessárias. Achei importante manter a perspectiva fortemente conjuntural que dita o tom e sua atualidade enquanto testemunho da época” (pg. 08). Ou seja, o livro não teve nenhuma alteração em seu conteúdo comparado com sua edição original, publicada 25 anos antes, nos apresentando um verdadeiro relato do calor do momento dos anos de chumbo brasileiro. Isso torna-se mais interessante ainda para a prática da história nos dias de hoje quando damos cada vez mais valor às características narrativas de um historiador. Heloísa, no final de sua introdução, escrita em 1978, diz que seu texto é mais próximo de um relato narrativo, “a opção pela 'distensão' da forma de relato, mais própria ao narrador do que ao analista” (pg.15). Quer dizer, existe mais uma narrativa do período, proporcionada pela pesquisa de levantamento de campo, bem como pela proximidade com os objetos de pesquisa, do que uma análise estritamente histórica conforme as exigências que a prática historiográfica dita. A respeito disso, o texto de Zuenir Ventura, presente nas orelhas do livro desde a segunda edição, nos informa que Heloísa “vale principalmente pela audácia do método, que faz a autora misturar-se com o objeto que analisa, a ponto de abrir o primeiro capítulo com um indecoroso 'Eu me lembro...' e terminar o último com um devaneio: 'Fico pensando'...”. A autora, quando coloca-se enquanto narradora, em primeira pessoa, presente e atuante na pesquisa, assume um posicionamento ainda problemático e muito questionável para um historiador de nos dias hoje diante de sua pesquisa: o quanto devemos manter distância de nossos objetos de pesquisa? O quanto devemos ser objetivos e procurarmos nos ausentar enquanto o autor do texto durante nossa escrita? Heloísa sabia dessas questões, mas não se deixou inibir durante a elaboração de Impressões de Viagem.

Francisco Alvim, que faz o prefácio na primeira edição, já nos dizia que Heloísa fala “com a inteligência das coisas bem vividas, do tempo em que viveu e vive. E, nem por isso, sua percepção é limitadoramente realista” (pg.10), reforçando a ideia de que a narrativa da Heloísa representa bem o momento que vivia, pois, para Francisco, o propósito da autora é “recuperar a narração testemunha, voz que quase não se ouve mais nos dias de hoje (por obra do medo e dos tiranos)” (pg. 11). Podemos passar a entender, então, a obra de Heloísa como uma narrativa testemunhal dos fatos que, mesmo com a liberdade estilística do “eu” no texto, não diminui sua prática e nem sua significação na representação histórica do momento retratado, pois sua postura é sempre embasada em referências, citações e rastros da história, procurando dialogar com os discursos do momento, seja os dos poetas analisados, seja os de teóricos como Theodor Adorno ou Walter Benjamim. Mas passemos ao que trata, de fato, o livro.

O título completo é Impressões de Viagem: CPC, Vanguarda e desbunde. 1960/1970. As impressões no título nos remete à característica do relato testemunhal de Heloísa que já abordamos aqui. O recorte temporal do livro também está ali, claro. A pista que nos resta perceber ainda no título são os outros três elementos presentes: CPC, vanguarda e desbunde que representam, de fato os três momentos da história cultural analisados pela autora e que também dividem o livro em três capítulos principais, respectivamente: A participação engajada no calor dos anos 60; O susto tropicalista na virada da década; O espanto com a biotônica vitalidade dos 70. Vele lembrar que boa parte do volume que compõe o livro, em verdade a metade dele, são anexos importantes para compreendermos os objetos analisados pela autora, como por exemplo O anteprojeto do manifesto do Centro Popular de Cultura, escrito em março de 1962. Manifesto esse com as diretrizes culturais que os agentes revolucionários do CPC deveriam absorver no processo de criação de sua arte engajada militarmente.

“Em nosso país e em nossa época, fora da arte política não há arte popular” (pg.21) cita Heloísa uma frase do manifesto do CPC. Naqueles anos pré-golpe de 64, a força esquerdista era muito presente, a esquerda cada vez mais próxima de chegar ao poder e os protagonistas do CPC afirmavam que faziam uma arte popular revolucionária para lutar contra um inimigo muito claro. Influenciados por ideais marxistas, os cepecistas defendiam que só poderia haver três tipos de artistas: os conformados (alienados), os inconformados (mas não engajados) ou os representantes do exército do front cultural. Para representar esse momento, a autora cita poemas de pessoas como Oscar Niemeyer, que critica a posição dos arquitetos que apenas projetam mansões para os ricos e conclama os representantes de sua classe para trabalhar para o povo, “ponha a prancheta de lado e venha colaborar. O pobre cansou da fome que o dólar vem aumentar. E vai sair pra luta que Cuba soube ensinar” (NIEMEYER apud HOLLANDA. pg. 29).

Arnaldo Jabor também é lembrado por Heloísa, em um texto onde ele faz uma reavaliação do que era o movimento cepecista no qual participou: “A gente pensava que a fome era um caso de falta de informação: se o povo fosse bem informado, aconteceria a revolução” (JABOR apud HOLLANDA. pg. 30). Os cepecistas acreditavam nesse poder transformador, numa arte coletiva, do povo e para o povo. Mais tarde, Jabor diria que o que ficou registrado em sua memória desse movimento todo, da importância que teve “foi esta inédita, incrível, infantil, generosa, gentilmente ridícula crença nos poderes transformadores da arte. Nunca se acreditou tanto na arte como força política, no mundo! (…) Nessa doideira paternalista, nesta tentativa de enfiar Engels por dentro da goela do Pavão Misterioso, se redescobriu (ainda muito bobamente) nossa paisagem social” (pg. 33). Heloísa parece concordar com Jabor com relação a essas críticas, em certos momentos ela deixa transparecer que a poesia cepecista é inferior e um retrocesso à qualidade literária atingida pela geração pós-45 (pag.30). A autora afirma que não é o discurso da obra que importa, mas a função e a técnica literária que dá “acesso à análise dos produtos literários em seus contextos e é através dele que se poderá dizer a função política dessa produção” (pg.32). Diz ainda que a tentativa dos CPCs de criar uma arte clara, de fácil comunicação com o povo, é inútil, pois a “doutrina que se defende exige a linguagem do intelectual” que “travestida em povo trai-se pelos signos do exagero e pela regressão estilizada a formas de expressão provinciais ou arcaicas” (ADORNO apud HOLLANDA, pg. 23 – 24). Ou seja, o discurso do manifesto do CPC seria falho, pois defende a mentira de que o discurso ali implementado pela arte seria do povo, quando na verdade trata-se de um discurso de uma elite intelectual.

A autora ainda afirma que os cepecistas produziram “uma poesia metaforicamente pobre, codificada e esquemática” (pg. 30). Entretanto, mesmo com essas críticas, Heloísa vai tratar da arte de vanguarda, produzida desde a década de 50 com os concretistas, que buscavam a simplicidade do texto e a valorização da forma e do som no poema, e vai traçar um importante paralelo com o movimento dos CPCs. Tanto a poesia concretista, quanto as publicações dos Violões de Rua (revistas vinculada à militância cepecista em 1962), e em seguida o poema-processo (a partir de 1967), seriam todas linguagens de vanguarda. Segunda ela, hoje lhe “parece que talvez tenha sido exatamente do casamento entre CPC e as vanguardas, que sugere uma aparente incompatibilidade de gênios, que a produção cultural brasileira pôde aprofundar suas questões mais graves” (pg. 42), porque a maioria dos vanguardistas, apesar de não serem militantes engajados no front da batalha cultural do período militar, também tinham um posicionamento revolucionário, muitas vezes ligados aos movimentos de esquerda e que mantinham um discurso de militante e, inclusive, sofriam repressão policial.

Para Heloísa, esses movimentos de vanguarda buscavam uma certa sincronização com os elementos fundantes da modernidade, desde a Semana de Arte de 1922, e a maioria de seus representantes possuíam uma certa tendência esquerdizante. Entretanto, somente no final da década de 60, com o surgimento dos tropicalistas, um grupo de pessoas desconfiados “dos mitos nacionalistas e do discurso militante do populismo, percebendo os impasses do processo cultural brasileiro e recebendo informações dos movimentos culturais e políticos da juventude que explodiam nos EUA e na Europa – os hippies, o cinema de Godard, os Beatles” (pg. 61), foi que essas características da semana de '22 se concretizaram numa ideologia de irreverência e de busca de uma identidade popular, legitimamente moderna e brasileira, mas que recusava o discurso populista, desconfiava dos projetos de tomada de poder e valorizava a ocupação dos canais massa. Na Tropicália não há proposta, nem promessa, mas inclusive uma crítica à intelligentzia de esquerda (pg. 63). Por conta dessa características coloridas, desmilitarizada, os tropicalistas foram inicialmente negados por todos os lados. “Quando estourou o tropicalismo os estudantes de esquerda reagiram contra a gente e o poder também. Eu rebolava e os pais de família chiavam” (VELOSO apud HOLLANDA, pg. 63), afirmou Caetano Veloso. Eram homens de cabelos longos, roupas coloridas e atitudes inesperadas que passam a ter uma dimensão de recusa aos padrões de bom comportamento da época (pg.63).

O livro de Heloísa estende-se até o movimento do desbunde, caracterizado pela entrada do pensamento de contracultura no Brasil, com a divulgação da literatura beat, do rock, do pensamento underground, através de fanzines e mimeógrafos, e até mesmo do desenvolvimento da psicanálise. Para esse momento, praticamente contemporâneo à tropicália, “não existe a possibilidade de uma revolução ou transformação sociais sem que haja uma revolução ou transformação individuais” (pg. 74). Começa a se desenvolver a linha do pensamento das particularidades pensadas a partir das necessidades do indivíduo e de suas representações em grupos de minorias: os homossexuais, os negros... Para esse pessoal, até mesmo ser marxista seria algo “careta”.

Um dos nomes mais importantes desse movimento que é colocado por Heloísa foi o de Torquato Neto. No período de sua morte, com a publicação de Últimos dias de Paupéria, seus escritos teriam se tornado uma espécie de bíblia pra toda uma geração de seguidores (pg 78).

Impressões de Viagem consolida-se então como um grande relato, mas também como uma muito eficiente análise de seu momento, sempre indispensável para quem estudo as questões político-culturais dos ano 60 e 70.

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