sexta-feira, 27 de março de 2009

Porque memórias são importantes

Tia Anísia,

Não lembro qual o pedaço de memória mais antigo. Acho que foram umas férias. Eu e meus dois irmãos passamos uns dias naquela casa do Acarape com cheiro de flores. Achava engraçado duas casas numa só: elas eram divididas, duas portas, duas salas, duas cozinhas, mas se encontravam no quintal. Minhas tias moravam ali: Anísia e Zélia. Em minha cabeça nublada vejo o tio Johnson e a Teca, com um blusão largo e cabelos de mola, vítima da moda dos anos oitenta.

Naqueles tempos, Teresina era um mistério. Os prédios e as praças maiores que o costumeiro. O centro ficava longe demais para um menino do interior e tínhamos de pegar o “Poty Velho” perto da padaria. Como eu era pequeno, passava por debaixo da roleta. Se não me engano a padaria se chamava “Pão da hora” e lá vendiam brigadeiros imensos...

As lembranças se misturam. Certa vez, passamos as férias comendo o fumegante cuscuz na casa da vó Graça, que morava colada ao aeroporto. Ela parecia acostumada ao estrondo dos motores que passavam sobrevoando sua cabeça, mas pra mim... Sentava-me numa manilha enorme do terreno baldio e via de perto os aviões pousarem e subirem por detrás do muro, estupefato! Quando voltava, ia catando as carteiras de cigarro pelo chão, dobrava-as cuidadosamente e guardava-as no bolso, como se notas de dinheiro.

Aqueles dias se misturam porque certa vez nos aventuramos do aeroporto ao Acarape, para visitar nossas tias. Lembro que choveu. A casa do tio Zé Ulisses também ficava ali perto e cheirava a eucaliptos.

Acho que é essa a lembrança mais antiga: o papel no chão, eu sentado na frente dele, a tia Anísia na minha frente. O pente fino passava e caiam os piolhos sobre o papel. Mas não eram só piolhos, eram uns “bois”. Ela repetiu o ritual com meus irmãos. Lembro-me dela impressionada quando os maiores caiam fazendo barulho e pontilhando o papel como um céu estrelado em negativo. Ela ficou uma arara com a mamãe que, desde então empenhou-se melhor em cuidar da cabeça dos filhos: certa vez, decidida a acabar com esses bichos que nos envergonham mais do que incomodam, mamãe lambuzou nossos cabelos com óleo de cozinha e passou a faca da manteiga da raiz à ponta. Não ficou uma lêndia!

Mas havia algo de diferente naquela casa, nos móveis bonitinhos, numa caixa de música perto do telefone, num passarinho de brinquedo que cantava quando estalávamos os dedos próximo dele (isso ainda hoje me impressiona!), no conjunto de três pirâmides que enfeitavam a sala, numa agenda de telefone engraçada que parece ainda existir, resistindo ao tempo: a agenda lembra os telefones de discar, aqueles antes dos de botões. Em vez de você discar o “1”, você discava “a, b, c” e a agenda abria nos nomes que tinham aquelas iniciais. Em vez de “0”, havia “x, y, z”. Quase não havia ninguém com x, y ou z.

Tudo ali era muito arrumado, mas com o cuidado de não parecer sisudo, formal: estávamos em casa!

As noites de natal eram impressionantes. Tantos familiares que eu me sentia perdido. Quando penso na tia Anísia sinto uma angústia incurável, mas não vou falar disso agora... Antes, o natal.

Uma ceia imensa: arroz com ervilha ou com uva passa, peru fatiado, toda sorte de saladas, inclusive aquelas com maçã, batata, presunto e maionese. Porco não faltava. Muito menos um creme de galinha com azeitonas inteiras. A família se fartava e não era pouco, porque ainda havia sobremesas, uma feita com abacaxi, outra com bolachas champanhe. Verdadeiras jóias. Um crime! Toda minha família me engordou!

Não lembro se antes ou depois da ceia, mas sempre havia presentes. E não era amigo oculto nem qualquer troca, as nossas tias simplesmente os davam, ficavam contentíssimas com um sorriso ou abraço. Eram tantos os presentes que convidados de convidados nunca ficavam só olhando, mas eram agraciados com um mimo carinhoso igual a todos nós, por conta disso os presentes eram simples, mas o gesto natalino era o que importava. Os presentes variavam entre canetas, lenços, desodorantes, conjunto de sabonetes, perfumes, coisas que sempre poderiam ser dados ou recebidos por qualquer pessoa. Aqueles natais foram importantíssimos pra mim. Sorrisos de desconhecidos povoam memórias adormecidas. Talvez seja essa a angústia que me apavora. Foram em noites como aqueles natais que percebi a grandiosidade da família e a nossa incapacidade proporcional de si encontrar plenamente ali. Eu, filho de Simplício e Maria, me assusto diante da frondosa árvore hereditária da qual os frutos não provei. Tantas pessoas, tantas histórias! Como é triste não conhecê-los. Aperta-me o peito o passado incógnito dos meus pais. Como é ruim não saber suas aventuras, seus melhores amigos, suas loucuras de amor, suas bravuras, suas burrices... Como faz bem e mal a foto em sépia. Como encanta e assusta a foto amarelada. Como eu queria conhecer todas essas histórias, mas nos prendemos à necessidade ególatra de construirmos apenas a nossa.

Certo dia, li a crônica “Sonho de criança”, de autoria da tia Anísia. Ela dizia que queria conhecer o “pé-de-velocípedes” que habitava sua imaginação infantil. Aí eu imaginei essa senhora de setenta e tantos anos quando criança, com sua família, com minha bisavó Florinda, ainda no corpo de uma mulher madura e cheia de vida. Imaginei minha avó grávida de meu pai cochichando e andando de braços dados com minhas tias avós por ruas que não existem mais como eram. Imaginei meu pai nascendo, crescendo, enchendo de galanteios quem seria minha mãe...

Eu poderia pensar nisso tudo quando vejo qualquer senhor ou senhora com bolsas debaixo dos olhos ou quando sinto o braço da minha avó Graça como um saquinho de couro, ou quando vejo os dedos dos pés da minha avó Francisca todos entramelados que dá vontade de tentar consertá-los um por um... Mas sinto isso, especialmente quando penso na tia Anísia porque lembro como ela se importa. Como ela fica alegre registrando momentos, fazendo vídeos, mostrando textos, tudo para tentar preservar o que ela viveu, com quem ela viveu e como ela viveu. O respeito que ela sente pelo passado da família é coletivo.

A comemoração dos 80 anos da casa da vó Florinda, onde lembro ter vivido a tia Delma na maior parte de sua vida, casa que aliás também cheirava a flores, mas com sabor de carambolas e azeitonas pretas, foi uma epifania nostálgica: “Meu Deus! Quem é aquele que sorri com mamãe? Quem são aqueles que bebem com o papai? E aqueles senhores tão velhos quanto a tia Mazé?”. Foi uma maravilhosa crueldade. E a tia Anísia estava ali no meio, entregando um livro com imagens e textos, além de uma tela pintada por Rogério Albino, uma reconstrução de como seria a lembrança mais antiga daquela casa.

Ai,ai, tia Anísia! Ultimamente, quando nos encontramos, você diz, com um orgulho triste, para todos ouvirem que eu sou o único que lembra dos seus natais com seus presentes que não existem mais. Ah! Tia! Todos lembram, a maioria apenas não comenta.

Beijos

Bernardo Aurélio
Março de 2009.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Messias

Bernardo Aulério

Quando os dias estão assim,
Eu quero olhar na sua cara.
Eu quero saber o por quê
Quando os dias estão ruins.

Perdendo-me no vale da morte,
Eu procuro por sua mão.
Eu procuro você ao meu lado,
Perdendo-me à própria sorte.

Faça-nos voar!
(Somos fracos)
Faça-nos acreditar!

Faça-nos ver!
(Somos fracos)
Faça-nos crer!

Não vejo a luz no fim,
Eu queria acreditar sem ver,
Eu queria acreditar com fé,
Mas preciso d'um show pra mim.

terça-feira, 17 de março de 2009

Réquiem aos Heróis

Bernardo Aurélio


As tropas marcham a céu aberto
Com sede de matar
Espingardas e canhões
Contra foices e facões

As tropas marcham ao redor,
Com sede de calar
Tortura e prisão
Contra liberdade e paixão

Campos abertos, desertos
Preparado para a guerra
Campos maiores, cobertos
De sangue e corpos com terra.

Quem vence a luta
Na batalha pela liberdade?
Quem vence a justa
Nas duas pontas da verdade?

Quem irá contar os mortos
No final da batalha?
Quantos sairão vitoriosos
No final da campanha?

Nós lutamos guiados por ideais,
De homens que sabem o que querem
E morremos sem saber os motivos reais
Daqueles que fatalmente nos ferem.

Um conto de ninguém

Por Bernardo Aurélio


Um obscuro dia me aguarda amanhã. Não sei por onde começar a me perder pelas ruas. Talvez não precise sequer sair de casa.
Olho o chão. Vejo meus pés descalços em cima dele. A sujeira entre as unhas encravadas. Tanto peso sobre o mundo. Tanta gente besta.
Não me considero um grande pessimista, até consigo me divertir com as pessoas mais ingratas que conheço.
...Mas amanhã... Amanhã sim, bem cedo, pela manhã.


As coisas quase sempre nunca são como esperamos. Amanheceu como sempre. Raiou o dia. Nenhum bicho entre as árvores de concreto. Não há ninhos ali. Não os vejo. Pelo contrário, havia uma mangueira bem ali, onde vivia algum animal barulhento, mas alguém a derrubou. Pena. Fazia uma sombra boa em meu quintal. O bicho voou pra outro lugar.

É claro que tenho esperanças e oportunidades. Minha vida é cheia disso. Já posso ir embora?

Eu devia começar falando sobre o assassinato ou sobre a cena erótica, pornográfica?

Eu peguei seu rosto frio e machucado. O gosto da urina entre suas coxas era de azedar. Ela já não tinha mais forças pra nada. Eu não agüentava mais olhar para aquela cara, por isso a arranquei e joguei fora.

A polícia não a encontrou. Eu estou livre. Final feliz. Dostoievski que se foda!